Maria na cultura luso-siamesa. Revista BRASIL-EUROPA 135/4. Bispo, A.A. (Ed.). Academia Brasil-Europa e ISMPS




Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Igreja do Rosário, Bangkok

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Igreja do Rosário, Bangkok

Igreja do Rosário, Bangkok

Igreja do Rosário, Bangkok

Igreja do Rosário, Bangkok
Igreja do Rosário, Bangkok

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 135/4 (2012:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2845


Academia Brasil-Europa


Menaam - mãe das águas: A Imaculada Conceição e o Rosário na cultura luso-siamesa
Espiritualidade dominicana e intercomunicação de imagens - chineses na "cidade dos anjos"



Ciclo de estudos Tailândia/Brasil da A.B.E.. Igreja do Rosário e Colégio S. José, Bangkok

 
Igreja do Rosário, Bangkok

Como ponto de partida para estudos culturais que dizem respeito a contextos marcados pela ação histórica dos portuguesas em cidades de países não-lusófonos oferecem-se comunidades e associações cujos membros falam o português ou que são constituidas por membros de ascendência portuguesa.


Sobretudo as missões católicas portuguesas nas várias partes do mundo, que em muitos casos também são frequentadas por brasileiros e fiéis lusófonos de outros países possibilitam acesso a rêdes sociais e contatos com sociedades e círculos que se dedicam ao cultivo da memória, do patrimônio respectivo e a questões culturais em geral. Por essa razão, nos trabalhos realizados no âmbito da A.B.E., tem-se visitado comunidades portuguesas de cidades de diferentes países em vários continentes, como relatado em números anteriores desta revista.


Igreja do Rosário, Bangkok
Por ocasião da abertura dos trabalhos pelos 500 anos da conquista de Malaca por Afonso de Albuquerque, visitou-se a igreja da missão portuguesa de Singapura, herdeira, sob muitos aspectos, da antiga tradição de Malaca (vide http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Portugueses-em-Singapura.html).


Por motivo da passagem dos 500 anos da presença oficial portuguesa na Tailândia, em 2011, o mesmo se deu com a igreja de Nossa Senhora do Rosário de Bangkok. Essa igreja é considerada como parte do patrimônio histórico-arquitetônico da capital tailandesa, tendo sido até mesmo premiada, em 1987, pela Princesa Maha Chakri Sirindhorn pelo fato de representar um dos bem conservados monumentos do país.


O observador depara-se, em ambos os casos, com situações que, à primeira vista, lhe surgem como semelhantes. Encontra, tanto em Singapura como em Bangkok, um templo neogótico, em amplo terreno, guardado por muros, cercado por grandes edifícios que abrigam instituições de natureza religiosa ou de ensino. A igreja portuguesa de Singapura situa-se não a longa distância da área central determinada pela catedral e suas instituições, e também o Rosário de Bangkok se apresenta em bairro dentro de uma zona urbana marcada pela concentração de instituições católicas ao redor da catedral de Nossa Senhora da Assunção


Em ambos os casos é confrontado sobretudo com o confronto histórico do Padroado Português com a ação missionária francesa a serviço da Propaganda Fide, campo de tensões que marcou a história do Catolicismo no Oriente.


Para além de questões relativas ao encontro de culturas cristãs e não-cristãs no antigo Sião, a pesquisa deve atentar assim às diferenças internas do próprio meio europeu e da ação que os seus missionários desenvolveram. Essas tensões internas da vida e das atividades católicas nem sempre foram percebidas pelos siameses, uma vez que os próprios portugueses e franceses procuraram encobri-las, conscientes de que dissensões no próprio Catolicismo, para além das diferenças confessionais devido à presença de missionários protestantes na região, seriam desfavoráveis ao prestígio e à eficácia da ação religiosa cristã em país não-cristão. As diferentes situações culturais determinadas pelas origens e pelos elos com diferentes contextos europeus da história e da política eclesiástica tiveram, porém, consequências, pois transmitiram diferentes práticas religiosas e mesmo diferentes referenciações histórico-culturais inerentes ao culto de santos e à história de ordens religiosas e instituições. (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Universidade-Bangkok.html)


Assim como o estudo da comunidade católica de Singapura deve ser estudada nos pressupostos históricos, ou seja, do passado cristão de Malaca e da sua transferência para o promissor centro de comércio que se estabelecia, a de Bangkok exige a consideração de deslocamentos de comunidades de passados encerrados por conflitos e pela procura de novos pontos de vida mercantil. No caso da Tailândia, alguns movimentos devem ser particularmente considerados, relacionados como a da vinda de cristãos de Cambodja e o da destruição de Ayutthaya.

Imaculada Conceição de Bangkok


Centro da comunidade portuguesa e luso-siamesa de Bangkok é a igreja da Imaculada Conceição. Segundo a tradição, essa igreja, cuja construção atual data de 1837, remonta à vinda do bispo M. Laneau, em 1674. Devido à origem de cristãos que ali se reuniram, é denominada até hoje de "Cambodja".


Com a destruição de Ayutthaya, um missionário de nome Corre (†1773), que se retirara a Cambodja, retornou ao Sião, em 1769, para reunir a restante comunidade. O rei do Sião concedeu-lhe um terreno destinado à construção de uma igreja, onde fêz a sua morada. Referindo-se espiritualmente à morte e ao ressurreição da cristandade siamesa, dedicou a capela a Santa Cruz. Essa igreja foi reconstruída em 1835 sob a ação missionária francesa.


Em ambos os casos, assim, em Singapura e em Bangkok, constata-se uma transferência de católicos determinada por conflitos e falta de perspectivas nos locais de origem e por condições mais favoráveis no novo local. Em ambos os casos foram sobretudo comerciantes e descendentes de famílias de mercadores que se transferiram para regiões marcadas pela intensificação do comércio portuário e do tráfego de navios, no caso de Bangkok, do rio Menam, o que também atraiu mercadores chineses.


De Santa Cruz ao Calvário


O panorama histórico das origens da comunidade luso-siamesa de Bangkok é marcado desde o início pelas acima mencionadas tensões entre a lealdade ao Padroado Português e o predomínio da ação missionária francesa a serviço da Propaganda. Os católicos que se transferiram de Ayuthwaya ter-se-iam abrigado primeiramente na capela de Santa Cruz em Kudi Jeen Thonburi. Com o predomínio do clero francês, os portugueses e os seus descendentes, fiéis ao Direito do Padroado e a suas tradições, sentiram-se impelidos a separar-se da comunidade, em 1786, e a construir uma igreja própria.


Escolheu-se, para a localização do novo templo Samphanthawong, no banco do rio Chao Phraya, a sul de Yaowarat dos chineses e da antiga igreja de Santa Cruz. O terreno para a sua construção, cedido pelo rei Rama I foi o do Calvário, o que passou a designar a própria igreja (Kalawaro, Kalawar).


Nessa região já teria havido assentamento de cristãos, e o próprio local possuia significados religiosos de antiga procedência, o que se reflete nas suas denominações. Remontava à veneração da Cruz  e ao Calvário, ou seja, a um contexto teológico relacionado com os Passos e a Semana Santa, indicando as suas origens em fases iniciais do contato, como se conhece de outras regiões do mundo, inclusive do Brasil.


Igreja do Rosário e o bairro dos mercadores chineses


Mais do que a igreja de São José de Singapura, a igreja do Rosário e o colégio de São José de Bangkok se encontra nas proximidades do bairro dos chineses. Essa proximidade ao Talt Noi ou Pequeno Mercado, centro da comunidade chinesa da capital tailandesa, facilita a compreensão de elos históricos e culturais entre grupos populacionais que, de início, poderiam parecer distantes entre si.


A igreja do Rosário é frequentada sobretudo por cristãos de ascendência chinesa e foram ricos empresários chineses que possibilitaram a construção da monumental catedral da Assunção (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Universidade-Bangkok.html). Foi entre os chineses - não tanto entre siameses - que os missionários alcançaram sucessos de conversão no passado e, mais longe na história, foram em juncos chineses que os portugueses chegaram ao antigo Sião em 1511 : navegantes e mercadores de ambos os lados e de ambos os lados povos marcados pelas viagens marítimas e pelas águas.


Se as origens da igreja do Calvário ou Nossa Senhora do Rosário remontam aos luso-siameses, tanto que levou a reinvidicações posteriores de propriedade por parte de Portugal, os siameses, não compreendendo bem as tensões internas do Catolicismo relativamente ao Direito do Padroado Português e o Vicariato Apostólico das missões francesas a serviço da Propaganda, viram a cessão do terreno como feita à igreja de Roma.


A missão entre os chineses, em cuja história sobressaiu-se um missionário de nome Albrand, fêz com que o Rosário se tornasse centro da comunidade sino-cristã. Um dos principais anelos da comunidade foi o da abertura do terreno em direção ao Menam, fato alcançado, em reparação a agravos e perseguições ali sofridas com uma doação feita pelo rei Mongkut ou Rama IV (1804-1869). Parece ter sido esta época aquela em que intensificou-se a dedicação mariana do local, vinculando-se o Calvário à prática do Rosário, ou seja, o da elevação da comunidade à esfera superior de Maria em situação existencial da comunidade marcada por perigos, reais ou metafóricos de inundações.


Bairro Chinês, Bangkok
Reformada e reconstruída várias vezes, a igreja edificada em 1839 manteve-se até a década de 90 do século XIX, quando, entre 1891 e 1898, sob Chulalongkorn "O Grande"/Rama V (1853-1910) elevou-se o templo atual que manifesta o espírito da restauração católica e seus elos com o historismo europeu.


Essa igreja de Bangkok, construída graças a esforços do missionário P. Dessales à frente de um grupo de chineses, e cujo campanário devia dominar a capital siamesa, é um dos principais exemplos do neo-gótico no Sudeste da Ásia.




A ornamentação externa e interna da igreja do Rosário de Bangkok é determinada pela sua dedicação mariana e pela prática do Rosário. À sua entrada vê-se no piso, quase que como um vitral em pedra, uma representação de rosa ou rosácea que permite entrever uma sensível adaptação do símbolo floral de fundamentação bíblica ao gosto oriental.



Essa sugestão ao Oriente em geral, em particular também ao Sião se manifesta na tendência ao brilho, no esplendor dourado e azul do interior do tempo e que justifica os valores afetivos da atmosfera de encanto e fascínio que os cristãos locais e mesmo os siameses dizem sentir na arquitetura.


A essa atmosfera contribuem as decorações com motivos vegetais e de irradições douradas de atributos marianos, as luminárias e os vitrais. Designações como "Estrêla da Manhã", "Porta dos Céus" ou "Torre Davídica", com as respectivas representações pictóricas, marcam o teto da igreja, transformando-a em espécie de relicário resplandecente, manifestando os elos do culto mariano com a luz.


No externo, a temática mariana encontra-se presente no hortus conclusus, no jardim fechado mantido por religiosas e que é motivo de admiração de visitantes cristãos como uma das atrações de Bangkok.


No altar-mór, o ápice do espaço marcado por sinais e representações de sentidos marianos é constituído por um grupo plástico que apresenta a Maria como Mãe de Deus nas alturas do céu estrelado, coroada, e que dirige o seu olha a S. Domingos com o rosário.


Se a decoração do templo é em grande parte constituida por imagens que exigem interpretação de sentidos velados, a encenação realista do altar indica o direcionamento do rosário ao mistério da Assunção, ao qual é dedicada a catedral próxima. Recorda, sobretudo, os fundamentos dessa prática na espiritualidade dominicana que marcou a história das relações do Sião com o Ocidente.


Dominicanos de Malaca e o culto mariano no reino do Sião


A devoção mariana do Rosário marcou desde o início a história dos portugueses no Oriente, em particular a "reconquista" de Goa por Afonso de Albuquerque (vide http://www.revista.brasil-europa.eu/131/Goa-Rosario.html).


Também no Sudeste Asiático, a partir de Malaca, a prática do Rosário difundiu-se, tendo sido fomentada sobretudo pelos dominicanos. (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Culto-mariano-na-Malasia.html)


Há um documento que registra de forma pormenorizada e expressiva a  história da chegada dos dominicanos e da fundação da cristandade de cunho dominicano no Sião escrito por ordem de 1679 do Governador da Índia, Antonio Paes de Sande, a "Summaria Relaçam do que obrarão os religiozos da Ordem dos Pregadores na conversão das almas e pregação do Sancto Evangelho em todo o Estado da India e mais terras descubertas pellos portugueses na Azia, Ethiopia Oriental, e das missões em que autualmente se exercitão, com todos os conventos, cazas e numero das relligiões que de prezente tem esta sua congregação da India Oriental" (Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente VII, coligida e anotada por António da Silva Rego, Lisboa: Fundação Oriente/Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses 1994, 367 ss).


No tópico 25 do texto (op.cit. 458 ss.), o autor trata do início das atividades dos Dominicanos no Sião, no ano de 1566. Após mencionar que esse reino era um dos três maiores da Ásia, ao lado dos da China e de Bisnaga, e que era cortado pelo caudaloso rio Menão, limitando-se ao poente com Bengala, ao sul com Malaca, ao leste com Cambodja e também com a China, registra que os primeiros religiosos que para ali se dirigiram foram os padres Fr. Jerônimo da Cruz e Fr. Sebastião de Canto. Esses sacerdotes haviam sido enviados pelo mestre Fr. Fernando de Santa Maria, vigário de Malaca e superior das comunidades, como constaria de uma carta escrita a 26 de dezembro de 1569 ao Geral da Ordem, Fr. Vicente Justiniano. À época da fundação da cristandade dominicana era Vice-Rei da Índia D. Antão de Noronha, estando a congregação sob a direção de Fr. Manuel da Serra.

Os religiosos foram bem recebidos pelo vice-rei do Sião e seus súditos, tendo sido a sua recepção devidamente preparada pelos portugueses que já ali residiam. A êles foram dadas casas de moradia e local para celebrações. Esses religiosos dedicaram-se primeiramente e com intensidade ao aprendizado do idioma, indispensável para uma ordem de pregadores. Segundo o relato, os Dominicanos aprenderam o idioma local com extraordinária brevidade, podendo dar logo início às pregações públicas. Como o faziam na língua dos ouvintes, muitos teriam sido os que se converteram, de todas as regiões do Sião. Segundo o cronista, até mesmo monges budistas honravam os Dominicanos devido a atenção que dedicavam ao saber, prostrando-se quando passavam.

Tensões do Cristianismo com o Islão, respeito das autoridades e do povo

Segundo a crônica, o sucesso inicial da ação dominicana foi logo turvado devido ao ódio que a êles devotavam os muçulmanos:

"Vendo porem o demonio o grande credito em que estava a nossa fe em Sião e o muito que podia perder se os padres continuassem nestes exercissios, incitou os mouros da terra para que lhe tirassem a vida, os quais ordião pera esse efeito huma dezavença com os portugueses que chegou a rompimento de armas, conçiderando que não deixarião os religiozos de accudir a elle, pera o impidirem, e que nesta occazião podião, a seu salvo, logar seus intentos". (op.cit. pág. 459)

Esses conflitos levaram à morte de Fr. Jerônimo e ao ferimento do Fr. Sebastião, o que gerou sentimentos de revolta na população e exigências de punição aos culpados. Segundo o registro, os grandes e os nobres da terra chegaram a cobrir de cinza as cabeças, o povo humilde a romper as vestes, as crianças a expressões de lamento. O castigo dos muçulmanos e dos gentios acusados como culpados por parte do rei chegou a excessos, havendo enforcamentos e desterros.

O documento indica, assim, que, como em outras partes da Índia e do Oriente, também no antigo Sião a história da ação portuguesa surge sob o signo das tensões com o Islão. Somente com a intervenção do Fr. Sebastião, que teria pedido perdão a favor dos culpados, a série de castigos teria sido suspensa. Assim, os Dominicanos não apenas tinham agora o seu mártir, como também o Cristianismo ganhou em respeito do rei do Sião pelo exercício do perdão aos inimigos. O cronista põe na boca do rei do Sião essa admiração que os cristãos teriam causado pela sua capacidade de perdoar:

"Certo grande bondade he a vossa e boa gente sois vos outros, pois tão facilmente perdoais a vossos inimigos e, sobre lhe perdoares tanto a vossa custa, lhes procuraes o perdão." (op.cit. pág. 459)

O respeito e o prestígio assim alcançados levaram a que os Dominicanos pudessem se fixar no país, tendo o rei oferecido ao Fr. Sebastião do Canto casas e locais para celebração. Favorecido pelo rei, esse religioso dirigiu-se a Malaca para buscar auxiliares para as suas atividades. Retornando com dois companheiros da Ordem, foram cercados por inimigos e mortos no oratório a 11 de Fevereiro de 1569.

Alta formação dos missionários - estudos e vida contemplativa

O primeiro mártir, Fr. Jerônimo da Cruz, era um religioso de elevada formação. Natural de Lisboa, havia estudado no convento de São Domingos daquela cidade e era bacharel em Cânones pela Universidade de Coimbra. Foi enviado ao Oriente em substituição a um outro missionário, que adoecera; chegando à Índia, partiu para Malaca e, de lá, para o Sião. Segundo o cronista, era religioso que se dedicava com afinco à vida contemplativa, a tal modo que chegava a cair em estados de êxtase. Essa menção pode servir como testemunho do significado da mística nessa fase da vida religiosa cristã no Sião. Essa aura de santidade, além do seu martírio, explica também a veneração que as suas relíquias passaram a receber em Malaca, para cujo convento dominicano foram transportadas.

O documento registra a entrada posterior de outros Dominicanos no Sião, entre outros dos padres Fr. Jorge de Mota e Luís da Fonseca, que vieram prisioneiros de Cambodja e que chegaram a alcançar posição de confiança junto ao rei. O Fr. Luís da Fonseca, já formado na própria Índia, conseguiu o beneplácito de poder erigir um altar na própria Côrte siamesa. Entretanto, tento batizado a mulher de um muçulmano, foi por este morto, na Quinta-Feira Santa de 1600. Houve também mártires entre religiosos espanhóis, ainda que sob outras razões, antes políticas relacionadas com os conflitos entre o Sião e Cambodja. Assim, dois Dominicanos espanhóis da Província de Santo Rosário das Filipinas, Fr. João Maldonado e Fr. Alonso Ximenes, passando pelo Sião a caminho de Cambodja, foram presos e mortos a mando do rei do Sião.

Tomada de Malaca pelos holandeses e repercussões de conflitos europeus no Sião

Um fato de particular significado foi o do campo de tensões criado pela presença dos holandeses no Sudeste da Ásia e que levou à tomada de Malaca. Ao redor de 1616, sob o govêrno de D. Jerônimo de Azevedo, chegou a Goa uma embaixada do rei do Sião. Para além de tratos comerciais, havia a necessidade de esclarecimentos a respeito da permissão de entrada no reino a holandeses e inglêses, inimigos dos portugueses, concedida pelo rei do Sião.

De retorno, o Vice-Rei da Índia enviou ao Sião Fr. Francisco da Anunciação, um religioso que já possuia experiência de vida naquele reino. O objetivo do empreendimento era também o de fomentar o comércio entre portugueses e siameses. A entrada dos Dominicanos foi, porém, perturbada pela situação de conflitos bélicos entre o Sião e os povos vizinhos, assim como pela presença de holandeses e inglêses.

Segundo o documento, o rei do Sião procurava manter uma neutralidade quanto à presença de europeus no país. Assim, constatando que em suas terras todas as nações européias se encontravam representadas, chegou a enviar uma embaixada ao capitão de Malaca, pedindo que também portugueses ali se assentassem. Assim, Fr. Antonio de S. Domingos, vigário do convento de Macau quando ali se encontrava Fr. Jacinto Ximenes, se dispôs a ir com este ao Sião, embarcando com o embaixador e levando todo o necessário para o culto e cartas para o rei, pedindo terrenos para igrejas. Ali chegando em fevereiro de 1640, procuraram criar condições mais decentes de vida para os cristãos; a comunidade foi transferida para outro local, cedido pelas autoridades, não sem, porém, oposições do povo de Pegu por ali existir um pagode.

Significado da forma e do esplendor do culto no Sião

Nesse período, o método missionário caracterizou-se pela atenção particular dada à forma e à solenização dos atos de culto. Segundo a crônica, o aparato e a ordem das cerimônias levaram até mesmo a que monges siameses fossem atraídos às celebrações cristãs. Alguns daqueles que chegaram a receber o batismo sofreram, porém, sob pressões de funcionários do Estado. Essas perseguições teriam sido induzidas pelos holandeses que, através de um de seus agentes, teriam mostrado as inconveniências para o reino das conversões que se faziam. Afirmavam que os padres rendiam os ânimos e os corpos ao rei de Portugal por meios de armas espirituais. Chegaram a sugerir que se pusessem espiões nas igrejas. Cativos do rei que se fizessem cristãos deveriam ser presos. (op.cit. 464)

O sucesso da ação missionária no Sião em meados do século XVII levou a que a Ordem enviasse outros religiosos, entre êles o Fr. José de Santa Maria e o Fr. Simão dos Anjos, ambos nascidos na Índia, que faleceram em viagem, seguidos do Fr. João de São Gonçalo e Fr. Francisco da Fonseca, natural de Coilão.

Confraria do Rosário: de Malaca ao Sião

As notícias do sucesso da vida religiosa no Sião - ainda que provavelmente mais justificado pela admiração dos siameses pelos conhecimentos e pela ciência do que pelas conversões - alcançaram Malaca em período que o Catolicismo local experimentava uma fase de dificuldades sob os holandeses. Os Dominicanos encontravam-se entre os que mais resistiam ao domínio dos protestantes. Essa situação levou por fim a que o vigário de Malaca, o Fr. Luís do Rosário, se recolhesse ao Sião, ali levantando uma igreja na qual instituiu a Confraria do Rosário. Transportava, assim, para o Sião, uma forma de organização da vida religiosa que desempenhava importante papel na vida de Malaca (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Culto-mariano-na-Malasia.html).

Segundo o documento, esse religioso teria incorrido no êrro de entregar essa confraria e toda a comunidade criada pelos Dominicanos aos Jesuitas, quando ali chegaram. Teria havido, para além de todas as tensões existentes entre portugueses e franceses, um problema resultante da presença da Companhia em comunidades formadas pela Ordem dos Pregadores.

"(...) a qual depois vindo aly aportar os padres da Companhia de Jesus, lhe entregou com toda a christandade, sem ter licença do prellado da congregação para o fazer, sobre o que dizem muito os bispos francezes que naquelle reino assistem; tendo os padres por intruzos na dita igreja, instando ao vigario que la temos que a requeira e torne a unir a religião, pois he sua. O que se não tem executado por escuzarmos litigios e escandalos em terra de infieis." (op.cit. pág. 466)

Tensões entre portugueses e franceses em Ayutthaya

Os conflitos com os bispos franceses do Sião assumiram um ponto crucial nas contendas com o Fr.Luis Fragoso, nomeado para o Sião pelo padre Fr. Lucas da Cruz, vigário geral e mestre-inquisidor, passando a ser vigário da igreja local e Comissário do Santo Ofício da Bula da Cruzada para o Sião.

O cerne da questão dizia respeito à exigência dos bispos franceses que fossem reconhecidos como detentores da autoridade eclesiástica pelos padres portugueses. Estes, porém, o recusavam, afirmando que o patrimônio da Igreja do Sião pertencia ao rei de Portugal segundo antigos documentos assinados pela Santa Sé. Os problemas locais alcançaram Roma, de onde chegou-se a enviar um emissário ao Sião.

Um dos religiosos que se negaram a prestar obediência a autoridades francesas foi o Pe. Francisco Pinto SJ  (†1731) e que, por isso, foi censurado pela Propagada Fide.

Fr. Francisco das Chagas O.P. e o "Campo do Rosário" em Bangkok

Aspectos que surgem como obscuros à pesquisa luso-siamesa das origens da igreja do Rosário de Bangkok podem ser esclarecidos através da consideração de um documento conservado em Macau. Trata-se da entrega do terreno cedido pelo rei Rama I à comunidade portuguesa que se deslocara de Ayutthaya a Bangkok. Em carta a D. Maria I, de 1786, o rei Rama I, agradecendo a proposta de auxílio de Portugal na luta contra os invasores de Birma, expressava a sua satisfação em oferecer um terreno no qual os portugueses pudessem construir uma feitoria e uma igreja. Esse terreno foi recebido por um dominicano enviado de Goa para entregar ao rei do Sião 3000 espingardas, o Fr. Francisco das Chagas O.P.. Esse terreno, correspondendo certamente à presença desse dominicano, passou a ser conhecido como "Campo do Rosário". (Beatriz Basto da Silva, Cronologia da História de Macau Século XVIII, 2, Macau 1993, 141) (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Portugueses-no-Siao.html)

Proximidades e aproximações: a divindade das águas na tradição chinesa em Bangkok

O significado do papel desempenhado pelos chineses na história da igreja do Rosário de Bangkok e o fato dessa igreja localizar-se próxima ao bairro chinês e de ser frequentada por chineses chamam a atenção à existência de paralelos e relações interculturais até hoje não consideradas no contexto tailandês e que assumem particular relevância para os estudos culturais em geral, em particular brasileiros.


Aproximações e relações entre concepções marianas e expressões chinesas relativas à veneração de virgem dos mares, de tanto significado para Macau e também para Singapura (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Mazu-em-Singapura.html), assumem especial relevância no contexto dos chineses do Estreito malaio, onde hoje se levanta um de seus maiores templos. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Culto-mariano-na-Malasia.html)


Se a igreja do Rosário de Bangkok se abre ao rio Menam, dele podendo ser avistada e nele tendo um ancoradouro, pouco acima, no pequeno porto do bairro chinês, eleva-se a imagem da divindade chinesa protetora das navegações e dos homens sujeitos aos perigos das águas.


Na situação desses bairros ribeirinhos da "Veneza do Oriente", permanentemente ameaçados por inundações, compreende-se a força dessa veneração popular.


A inundação, que coloca toda a terra sob as águas, e que transforma toda a natureza num imenso alagadiço, causando destruição e morte, termina com o recuo das águas, com o correr das águas ao mar através do Menam. Não se trata aqui de veneração da água, mas sim da força que as fazem recuar e correr ao mar, deixando surgir a terra sêca.


Nesse sentido, o grande rio Menam, como "mãe das águas", desempenha um papel de central significado na aproximação de concepções e imagens de diferentes proveniências, e, portanto, de relevância para estudos voltados a internacionalizações.


É o grande rio que corresponde, na "Veneza do Oriente", ao Po na Veneza adriática, ao Nilo no Egito, ao Ganges na Índia e, na tradição mitológica do Ocidente, ao Eridano. (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Veneza-do-Oriente.html).


Grupo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo




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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Menaam - mãe das águas. A Imaculada Conceição e o Rosário na cultura luso-siamesa. Espiritualidade dominicana e intercomunicação de imagens: chineses na cidade dos anjos.". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 135/4 (2012:1). http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Cultura-luso-siamesa.html.




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.