Portugueses em Singapura. Revista BRASIL-EUROPA 127/9. Bispo, A.A. (Ed.). Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Pelos 25 da oficialização alemã do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS), a A.B.E. desenvolveu estudos em Singapura dedicados a observar situações culturais referentes à comunidade de ascendência portuguesa, detectar tendências e procurar in loco caminhos para um tratamento teórico-cultural atualizado dos processos globais colocados em vigência pela conquista de Málaca pelos portuguêses há 500 anos. Foram conduzidos no âmbito do ciclo de estudos dedicados a problemas de „Direitos Humanos, Estudos Culturas e História Diplomático-Cultural.


A orientação do ISMPS, que embora representando reflexões do mundo de língua portuguesa não se prende, na definição de seu objeto de estudos, a contextos definidos pela lusofonia, encontra, em Málaca e Singapura, uma situação particularmente complexa.


Embora também a maioria daqueles que apresentam ascendência portuguesa utilizem-se do inglês há muito, as circunstâncias são distintas daquelas do Havaí (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/126/Havai-Portugal-Brasil.html).


Devido ao fato de que o início da presença portuguesa deu-se nos primórdios da era moderna e em época marcada por intuitos cristianizadores, - a do Havaí apenas na segunda metade do século XIX - o português como idioma ficou tão vinculado com o Cristianismo que passou a ser identificado, em Málaca, como língua da comunidade cristã ou mesmo o idioma ou o linguajar cristão por excelência, o "papiá cristão". A respeito desse fenômeno linguístico existem vários estudos, entre outros: Pe. António da Silva Rego, Dialecto Português de Malaca: Apontamentos para o seu Estudo, Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1942;  Ian Hancock, „The Malacca Creoles and Their Language“, Afrasian III(1969, 38-45; „Malacca Creole Portuguese: Asian, African or European?“, Anthropological Linguistics 17/5(1975), 211-36 ; Alan Baxter, A Grammar of Kristang (Malacca Creole Portuguese), Camberra: Australian National University Research, School of Pacific Studies-Pacific Linguistics B/95, 1988.


Esse falar com as características que assumiu em Málaca foi também praticado em Singapura, uma vez que para ali se transferiram habitantes daquela cidade à época de fundação e desenvolvimento de Singapura no século XIX. O português foi utilizado na missão, em pregações  e mesmo no ensino em escolas mantidas pelos católicos portugueses, sendo gradualmente substituído pelo inglês.


Se "papiá“ adjetivado de cristão representa um objeto relevante de pesquisa linguístico-antropológica, uma vez que indica a identificação do português não tanto com um país mas sim com o Cristianismo e com a comunidade regional cristã, essa designação chama a atenção para questões de identidade e para a necessidade de estudos diferenciados tanto sob o aspecto da comunidade de ascendência portuguesa, assim determinada pela sua catolicidade, como sob a perspectiva do Catolicismo, aqui por demais vinculado a uma determinada cultura.


Igreja de São José da Missão Portuguesa de Singapura


A respeito do Catolicismo atual em Singapura e da posição da comunidade de origem portuguesa, o pesquisador dispõe de dados orientadores e estatísticos na obra de António Duarte de Almeida e Carmo A Igreja Católica na China e em Macau, no contexto do Sudeste Asiático: Que Futuro? (Macau: Fundação Macau, Instituto Cultural de Macau, Instituto Português do Oriente, 1997, 403-411.


Ponto de partida para estudos da história cultural e do presente da comunidade de ascendência portuguesa ou marcadas pela sua influência em Singapura é a igreja de São José da Missão Portuguesa. Essa igreja, não paroquial, é, desde 2005, considerada como monumento nacional (National Heritage Board, Singapore‘s 100 Historic Places, Singapura: Archipelago Press, 2002). Foi até mesmo um dos espaços utilizados para a bienal de arte contemporânea de Singapura, em 2006.



A igreja, ainda que construída apenas entre 1906 e 1912, substituindo uma anterior, insere-se em desenvolvimento histórico secular. Representa uma continuidade histórica que remonta a Málaca de remoto passado e que ao mesmo tempo inclui a nova fase de desenvolvimento iniciada com a fundação de Singapura.


Aquele que entra na igreja de São José de Singapura vê, nas paredes de seu pórtico, confrontando a brasão episcopal, as armas do reino de Portugal, com as chagas e os cravos de Cristo.


É, assim, imediatamente confrontado com o elo histórico do edifício e da comunidade com Portugal e, sobretudo, com o passado do Padroado, sistema de características globais que marcou a história missionária e da formação cultural de todas as regiões do mundo influenciadas pelos portugueses.


Aquele que entra na igreja depara-se, assim com um vir-a-ser histórico e impregnado por uma atmosfera marcada por intuitos de sua valorização. O historicismo impregna o edifício com as suas ogivas e outros elementos neo-góticos, combinados com formas e traços estilísticos que recordam transições à Renascença e que parecem lembrar o início do século XVI na sua expressão portuguesa.


Como frequentemente observado e apreciado em escritos e prospectos culturais, a arquitetura, com a sua fachada envidraçada por grandes vitrais e pórtico de entrada, com a sua torre central de base octogonal, ladeada por torreões, impressiona ainda hoje pela aparência que sugere de caixa de jóias, de relicário, de tesouro. (Norman Edwards e Peter Keys, Singapore - A Guide to Buildings, Streets, Places, Times Books International, 1996).


Uma descrição da época, de autoria de D. João Paulino d‘Azevedo e Castro, personalidade de particular relêvo na história religioso-cultural de Macau, foi publicada no Boletim do Governo Ecclesiastico de Macau 10, pág. 28, e reproduzida em outras obras:


"É d'un estylo mixto em que predomina o gothico, com as suas meias ogivas e torres de proporções modestas, sim, mas muito graciosas. Tem a configuração d'uma cruz latina, medindo desde o portico até ao fundo da capella-mór 212 pés; os braços com o cruzeiro 144 pés, e o corpo da igreja 69 pés de largura, podendo todo o templo acommodar bem à vontade para cima de 1500 pessoas. É sem duvida uma das maiores igrejas do Extremo Oriente, e com certeza a mais espaços de Singapura e dos Estádos Malaios" (D. João Paulino d'Azevedo e Castro, Os Bens das Missões Portuguezas na China, Macau: Orphanato da Immaculada Conceição 1917, 2a. ed. nova edição fac.simile Fundação Macau, 1995, 145)


Memória e questões de continuidade histórico-cultural


A memória do passado longínquo continua viva ou subjacente na vida religioso-cultural da comunidade, lembrada em pregações, publicações, sinais vários e inscrições, no culto de santos e em expressões tradicionais.


Dessas, a mais relevante é a Procissão de Sexta-Feira Santa, remontante nas suas características a um Catolicismo com formas de expressão e acentos teológicos na compreensão do ano litúrgico muito anterior à fundação de Singapura. A Procissão de Sexta-Feira Santa continua a realizar-se no seu aparato tradicional até o presente, representando uma manifestação religioso-cultural de irradiação supra-regional.


Na área da igreja localiza-se o Saint Anthony's Boys' and Girls' School. A pelo Pe. José Pedro Santa Ana da Cunha, em 1879, foi denominada inicialmente Saint Anna's School. Funcionou provisoriamente numa pequena casa, situada na Middle Road, mudando-se, em 1886, para a área da igreja.


A cultura musical desempenha naturalmente papel relevante na identidade e na diferenciação da comunidade no contexto da sociedade de Singapura. Entretanto, seria inadequado querer encontrar na linguagem musical e no repertório traços de continuidade imediatos que levam à Málaca portuguesa do século XVI. Por demais determinantes foram as medidas da restauração litúrgico-musical de fins do século XIX e início do XX e que fizeram da igreja da missão portuguesa de Singapura um dos centros mais conhecidos do Extremo Oriente pela sua diligência em seguir prescrições restaurativas da legislação sacro-musical.


A intensidade dessa inserção na reforma litúrgico-musical e, portanto, em movimento que trouxe uniformizações da vida musical e sua internacionalização, deve ser considerada também como um fenômeno que apenas pode ser compreendido sob o pano de fundo de uma tradição secular e analisada como manifestação da auto-consciência da comunidade.


Historismo, espírito romântico e anelos restaurativos do Catolicismo do século XIX


A igreja da Missão Portuguesa reflete um espírito romântico, um romantismo que - como na Europa - voltou-se a um passado da Reconquista, da luta da Cristandade contra os mouros, e que teve, no Sudeste asiático, a sua expressão na conquista de Málaca, em 1511.


Esse espírito romântico e historista que emana da igreja de São José da Missão Portuguesa de Singapura explica a intensidade com que foi ali recebido o movimento de restauração sacro-musical de fins do século XIX e início do XX.


Também os seus ideais representavam, na Europa, um direcionamento a uma época anterior à então atual, vista como imbuída de valores de exemplaridade.


O cultivo dos ideais sacro-musicais da restauração católica em Singapura precedeu até mesmo a sua concretização arquitetônica. Já em 1888, na igreja anterior à atual, demolida em 1906, adquirira-se um órgão de tubos, da firma Forter & Andrews. Atualmente possui dois Allen Digital Organs, um de 2 e outro de 3 manuais, instalados em 2005 e 2009.


Os esforços restaurativos precederam também à construção da igreja quanto à liturgia e ao ensino. Assim, em 1893, a escola de meninos foi separada daquela de meninas, correspondendo a desenvolvimentos similares em instituições religiosas européias.


No seu romantismo neo-gótico tardio, a igreja de São José da Missão Portuguesa diferencia-se da arquitetura predominantemente neoclássica, palladiana da catedral católica do Bom Pastor, da anglicana de St. Andrews e de várias outras construções do século XIX de Singapura.


O romantismo representado por esse edifício e a sua história cultural é de cunho português, ou melhor, é impregnado de uma visão romântica do Padroado, marcada por idealizações e nostalgias, saudosa de um passado cristão de Málaca, do qual apenas restara fragmentos e ruínas.


Esse fascínio profundamente romântico por ruínas teve a sua expressão, no Sudeste da Ásia, sobretudo nas recordações de um período de florescimento da Málaca portuguesa cristã do século XVI encerrado pela tomada pelos holandeses, que com diligência calvinista, destruíram imagens e igrejas, proibindo expressões paralitúrgicas e lúdico-festivas, com música, danças e cortejos. Escritores da época salientam esse arruinar da cultura católica de Málaca no início do século XVII e que obrigou a católicos a se internarem nas matas para que pudessem prosseguir com as suas práticas tradicionais.


Como Goa, e mais tarde Macau, Málaca povoou-se d'igrejas e de conventos, d'onde brotava pujante a vida christã que se espalhava ao redor e ao longe.

Infelizmente esse brilhante fóco de luz quasi de todo se extinguiu desde que Málaca passou para o dominio hollandez (1610) (...)

O fanatismo calvinista, intollerante e cruel, destruiu quasi todas as igrejas e apossou-se das que lhe convinha para uso dos seus sectarios, vendo-se os christãos, habitantes da cidade, no extremo de se refugiarem nas florestas para alli poderem exercitar as praticas da sua religião! (op.cit. 141)


Antigos elos de Málaca com o Brasil


Essa visão romântica do passado do Padroado, marcando a historiografia das relações do mundo de formação portuguesa com o Sudeste Asiático, traz consequências para a consciência histórica de comunidades e à identidade cultural.


Ela é de relevância para os estudos brasileiros, uma vez que diz respeito a um contexto regional que teve a sua época de florescimento sob o aspecto da história das relações com a Europa no século do Descobrimento e do desenvolvimento colonizador no Brasil. Houve, assim, paralelos entre desenvolvimentos, métodos e expressões culturais, além de pontes criadas por contatos entre representantes do govêrno e da Igreja.


Criada a 4 de fevereiro de 1558 por Constituição Apostólica do Papa Paulo IV e dirigida por bispos portugueses até a tomada de Málaca pelos holandeses, em 1641, quando passaram a atuar de Timor, a história eclesiástica da região está inserida no contexto global das relações de Portugal com as diferentes regiões do mundo, apresentando estreitos elos com a história eclesiástica do Brasil.


Um dos maiores vultos que demonstram o significado da Diocese de Málaca foi o do Frei Alexandre da Sagrada Família Ferreira da Silva (1737-1818), Francisco Minorita, nomeado bispo de Málaca, embora não tivesse assumido o seu ministério. Foi uma personalidade de relêvo na história do pensamento, da retórica e mesmo da literatura do mundo de língua portuguesa, tendo desempenhado papel de extraordinário significado no mundo insular atlântico como bispo de Angra e nas relações internacionais com a África, em particular com o antigo reino do Congo.


Mesmo no período de dominação holandesa, os vínculos da comunidade cristã de Málaca com a rêde global dos portugueses no mundo não foram interrompidos, uma vez que continuaram a ser assistidos por sacerdotes vindos de Macau ou de Goa e que atuavam na Igreja de São Pedro, fora da cidade, construída no século XVIII. Na jurisdição eclesiástica do Padroado, Málaca estava subordinada à Arquidiocese de Goa, na Índia Portuguesa.


Duas personalidades da história eclesiástica demonstram imediatamente a ponte entre Málaca e o Brasil. Uma é a do dominicano Miguel de Bulhões e Souza (1706-1779), nascido em Verdemilho, Portugal, sacerdote dominicano ordenado em 1746, nomeado a bispo de Málaca em 1746, a coadjutor (1747) e bispo de Belém do Pará, em 1748, e, a partir de 1760, a bispo de Leiria.


Outra personalidade a ser mencionada  é a de Francisco de São Damazo Abreu Vieira, O.F.M. (1767-1816), nascido em Guimarães, Portugal, e falecido em Salvador da Bahia. Ordenado sacerdote em 1792, foi nomeado bispo de Málaca, em 1804, consagrado em 1805, e, em 1815, bispo de Salvador.


Portugueses e católicos de Málaca em Singapura à época de sua fundação


Às época das vésperas da independência do Brasil, veio a Singapura, então recentemente fundada (1819) por Thomas Stamford Stamford Raffles (1781-1826) (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Stamford-Raffles.html), um primeiro sacerdote de Málaca para assistir aos poucos católicos que ali viviam. Estes tinham-se transferido de Málaca na expectativa de condições mais favoráveis e promissoras de vida. (A respeito: Glimpses and Memories of St. Joseph‘s Church and the Portuguese Mission in Singapore 1825-1999, Singapura: Church of St Joseph, 1999).


Tratava-se do Pe. Jacob Joaquim Freire Brumber, auxiliar, desde 1813, do vigário da Igreja de São Pedro,de Málaca, então sob a égide o dominicano Frei Daniel de Santa Teresa, naquele cargo desde 1810. Nessa época, sob a administração inglêsa, a vida católica de Málaca experimentou uma fase de florescimento:


Desde que os inglezes se estabeleceram em Málaca (1795), começaram os catholicos a viver em liberdade e a ostentar em publico as pompas do culto religioso (D. J. Paulino d‘Azevedo e Castro, op. cit. 141)


Esse primeiro sacerdote obteve de Thomas Stamford Raffles um terreno para a construção de uma capela, não se podendo comprovar, porém, se ela foi, de fato, construída.


Em julho de 1821, os católicos franceses, que também ali viviam, já tinham solicitado duas vezes ao Vigário Apostólico do Sião que enviasse um sacerdote, uma vez que ali apenas atuava um padre português, provavelmente o referido Pe. Jacob Freire Brumber. Em 1824, mais uma vez os franceses de Singapura dirigiram-se ao vigário do Sião solicitando um sacerdote. Supõe-se que, à essa época, o religioso português já tivesse deixado a povoação. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Franceses-e-Padroado-Portugues.html).


Pe. Francisco da Silva Pinto e Maia (1785-1850)


Em 1825, por determinação de D. Manuel de S. Galdino O.F.M. (+1831), arcebispo de Goa, que fora bispo de Macau (1802-1804), consagrado na Igreja do Seminário de São José, em 1805, transferiu-se de Macau para Singapura o Pe. Francisco da Silva Pinto e Maia, onde chegou a 30 de junho.


Paralelamente, o Pe. Jose Victorino d'Almeida transferiu-se para Málaca. A saída desses religiosos de Macau foi obrigada por razões político-eclesiásticas em Portugal e que levaram à saída de religiosos congregados.


Francisco da Silva Pinto, nascido no Porto e formado no Seminário de São Vicente de Paula, em Lisboa, havia sido enviado a Macau em 1813. Aqui, passou a pertencer ao corpo docente do Seminário de São José.


Como os católicos do povoamento britânico fundado seis anos antes precisavam de sacerdote, solicitou e obteve aprovação da Arquidioceses de Goa, da qual Singapura dependia. Segundo alguns, não havia outro sacerdote na colonia na época; a pesquisadora Beatriz Basto da Silva, porém, crê na possibilidade de lá ter encontrado o Pe. Jacob, que, em 1821, é referido pelo Mons. João Luís Florens, então em Bangkok. (Beatriz Basto Silva, Cronologia da Histó´ria de Macau, Século XIX III, Macau: Direcção dos Serviços de Educação e Juventude, 1995, pág. 52).


A década de 20 experimentou um considerável aumento de católicos em Singapura. Se em fins de 1821 havia apenas ca. de um dúzia de católicos, ao redor de 1829 já ali viviam ca. de 200. Para as celebrações, reuniam-se na casa do Dr. José d'Almeida. A sua residência era situada na Beach Road, no local do atual Raffles Hotel. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Brasil-Singapura-Cultura-Natureza.html)


Orientação de cunho lazarista em Singapura


Neste contexto, cumpre salientar o significado para os estudos culturais relativos a Singapura da vinda de um padre da Congregação das Missões. Esses padres, também conhecidos como Lazaristas (da casa-mãe St-Lazare, em Paris), ou Vicentinos ou Paulinos, dirigiam a atenção sobretudo às missões populares, a exercícios religiosos, à formação do clero e à missão entre os não-cristãos. Atuou de forma ampla sob o aspecto educativo com os seus seminários maiores e menores.


Fundada em 1625 e confirmada em 1632,  a Congregação das Missões enviou missionários a várias regiões da Europa e de outros continentes, estando ativa em Portugal desde 1713. Desde 1697 na China, substituíram os jesuítas a partir de 1773, quando da extinção da Companhia de Jesus de Portugal e das regiões ultramarinas.


O Pe. Francisco da Silva Pinto e Maia trazia a orientação dirigida à formação e aos estudos que fizeram do Seminário de São José de Macau um dos principais centros de estudos do Oriente. Ali conhecera uma instituição que tinha uma concepção ampla e diversificada de insino, que incluia instrução primária e secundária, curso teológico, que oferecia aulas de inglês comercial, de china cantonense para chineses e europeus, de desenho, ginástica e de música vocal e instrumental. Ali se formaria o compositor Conego Conceição Borges, altamente considerado pelos historiadores locais do seculo XIX (D. J. Paulino d‘Azevedo e Castro, op.cit. 84).


A maior parte do clero da região assim como leigos que alcançaram posições de influência na administração e no comércio receberam ali formação. Dava-se, consequentemente, particular atenção ao estudo de línguas, do português, do inglês e do francês.


Missão Portuguesa versus Missão Francesa


A história do Catolicismo em Singapura foi marcada pelas diferentes inserções culturais e pelas diferentes jurisdições eclesiásticas entre portugueses e franceses. Se até então o vigário apostólico do Sião não encontrara um sacerdote para ser enviado e não o tinha podido fazer pelo fato de Singapura não pertencer à sua jurisdição.  (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Franceses-e-Padroado-Portugues.html)


Em 1831, o Mons. Barholomeu Brugiere, M.E.P., Bispo de Capso, coadjutor para o Sião,dirigindo-se a Bangkok, passou por Singapura, ali ficando até 1832. Passou a celebrar na casa de Mac Swiney. Ao partir, deixou encarregado dos católicos o Pe. Julien Marc Clemenceau, M.E.P.


Ao chegar em Singapura, o Mons. Brugiere anunciou ao Pe. Francisco da Silva Pinto e Maia, em carta de 10 de outubro de 1831, que possuía jurisdição espiritual sobre Singapura com base em decreto do Papa Leão XII, de 16 de Julho de 1827.


Essa situação causou mal-estar na comunidade católica de Singapura, foi tratado na imprensa e teve dimensões internacionais, com consideráveis consequências.


Sentia-se, aqui, uma afronta aos privilégios e às responsabilidades fundamentadas no Direito do Padroado português. Segundo a antiga tradição do Padroado, cabia a Goa a jurisdição da região na qual se inseria as colonias no Estreito, e segundo essa jurisdição é que o Pe. Francisco da Silva Pinto e Maia atuava.


Jurisdição de Goa versus jurisdição de Bangkok


O decreto pontifício, enviado diretamente ao Sião, havia sido expedido sob o pressuposto de que os católicos locais estariam sem assistência religiosa, provavelmente devido às informações vindas do Sião, o que, porém, não correspondia à realidade local. O Pe. Pinto e Maia já estava ali atuando regularmente desde 1825, ou seja, dois anos antes do decreto. Tomou conhecimento de sua existência apenas em 1831, com a chegada dos missionários franceses, ou seja, quatro anos após a sua expedição.


Esse conflito não deve ser visto apenas como expressão de dissidência de administração político-eclesiástica na história cultural. Necessita ser considerado no contexto mais amplo do já secular campo de tensões entre o Padroado e a Congregação De Propaganda Fide (1622), com as suas diferentes tradições históricas, marcadas pelas circunstâncias que levaram às suas ereções, assim como pelas suas concepções e métodos. Vinculavam-se com diferentes configurações culturais na própria Europa, e os missionários traziam consigo diferentes pressupostos culturais.


Compreende-se, assim, que os portugueses não podiam aceitar a jurisdição pretendida pelos franceses. Assim, o Pe. Pinto e Maia deu conhecimento da situação ao Arcebispo de Goa, que, em Carta Pastoral de 12 de maio de 1832, dirigida aos católicos de Singapura, acentuava que esta se localizava na diocese de Málaca, sufragâneo de Goa, não fazendo parte da jurisdição missionária do Sião. O sacerdote português e os católicos de Singapura foram proibidos, sob pena de excomunhão, de obedecerem a outro bispo que não o de Goa.


Uma dupla jurisdição passou a vigorar em Singapura: os portugueses, sob o Pe. Pinto e Maia continuaram subordinados a Goa, os franceses, sob o Pe. Boucho, ao Vicariado Apostólico do Sião.


Bula Multa Praeclara (1838)


Uma mudança grave para a comunidade portuguesa no Sudeste asiático foi causada pela bula Multa Praeclara, do papa Gregório XVI. Segundo esse documento, a Diocese de Málaca, então dirigida pelo Pe. Francisco Gomes, vigário da Igreja de São Pedro desde 1826,  passou a ser subordinada ao Mons. Frederick Cao, Vigário Apostólico de Ava e Pegu, ou seja, foi desmembrada da jurisdição de Goa.


Uma diocese de antiga tradição portuguesa, fundada que havia sido em 1558, passava, assim, a pertencer a um outro contexto histórico-cultural do Catolicismo no Este Asiático. Consultado o Arcebispo de Goa, mais uma vez este salientou o seu direito de jurisdição, obrigando ambos os sacerdotes à obediência, sob pena de excomunhão.


A bula papal não foi reconhecida em Goa. Na época, as relações diplomáticas entre o Vaticano e Portugal estavam interrompidas e a rainha não havia sido informada. As autoridades foram informadas a posteriori, através daqueles diretamente envolvidos em Málaca e em Singapura. Isso levou a posicionamentos de rejeição graves da bula pontifícia e de resistência para com os Vigários Apostólicos por parte dos sacerdotes na Índia, em Singapura e em Málaca.


Apenas com o reatamento das relações diplomáticas entre Portugal e a Santa Sé, em 1841, a situação modificou-se. Com a Concordata de 21 de fevereiro de 1857, os direitos consuetudinários de Portugal na Índia e em Málaca - assim também em Singapura - foram reconhecidos pelo Vaticano.


Ao morrer, o Pe. Francisco da Silva Pinto e Maia  C.M. deixou meios para a construção de uma capela. Com doações do rei de Portugal, construiu-se a igreja entre 1851 e 1853, dedicada a São José, sob a direção de seu sucessor, Vicente de Santa Catarina, que chegara a Singapura em 1848.


Nessa época, a missão católica desenvolvia atividades entre os imigrantes que vinham como trabalhadores, sobretudo entre os mais pobres, chineses e indianos.


Da jurisdição de Goa à jurisdição de Macau


Uma nova mudança substancial na inserção de Singapura em contextos eclesiásticos deu-se na década de 80, quando, por Concordata de 23 de junho de 1886, assinada pelo Papa Leão XIII e pelo rei D. Luís, Málaca e Singapura passaram à jurisdição de Macau.


Se o elo com Macau sempre havia sido estreito - como demonstrado pelo Pe. Pinto e Maia -, agora fortalecia-se a sua posição jurídica e administrativa. Do Padroado, toda a Índia passou à Santa Sé, obtendo o rei português o direito de presentação para Bombay, Mangalore, Quilon e Madura. Parte da hierarquia portuguesa permaneceu em algumas partes de Goa como sede patriarcal, com sufranatos em Cochin, Meliapur e Mamao.


Construção e consagração da igreja de São José como marco da história cultural


A pedra fundamental da construção foi lançada em solenidade relaizada a 21 de agosto de 1904, durante a primeira visita pastoral do bispo de Macau, destacado promotor da restauração litúrgico-musical na sua Diocese. A construção de uma igreja arquitetônicamente representativa possuia um significado supra-regional.


Como D. João Paulino d'Azevedo e Castro na sua obra mencionada salientou, Singapura surgia para os portugueses como


"o centro d'onde irradia a nossa influencia e acção n'aquelle meio e até para mais longe, pois é alli a séde central das nossas Missões dos Estreitos e da assaz importante Procuradoria da administração dos Bens das Missões Portuguezas na China, encarregada de zelar n'aquella colonia os interesses do Patrimonio das Missões". (pág. 144)


A igreja foi construída com rendimentos de um Church Building Fund e com uma subscrição iniciada em 1891 pelo Superior da Missão, o Pe. José Joaquim Baptista. Também realizaram-se apresentações teatrais e artísticas destinadas a angariar fundos por amadores da Missão Portuguesa no Theatre Royal de Singapura.


Ao lado de doações em dinheiro, muitos contribuiram com serviços prestados, acessórios, mobiliário e alfaias. Entre esses donativos, salientaram-se dois altares de mármore executados na Itália, uma balustrada em madeira de téca no transpeto, pias de água-benta e pia batismal de mármore, importadas da Europa.


Também foram doadas lâmpada de prata pendente do teto da capela-mor, castiçais, mesas de credencia, vasos em prata dourada, paramentos,coleção de quadros da Via Sacra, vitrais das janelas da capela-mór e do cruzeiro, várias imagens, entre elas uma do Sagrado Coração de Jesus procedente do Porto, outra do titular da igreja, S. José, em mármore Carrara, vinda da Itália. O púlpito, em madeira de téca, em estilo neo-gótico, foi concebido para ser um dos principais elementos do interior da igreja. Particular interesse demonstrou, na época o carrilhão do campanário,


"que com suas notas, ora plangentes ora alegres, desperta o sentimento religioso e a elevação das almas para Deus na população circumvisinha (...)" (d'Azevedo e Castro, op.cit. 146)


Restauração sacro-musical de Macau e tradição coro-orquestral de Goa


As celebrações e as festividades da inauguração da igreja, a 30 de junho de 1912, representaram um ponto culminante na história da comunidade portuguesa e seus descendentes de Singapura. Foram presididas pelo bispo de Macau, assistido por dois capitulares da sé-catedral, do Vigario geral Superior da Missão e outros sacerdotes do Padroado português em Singapura e em Málaca.


Presentes estavam, entre outros, o Governador de Singapura e Alto Comissário do Govêrno Britânico junto aos Estados Malaios, Arthur H. Young, com o seu Ajudante, representantes consulares de Portugal, da Itália e da França, da imprensa, do Colégio de Santo Antonio da Missão Portuguesa, a Superiora do Colégio do Sagrado Coração de Jesus de Málaca, do Colégio de Meninas da Missão Francesa, representantes das principais casas comerciais de Singapura e da conpanhia construtora, sob a direção do engenheiro Mc-Leod Craik. Muitos dos presentes haviam vindo de Málaca e de cidades vizinhas.


Correspondendo à orientação do Bispo de Macau, deu-se particular atenção à parte litúrgico-musical segundo os preceitos do Motu proprio de Pio X, de 1903:


O majestôso côro por cima da entrada, a dentro da sua graciosa arcaria e linda balaustrada, era occupado pelos cantôres da igreja que, em vozes harmoniosas e bem timbradas, executavam ao som da orchestra e do magnifico orgão, no rigor do Motu Proprio do Santo Padre Pio X, as melhores musicas do seu repertorio, semelhando, da altura a que se achavam e pelo primôr da execução, mais um côro angelical que do Céo tivesse descido a tomar parte em tão grandiosa solemnidade, do que um concerto de vozes humanas!! (op. cit. pág. 147)


Nessa solenidade de inauguração, porém, a língua utilizada na homilia já foi o inglês:


Ao Evangelho, (...)  prégou o Vigario da mesma, Rdo. P. Bragança, um bello sermão em inglez, em que se houve á altura do assumpto, do auditorio e da occasião, firmando assim os seus creditos d'orador sagrado na lingua de Byron e de Milton, como jà perante outros auditorios os havia firmado na formosa lingua de Bernardes e Vieira. (op.cit. 148)


Nos eventos que se seguiram, a comunidade prestou homenagens ao Bispo da Diocese, entregando a êle a alocução que acabara de pronunciar,


impressa em pergaminho envolvido em capa de veludo carmezim recamada d'oiro, em que sobresahia o brazão episcopal no meio d'outros lavôres primorosamente bordados, e bem assim, n'um lindo cofre de prata, - uma preciosa Cruz peitoral d'oiro cravejada d'ametistas, com o competente cordão do mesmo metal, - tudo em reconhecimento da parte activa que o Bispo, desde o lancamento da pedra fundamental da nova igreja, tomára para que aquella majestosa fabrica, que a todos apavorara, viesse a sêr uma realidade, brilhantemente coroada pelas festas a que estavamos assistindo, as mais imponentes e bellas que no seu genero se tem visto em Singapura! (op.cit. 149)


À tarde, celebraram-se Vésperas do Santíssimo Sacramento exposto, com parte musical cuidadosamente preparada de acordo com os preceitos litúrgico-musicais. Os versículos dos Salmos foram cantados alternadamente pelos cantores no côro, pelos sacerdotes e os meninos na capela-mór, chamados, em Singapura, de servers, assim como pelas alunas do Colégio de Santo Antonio. Terminadas as Vésperas, realizou-se uma procissão com o Santíssimo Sacramento ao redor da igreja. Cantou-se, a seguir, um solene Te Deum a três vozes, acompanhado a órgão e orquestra, com a benção do Santíssimo.


Entre os muitos atos festivos, salientou-se o da iluminação a luz elétrica da fachada da igreja, com balões venezianos na área e na casa da Missão.


Nessa atmosfera feérica, realizou-se então um concerto dos músicos que haviam vindo de Goa e que possibilitaram o acompanhamento orquestral da música litúrgica:


Das 7 ás 11 da noite tocou no portico uma magnifica orchestra constituida por sympathicos e habeis portuguezes de Gôa, os quais já tinham prestado gratuitamente o seu concurso durante as festas religiosas de manhã e de tarde. No fim de cada peça do seu variado e escolhido repertorio eram ovacionados por uma prolongada salva de palmas.


Reinou grande animação até´alta noite, aproveitando-se os espectadores da occasião para visitarem a residencia nova dos missionarios, ficando muitos nas varandas a gosar o agradavel fresco, a formosa illuminação e a deliciarem-se com a musica da orchestra. (op.cit. 150)


A participação dos músicos de Goa na inauguração da igreja da Missão Portuguesa de Singapura adquire particular significado. Ela representou o antigo elo de Málaca e Singapura à jurisdição da India Portuguesa, agora submetida a Macau. Ela representou, também, a presença de uma antiga cultura da música sacra luso-indiana de acompanhamento orquestral em cerimônias marcadas pela orientação litúrgico-musical restaurativa propugnada pelo bispo de Macau.


As solenidades de 1912 foram, assim, não apenas internacionais na sua constituição, mas também interculturais no próprio âmbito do mundo de cultura portuguesa, integrando músicos da antiga tradição musical na execução coral acompanhada ao órgão.




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Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. "Questões de Direito na história cultural e eclesiástica dos portugueses em Málaca-Singapura: Saint Joseph Church". Revista Brasil-Europa 127/9 (2010:5). www.revista.brasil-europa.eu/127/Portugueses-em-Singapura.html



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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 127/9 (2010:5)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2642




Questões de Direito na história cultural e eclesiástica dos portugueses em Málaca-Singapura
Saint Joseph Church




Ciclo „Direitos Humanos, Estudos Culturais e História Diplomático-Cultural“ da A.B.E.
Preparatórias à passagem dos 500 anos da tomada de Goa e Málaca pelos portugueses

Igreja de São José de Cupertino da Missão Portuguesa de Singapura
25 anos de fundação alemã do
Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.


 










  1. Singapura
    Fotos A.A.Bispo 2010
    ©Arquivo A.B.E.






 

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