Culto mariano em Penang e Malaca. Revista BRASIL-EUROPA 135/14. Bispo, A.A. (Ed.). Academia Brasil-Europa e ISMPS





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Parque de plásticas de seres do mar, George Town

Parque de plásticas de seres do mar, George Town

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 135/14 (2012:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2855


Parque de plásticas de seres do mar, George Town


Instituições em visita

Tradições religiosas cristãs-ocidentais e asiáticas em processos internacionalizadores I
o culto mariano na Malásia e seus fundamentos na ação dos portugueses em Málaca


Ciclo de estudos Malásia/Brasil da A.B.E.. Catedral da Assunção e St. Xavier's Institution, George Town, Penang

 
Penang

Por motivo da passagem dos 500 anos da conquista de Malaca em 1511 pelos portugueses, a A.B.E. deu início a um programa de trabalhos no Sudeste da Ásia, que foi aberto em Singapura, em 2010 (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Singapura-Brasil.html ). Nessa ocasião, considerou-se em particular a comunidade de ascendência portuguesa dessa cidade-estado, que remonta sobretudo a imigrados de Malaca ao novo centro comercial implantado pelos ingleses no início do século XIX (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Portugueses-em-Singapura.html).

Nesses trabalhos, constatou-se também a intensidade de formas populares de culto entre chineses e indianos vindos respectivamente como comerciantes e como trabalhadores para a região e que manifestam interações religioso-culturais diversas e permitem que se reconheçam paralelos entre imagens de diferentes proveniências (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Realismo-asiatico-o-Merlion.html).

A principal dessas correspondências diz respeito a uma divindade feminina relacionada com o mar ou com as águas em geral, venerada sobretudo por marinheiros e imigrantes vindos pelo Mar do Sul da China e que, sob muitos aspectos, surge como similar a representações conhecidas da tradição brasileira relacionadas com Maria (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Mazu-em-Singapura.html).

Que essas expressões brasileiras remontam a antigo fundo de concepções e imagens provindos da Idade Média transmitido pelos portugueses em formas populares de culto e de expressões festivas a várias regiões do mundo por êles atingidas, isso pôde ser estudado na Índia, onde em contexto marcado pelo culto mariano, em particular da Imaculada Conceição, surge a figura da sereia (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/131/Goa-Catedral_de_Pangim.html ).

O significado desse complexo imagológico para os estudos relacionados com a ação portuguesa e os processos culturais desencadeados pelos portugueses no Oriente evidencia-se nos dois de seus principais centros, Goa e Macau, no primeiro mais na forma mais ocidental da veneração a Maria, no segundo do culto chinês a Ma, e que se expressa até mesmo na denominação do antigo território.

Dando prosseguimento aos trabalhos no Sudeste da Ásia, focalizando-se agora mais a Tailândia nas suas relações com o mundo de língua portuguesa, iniciadas no contexto da conquista de Malaca, em 1511 (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Sudeste-da-Asia-Brasil.html), constatou-se uma proximidade entre o centro católico e o bairro chinês de Bangkok.

Constatou-se, nos estudos voltados à comunidade luso-siamesa, a força do culto mariano, marcada pelo mistério da Imaculada Conceição, da Assunção e da prática do Rosário. Ao mesmo tempo, constatou-se a força do culto à divindade chinesa relacionada com as águas (vide http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Cultura-luso-siamesa.html). Significativamente, a atividade missionária cristã teve quase que exclusivamente sucesso entre chineses, tendo sido chineses os grandes benfeitores da catedral e hoje importante parcela da comunidade do Rosário.

A consideração de fontes históricas disponíveis demonstrou o significado das atividades de missionários dominicanos provenientes de Malaca na propagação do culto mariano e da prática do Rosário no antigo Sião, tendo-se até mesmo notícia da criação de uma Confraria do Rosário aos moldes de Malaca em Ayutthaya, em época que o exercício do Catolicismo sofria restrições devido ao domínio holandês.

Tem-se registros, por outro lado, de que a força do culto mariano e sobretudo da prática do rosário não foram extintos em Malaca dominada pelos holandeses, mas que, mesmo sem a presença de missionários, permaneceram na cultura devocional popular. Com  a migração de cristãos de ascendência portuguesa de Malaca aos novos centros comerciais do Estreito no século XIX, a cultura cristã assim configurada foi transplantada para portos de mar marcados de forma particularmente intensa pelo comércio internacional e pela imigração de várias partes do mundo.

Para o aprofundamento dos estudos em andamento, dois foram os caminhos percorridos nas reflexões encetadas em Penang, um histórico a partir de fontes documentais relativas ao culto mariano em Malaca, e o empírico constante de observações de práticas e expressões atuais dos chineses e malaio-chineses.

La Salle, George Town

Tradição mariana de George Town: antiga catedral da Assunção

Na atual Malásia, um dos principais, senão o principal centro do Catolicismo é a cidade de George Town. Essa cidade é, ao mesmo tempo, principal centro dos influentes "Chineses do Estreito", uma parcela populacional que mais evidencia interações culturais na sua forma de vida e expressões (vide http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Chineses-do-Estreito.html). George Town é significativamente também centro do culto à divindade feminina relacionada com as águas de expressão chinesa, um culto que, para além de tradicionais templos, adquire na atualidade um extraordinário significado, tendo-se ali levantado recentemente uma monumental imagem, a maior do mundo. (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Kuan-Yin-em-Penang.html)

É compreensível a intensidade do culto mariano em George Town, considerando ser esta uma cidade portuária, marcada pelas águas, pela vida de mar e por tradições religioso-culturais de mareantes, condições conhecidas de outras cidades do mundo que se caracterizam por expressões da veneração a Maria. Uma particular atenção merece, consequentemente, concepções do Marianismo relacionadas com a festa do dia 15 de agosto.

Assim como a catedral de Bangkok às margens do grande Menam (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Universidade-Bangkok.html), também a antiga de George Town é dedicada à Assunção. As circunstâncias históricas do levantamento dessa igreja e da sua dedicação indicam os estreitos elos do culto mariano com a história de Penang.

Segundo a tradição, as suas origens justificam-se pela data de chegada do Capitão Francis Light (1740-1794) à ilha, o dia 15 de agosto. Este fundador do forte Cornwallis foi também aquele que deu ordens para que se levantasse uma igreja dedicada à Assunção e que se tornou, assim, a primeira igreja católica da Malásia ao norte de Malaca.

Algumas questões, porém, aqui se levantam, uma vez que o Capitão Francis Light era anglicano, atuando em nome da Companhia Britânica das Índias Orientais, que até mesmo vedava a seus oficiais casarem-se com mulheres católicas. A sua história de vida sugere uma acentuada devoção mariana na família, uma vez que teria sido filho de uma Mary Light, provavelmente um pseudônimo. Foi desde cedo um homem do mar, navegador que viajou por diferentes regiões do mundo, profundamente familiarizado com tradições de marujos, e particularmente vinculado ao reino do Sião. A mãe de seus filhos, Martina Rozells, teria sido luso-siamesa, católica, e como tal portadora de uma cultura religiosa profundamente marcada pela veneração mariana implantada no antigo reino do Sião por dominicanos provenientes de Malaca. (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Portugueses-no-Siao.html)


O assentamento de Francis Light foi um dos empreendimentos comerciais e coloniais de maior sucesso nos Estreitos, atraindo comerciantes e imigrantes de diferentes regiões do Oriente e do Ocidente. Transformando-se em centro marcado por diferentes culturas e religiões, experimentou também um crescimento da população cristã.

Se o Anglicanismo manteve a posição privilegiada que lhe cabia em assentamento e posteriormente em colonia britânica, o que se manifesta na arquitetura da monumental catedral anglicana e nos túmulos de missionários no histórico cemitério anglicano, o Catolicismo cresceu sobretudo com cristãos que atuavam no comércio marítimo, fato que pode explicar a intensidade de formas mais populares do exercício religioso e de práticas festivas.

O aumento dos católicos em George Town no decorrer do século XIX levou a que a antiga igreja fosse substituida por uma mais ampla e representativa, a atual, e que, na sua arquitetura, permite que se reconheça a influência inglêsa.

A catedral da Assunção tornou-se um centro da vida sacro-musical de Penang, possuindo hoje um dos mais antigos, se não o mais antigo órgão de tubos da Malásia e um coral. O significado arquitetônico e histórico-cultural da igreja tornou-se internacionalmente conhecido com a sua nomeação a patrimônio cultural quando do reconhecimento , em 2008, de George Town - ao lado de Malaca - como um dos World Heritage Sites pela UNESCO.

À frente do portal da igreja edificou-se uma capela com a imagem de Maria e com representações que a identificam como "lira do Espírito Santo". Com essa capela, tem-se em Penang uma situação similar àquela observada em muitas catedrais e igrejas principais do Oriente, onde grutas com a imagem de Fátima foram levantadas em áreas fronteiriças de igrejas e casas religiosas.

Sob o signo da pedagogia restauradora de orientação pragmática: St. Xavier's Institution

Sob o aspecto de estudos da história missionária, a principal instituição de George Town é a St Xavier's Institution, atualmente uma das últimas dirigidas por missionários na Malásia.

Já nos primórdios do assentamento dos inglêses na região, em 1787, criou-se uma escola destinada às crianças de malaios que habitavam na ilha,
ainda coberta de matas, e que viviam sobretudo do mar.

O desenvolvimento das atividades missionárias e com elas de ensino processou-se em estreitas relações com acontecimentos europeus. Com o término do período napoleônico e a Restauração, possibilitando o ressurgimento de ordens e levando a uma intensificação de correntes religiosas que se voltavam à revivificação da vida religiosa espiritual a partir da tradição e da união com Roma, religiosos franceses chegaram a Penang, onde passaram a assumir as atividades de missão e ensino. Com isso, a região passou a ser integrada na esfera marcada pela ação de missionários franceses no Sudeste da Ásia que, a serviço da Propaganda Fide de Roma já há muito tomara a si o papel antes exercido pelo Padroado Português.

Se a tradição remontante à ação dos portugueses permaneceu vigente sobretudo na esfera da cultura popular de Malaca, a história católica de George Town desenvolveu-se sob a égide da missão francesa.

A particularidade do desenvolvimento local deveu-se sobretudo às características da ordem que tomou a si as atividades de formação cristã. Se em outras regiões do Sudeste Asiático, por exemplo no Sião, a atenção dirigiu-se sobretudo à formação de clero nativo segundo a tradição da Sociedade de Missões Estrangeiras de Paris, em Penang foi dirigida privilegiadamente ao ensino escolar de crianças de camadas sociais mais modestas.

Essa orientação foi devida à ação dos Lasalliens em Penang, os Frères des écoles chrétiennes. Esses religiosos, que remontavam à obra de Jean-Baptiste de La Salles (1651-1719), prendiam-se a uma tradição que, apesar do seu direcionamento à pedagogia, havia sido criticada por iluministas no passado pela pouca atenção concedida à erudição e aos estudos clássicos. O estudo do latim não era fomentado - para que os religiosos não seguissem o sacerdócio -, o que levou a que a orientação do ensino não fosse dirigida tanto às disciplinas da tradição humanística, mas sim a áreas de conhecimentos práticos.

Nesse orientação "moderna" residia a natureza inovadora do ensino na tradição de La Salles em constraste aparentemente paradoxal ao conservadorismo restaurador das correntes em que se inseria. Também paradoxal surge o desenvolvimento do ensino local considerando-se que a tradição religiosa herdada de Malaca havia sido determinada pela ação dos dominicanos, uma ordem que, pela sua história, era marcada pela atenção aos estudos e à ciência. Teria havido, no quadro assim esboçado, uma reorientação de princípios culturais e educativos em direção a áreas mais práticas dos conhecimentos, o que teria vindo de encontro às necessidades das classes comerciais em ascensão na cidade portuária.

A denominação da St. Xavier's Institution indica também o modêlo que se escolheu para as atividades pedagógicas em Penang: S. Francisco Xavier S.J. (1506-1552) ou seja, o do grande vulto da história missionária do arquipélago malaio e, com êle, dos jesuitas, ou seja, o da militância. A veneração de S. Francisco Xavier em Penang adquire significado no contexto global dos estudos da restauração católica no século XIX e, em particular, nos estudos jesuíticos relativos ao mundo de língua portuguesa (http://www.revista.brasil-europa.eu/131/Goa-Bom_Jesus.html).

A St. Xavier's Institution alcançou o seu apogeu à época em que George Town tornou-se porto de grande importância no comércio internacional. Em fins do século XIX, com o desenvolvimento do comércio do caucho a partir das mudas de seringueira introduzidas do Brasil, o porto de Penang passou a desempenhar um papel que até então coubera aos portos da Amazônia. George Town surge, assim, como uma espécie de Manaus ou Belém do Sudeste Asiático.

Estudos de fundamentos do marianismo em Penang: fontes históricas

Importante documento para o estudo dos fundamentos históricos da veneração mariana em Malaca é a "Summaria Relaçam do que obrarão os religiozos da Ordem dos Pregadores na conversão das almas e pregação do Sancto Evantelho em todo o Estado da India e mais terras descubertas pellos portugueses na Azia, Ethiopia Oriental, e das missões em que autualmente se exercitão, com todos os conventos, cazas e numero das relligiões que de prezente tem esta sua congregação da India Oriental" (Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente VII, coligida e anotada por António da Silva Rego, Lisboa: Fundação Oriente/Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses 1994, 367 ss).

O autor recebera do Governador da Índia, Antonio Paes de Sande, em 1679, uma ordem de dar notícias sôbre a ordem, o número de religiosos e "cristandades" por ela criadas. Dando cumprimento a essa tarefa, o autor resolveu também considerar a história das atividades dos Dominicanos no Oriente desde o seu início.

No tópico 11 do texto, o autor trata da fundação da casa de Malaca dos Dominicanos. A fundação dessa cristandade dos religiosos de São Domingos seguiu-se àquela da ilha de Goa, ocorrida à mesma época. Após descrever a região em que se situa Malaca, trata da chegada de dominicanos, em 1554, para revificar um convento dedicado a Nossa Senhora do Rosário e que se tornou o centro de onde saiam missionários para todo o Sudeste da Ásia. Já essa denominação indica, assim, o significado que desde o início coube ao culto mariano e à prática do rosário em Malaca.

"Esta situada esta cidade naquella parte da terra que os geographos chamão Aurea Chersonezo, ficando quase no meyo do canal que corre entre o continente do norte que he a Azia e a ilha de Sumatra que he do Sul, em dous graos do mesmo norte. E estendendo-se ao modo que vemos Lisboa pella ribeira, com distancia de huma legoa, essa cidade que foi conquista do grande Affonço de Albuquerque no anno de 1511, caminharão alguns riligiozos da ordem dos pregadores no anno de 1554, enviados por seu prelado mayor, o padre frey Diogo Bermudes a povoar huma caza, a que derão principio o padre frey Gaspar da Cruz, natural da cidade de Evora, filho do convento de Azeitão, e dos companheiros do padre vigario geral (de quem adiante trataremos nesta relação muitas vezes), porque em seu grande zelo de salvação das almas deu principio a muitas christandades em todo o Sul ou, como diz outra memoria, a fundarem de novo esta caza de Malaca, de que foi fundador o padre frey Francisco de Robles, cuja vida deixamos ja escrita, quando falamos do convento de Cochim.

Chamou-se esta caza Nossa Senhora do Rozario e pera ella levou o padre Francisco alguns companheiros que sempre nella ouve, sendo em algum tempo sinco e seis os que de assento nesta casa rezidião, porque como hera o hospicio donde sahião os missionarios pera todas as nossas christandades do Sul, convinha que tivesse sempre religiozos baastantes a suprir as faltas onde as ouvesse." (op.cit. 410 ss.)

O convento dos dominicanos de Malaca tornou-se um centro de estudos e de erudição:

"Teve esta caza prelados muito authorizados e foi sempre grande o cuidado que os prelados desta congregação puzerão na escolha de vigarios, por lhes ser muito recomendado pellos padres geraes da ordem, que fossem sempre sogeitos capazes de governar aquellas christandades com titulo de supperiores de todos os que havia no Sul e dos religiozos que nella ouvessem a aportar a Malaca, com faculdade de os mudar de huma para outra parte, dar licença pera tornarem a India e pera tudo o mais que fosse conveniente ao bem da religião e das christandades, dando depois noticia do que obrava ao vigario geral da congregação e, em execução desta ordem, foi prelado desta caza o padre mestre Frey Fernando de Santa Maria que no convento de S. Domingos leo, muitos annos, theologia e depois foi prior nelle, ultimamente, vigario geral, quatro annos, no fim dos quaes acabou a vida com sercunstancias que nos fazem crer que esta sua alma na gloria. O mesmo lugar de vigario de Malaca occuparão outros muitos religiozos de letras e authoridade". (loc.cit.)

Tradição de resistência aos holandeses e ao Protestantismo

O documento salienta as dificuldades materiais por que passavam os dominicanos em Malaca devido ao alto custo de vida, acentuando assim a força da convicção que os movia. Apesar de sua pobreza, os dominicanos atuaram intensamente através de pregações públicas e atos de devoção, estes marcados, segundo a tradição da ordem, sobretudo pela prática do rosário. Esses religiosos estiveram entre aqueles que mais combateram os holandeses, que surgiam sobretudo aos olhos dessa ordem de pregadores como herejes, sendo dos últimos a abandonar Malaca,

"Pera o sustento dos relligiozos que assistião nesta caza derão os vice reys e governadores huma ordinaria de trezentos e secenta cruzados, que depois o governador Manuel de Souza Coutinho, por huma sua provizão paçada em 19 de Junho de 1590, extendeo a quatrocentos, respeitando, como nelle dis, a carestia da terra, não haver nella esmolas e ser a dita caza huma continua hospedaria dos religiozos que vão e vem das christandades. (...) He tambem muito grande prova de pobreza em que vivião estes religiozos mandar o governador Manuel de Souza Couttinho, por sua provizão paçada em 5 de Dezembro de 1590, que vistas as muitas necessidades que padecião os religiozos de Malaca e tambem os que hião pera as christandades, por ser a terra carissima, se dessem aos padres missionarios, enquanto residissem na dita cidade, duas tangas, por dia, a cada hum, por seu sustento e vinte cruzados mais pera a matolotagem, quando se embarcassem.

Nesta pobreza vierão os religiosos todo o tempo que assistirão em Malaca, pregando e dando cumprimento as mais obrigações do seu instituto, athe que se perdeo esta praça, em Janeiro de 1640, no fim do governo de Antonio Telles de Menezes ou da Silva, depois de largo serquo que lhe puzerão os olandezes, em que os nossos religiozos defenderão com notavel valor o balluarte S. Domingos que tinhão a seu cargo, entre os quaes se achou o padre mestre frey Lucas da Cruz, filho desta congregação e do convento de Cohum, vindo então de Solor, de quem na relação destas christandades faremos menção; foi sempre o voto do padre mestre que a praça se não entregasse, porque fora em seus principios soldado, antes de tomar o habito e assy com vozes e gritos persuadio sempre a defeza da cidade, mas não sendo ouvido, ficou elle com os mais religiozos prezioneiro dos olandezes e ferido de duas lançadas que no serquo recebera." (loc.cit.)

Permanência de tradições cristãs e do culto do Rosário na esfera popular

O documento oferece uma visão expressiva da transformação ocorrida na estrutura missionária da região com a passagem de Malaca ao domínio holandês. Se antes Malaca havia sido o centro do qual partiam os missionários para as diferentes regiões do Sudeste Asiático, com a sua perda as viagens e os elos entre os vários postos missionários se tornaram muito mais difíceis. Importante é salientar que o documento testemunha que na região manteve-se uma cultura cristã no âmbito popular, de forma sobretudo velada, mas tolerada pelos holandeses por motivos pragmáticos. Esses cristãos mantiveram-se organizados em confrarias do Rosário que haviam sido instituidas pelos dominicanos.

"Com a perda desta praça se feichavão as portas pera podermos entrar nas christandades do Sul, com aquella facilidade com que o fazião os religiozos em outro tempo, hindo tomar o porto de Malaca e repartindo-se daly para Solor, Camboja, Sião e Pegu, como logo diremos, porque hoje he ncessario fazer viagens muy cumpridas e atravessadas. Muita christandade se conserva ainda hoje em Malaca dos naturaes da terra, que os olandezes primitem, assim pello interesse que dão a suas alfandegas, como para se ajudarem delles contra os gentios que por terra os trazem ordinariamente inquietos. Assiste nesta christandade hum vigario da terra com poderes de cabido de Goa, emquanto não ouve governador daquelle bispado que assiste nas terras do Sul. Este sacerdote lhe ministra os sacramentos, andando disfarçado como secular, com que tambem dissimulão os olandezes, não ignorando sua assistencia na terra, pella conservação dos christãos naturaes que, sem assistencia do sacerdote, não ficarião nella; nao o consentirião os olandezes se fosse religiozo de qualquer ordem, porque delles tem grandes ciumes e andão sempre com vigias sobre elles para que se embarque e não fique em terra, quando aly chegão alguns hindo ou vindo das christandades do Sul.

Permanesse ainda entre estes christãos a confraria do santo rozario, que nossos religiozos nesta cidade fundarão, a que fazem suas festas do modo que podem, e pera isso tem alcançado dos vigarios geraes desta congregação faculdade, pera que o sacerdote que lhes assiste os possa escrever por confrades e fazer o mais que he concedido aos religiozos de S. Domingos, com que paçarão mais consolados naquelle deserto em que vivem, fora da christandade e entre hereges." (pág. 414)

Este texto tem a sua continuidade no artigo referente a Kuan Yin, nesta edição.

Grupo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Tradições religiosas ocidentais e asiáticas em processos internacionalizadores I. O culto mariano na Malásia e seus fundamentos na ação dos portugueses em Malaca". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 135/14 (2012:1). http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Culto-mariano-na-Malasia.html



  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


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