Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Dança de combates em Lifou.Foto A.A.Bispo ©

Dança de combates em Lifou.Foto A.A.Bispo ©

Dança de combates em Lifou.Foto A.A.Bispo ©

Dança de combates em Lifou.Foto A.A.Bispo ©

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Diálogo em Lifou.Foto A.A.Bispo ©

Dança de combates em Lifou.Foto A.A.Bispo ©

Diálogo em Lifou.Foto A.A.Bispo ©

Diálogo em Lifou. Foto A.A.Bispo ©

Diálogo em Lifou. Foto A.A.Bispo ©

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 136/11 (2012:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2871


A.B.E.


Diálogo intercultural em Lifou sôbre o Revelar-se
Do significado da perspectiva kanak
para reflexões sôbre questões fundamentais da Antropologia e Ética.
De canibalismo e carnivorismo como graus de barbárie


Ciclo de estudos Rio 92-Sydney 2012 da A.B.E. no Pacífico Sul. Lifou, Îles Loyauté/Nova Caledônia

 
Diálogo em Lifou.Foto A.A.Bispo ©


Passados 20 anos do Congresso Internacional dedicado a questões de fundamentos e de bases epistemológicas dos estudos músico-culturais no Rio de Janeiro, ano da passagem dos 500 anos do Descobrimento da América e da Conferência do Meio Ambiente, decidiu-se retomar complexos temáticos então tratados no contexto da Oceânia. (Veja Tema em Debate, nesta edição: http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Australia-Melanesia-Brasil.html))

Naquele ano, as preocupações foram marcadas sobretudo pelo fato de que os Descobrimentos são considerados sob a ótica européia na historiografia, pouco atentando-se à diferente visão histórica que se estabelece se os processos então desencadeados são tratados sob a perspectiva indígena.

Por esse motivo, os trabalhos do projeto então iniciado de atualização de conhecimentos e de aproximações teóricas relativos a culturas indígenas procurou antes considerar a voz dos silenciados, dando oportunidade a que revelassem a sua própria cultura, cabendo aos pesquisadores descobrir no sentido de constatar como é que se revelavam.

Reconheceu-se, desde o início, que essa proposta exigia uma ampliação do campo de estudos para além das fronteiras brasileiras, atentando à problemática indígena nas Américas no seu todo, uma vez que todo o continente passou por similares mecanismos transformatórios desencadeados pelos Descobrimentos e pela colonização.

Esse direcionamento da atenção a processos levou agora, após 20 anos, a uma ampliação ainda maior da área de estudos, dando-se continuidade às reflexões em contexto outro do que aquele do continente americano.

As observações e os diálogos levados a efeito na Nova Caledônia e em outras ilhas da Oceânia foram orientados explicitamente segundo conceitos relacionados com o descobrir e o revelar: entre êles o de revelar-se, o do auto revelar-se e o do revelar o outro. Esses conceitos condutores das reflexões foi escolhido por constatar-se a frequência no uso do termo "revelando" e "descobrindo" em empreendimentos culturais que se desenvolvem tanto no Brasil como em outras regiões do globo, em particular também na Nova Caledônia.

Aproximações: identidade e consciência de Lifou

Diálogo em Lifou.Foto A.A.Bispo ©

Lifou, a principal das ilhas Lealdade, ofereceu possibilidades particularmente favoráveis para o diálogo intercultural assim procurado. Situada a ca. de 100 quilômetros da ilha principal da Nova Caledônia, onde se encontra a capital do território, Lifou pertence à província das Lealdade, sendo que uma das ilhas desse arquipélago - a Île de Pins - a outra província da Nova Caledônia (Vide artigo sôbre a Ile de Pins).

Para além dessa situação provincial, acentuada pela distância com relação à Nouméa, as ilhas Lealdade apresentam uma forte consciência de sua própria história e singularidade cultural. Essa convicção é justificada pelo fato das ilhas Lealdade terem sido cedo descobertas e marcadas por processos desencadeados pelo encontro com os europeus em parte anteriores e mais intensos do que aqueles do passado de Nouméa. Quando esta se encontrava ainda nos seus primeiros anos, os habitantes das ilhas da Lealdade já eram vistos como cristãos profundamente convictos, o que até mesmo criava problemas no relacionamento entre europeus e os nativos da Grande Terre.

Apesar dessa consciência de prioridade sob vários aspectos no processo iniciado com o contato com os europeus, os habitantes das ilhas da Lealdade assistiram ao maior desenvolvimento da ilha vizinha e ao florescimento de Nouméa. Esse quadro histórico permite que se compreendam impressões de uma certa rivalidade existente entre as duas grandes ilhas, explicáveis pela insularidade,  sentimentos de dependência e por suscetibilidades feridas.

Essa situação não é desconhecida do Brasil, onde se conhece relações de rivalidades entre grandes cidades, entre capitais e cidades do interior, entre centros que perderam antigas situações privilegiadas e aqueles de maior desenvolvimento. Suscetibilidade aguçada e orgulho em auto-consciência podem ser registrados em regiões que permaneceram por longo tempo ou se encontram ainda hoje em situação insular, o que cria situações nervosamente delicadas, o que se manifesta no uso pouco contido de meios de expressão, de sinalizações de prontidão à defesa e mesmo à agressividade, o que pode dificultar diálogos.

Nessas condições, compreendem-se também expressões que surgem como excessivas de auto-consciência e de ímpetos de afirmação. Essas expressões de energia menos disciplinada, de atitudes por demais francas que se manifestam na linguagem e em gestos podem ser constatadas também em outros contextos, de modo que surgem antes como resultados de mecanismos culturais que podem ser analisados para além de seus contextos específicos.

Lifou.Foto A.A.Bispo ©

Situação complexa de jovens: impulsos afirmativos, emancipatórios e de reinvidicação

A situação cultural em Lifou é agravada pelo fato das ilhas Lealdade não apenas integrarem a Nova Caledônia, mas sim também por constituirem província de um território francês. No diálogo com jovens participantes de grupos que procuram ao mesmo tempo revitalizar e manter tradições tribais e revelar a cultura de Lifou e de sua comunidade, pôde-se constatar o complexidade de questões que resultam dessa situação e tematizá-la.

Esses representantes da cultura local não apenas possuem a consciência de pertencimento a uma ilha que exige respeito pela sua própria história, cultura e prerrogativas resultantes de uma prioridade no desenvolvimento derivado do encontro com o europeu, mas sim também pelo fato de ser território francês.

Sentimentos de diferenciação intertribal, insular e intra-insular na Nova Caledônia e na Melanésia em geral são expressos juntamente com sentimentos de pertencimento a unidades que abrangem essas diversidades, tanto relativamente à própria ilha, à Nova Caledônia, à Oceânia em geral e ao mundo francês. Ainda que os impulsos diferenciadores favoreçam impulsos emancipadores, tem-se consciência dos direitos resultantes desse pertencimento a país europeu, exigindo que sejam respeitados como franceses e, assim, europeus.

A presença de empreendimentos franceses em Lifou leva ao estabelecimento de laços entre empregadores e empregados, podendo-se encontrar até mesmo habitantes sem maior formação que foram convidados pelos seus patrões a visitar cidades na França, extendendo a sua viagem à Europa a outros países. Não apenas falam francês, mas também conhecem algumas cidades francesas.

Problemas de reintegração de jovens que estudaram na França

Alguns dos mais jovens de Lifou realizaram estudos na França, chegaram até mesmo a graduar-se em universidades, tendo porém que retornar por motivos econômicos, familiares, de saudades, patriotismo e à procura de trabalho, na expectativa de encontrar na sua ilha natal melhores condições e perspectivas para a aplicação dos conhecimentos e das experiências obtidas. Retornados, tiveram em geral essas expectativas frustradas, tendo que assumir trabalhos não à altura de sua formação.

No diálogo que se desenvolveu com alguns desses assim formados na Europa, foi possível revelar-lhes fontes históricas levantadas no âmbito dos trabalhos da A.B.E. que demonstram que essa situação não
é recente, que representou já em meados do século XIX um dos problemas sociais e culturais da Nova Caledônia.
Como o Engenheiro de Minas Jules Garnier em relato publicado na França registrou, os retornados ou aqueles exilados da Europa, que haviam sido obrigados a desempenhar trabalhos que não correspondiam às suas qualificações, diferenciavam-se de outros trabalhadores pela sua instabilidade emocional e insatisfação.

Enquanto os outros trabalhadores se distinguiam por uma distinção inata, reserva e equilíbrio que lembraram ao observador francês atitudes aristocráticas inglesas, esses vindos da Europa, bem formados, mostravam-se tensos, tendentes a repentes nervosos, sempre prontos a explosões, denotando insuficiente urbanidade.

"(...) du reste, parmi eux, on rencontre fréquemment des jeunes gens instruits, titrés quelquefois, que des revers de fortune ont forcés de s'exiler de l'Europe; ils sont venus dans ces pays pleins de ressources, essayer de reconquérir, par un travail pénible mais rémunérateur, la situation qu'ils ont perdue. Cependant ceux-là se distinguent aussi quelquefois par leur instabilité, leur caractère irritable; ils supportent mal le joug." (Jules Garnier. "Voyage a la Nouvelle-Calédonie", Le Tour du Monde XVI, 402° Liv. 161, 155 ss., 166)

Essa situação agravou-se pelo fato das ilhas da Nova Caledônia terem-se tornado locais de deportação. Os franceses para ali enviados, em parte pelo que se afirma sem razões mais graves para o degrêdo, teriam acentuado essas tendências descritas à insatisfação. Teriam acentuado uma síndrome de exílio que explicaria instabilidades e compensações emocionais que se manifestam em expressões excessivas de auto-afirmação.


Experiência da má imagem e de discriminações de kanaks na Europa

Um problema ainda mais agravante é aquele resultante de discriminações, preconceitos raciais e da imagem extremamente negativa dos kanaks na Europa. No diálogo, jovens de Lifou que estudaram na França e que são conscientes do seu status de nacionalidade, tematizaram os ferimentos por que passaram na sua auto-estima em Paris, onde não foram considerados e tratados à altura de habitantes de um território francês, tendo que viver em esferas subculturais, mais ou menos segregadas e marginalizadas.

Poucos são aqueles vindos de regiões extra-européias que se confrontam com maior carga discriminatória do que os kanaks. O próprio termo tornou-se designação pejorativa, aplicada para desqualificar pessoas que surgem como não merecedoras de respeito.

Constatar e sentir a intensidade dessa atitude discriminatória e de má fama foram as mais duras revelações experimentadas por esses estudantes na metrópole e as consequências desse ferimento da auto-estima fazem-se constantemente sentir no diálogo.

Torna-se aqui necessário, assim, analisar as origens e os contextos nos quais se desenvolveu essa concepção altamente negativa dos kanaks, em particular na França. A questão torna-se, para aqueles formados na França e que passaram por essas experiências em problema interno da sociedade e cultura da própria França e da esfera francesa no mundo.

Um exemplo de revelação negativa de kanaks na França

No diálogo, entre as fontes históricas comentadas, considerou-se o capítulo dedicado aos kanaks em obra francesa de fins do século XIX e início do XX, destinada a escolas e famílias, e que oferece um expressivo exemplo da atitude altamente negativa dos franceses para com os nativos de seu próprio terrítório da Nova Caledônia (Ch. Delon, Les Peuples de la Terre, Paris: Hachette, 5a. ed. 1905, 227-232).

Nesse texto, os kanaks são apresentados em termos dos mais depreciadores, altamente ofensivos para aqueles que hoje o lêem, como povo bárbaro que apenas com a chegada de deportados franceses ter-se-iam civilizado um pouco. A descrição inicia-se com a aparência física dos nativos. Embora registrando-se as suas qualidades físicas, o autor salienta aspectos que testemunham preconceitos raciais relativos à cor da pele, ao cabelo e barba, à forma do nariz e dos lábios, da cabeça, e sobretudo dos olhos injetados que a êles confeririam uma aparência arisca. As mulheres seriam ainda mais feias, envelhecendo precocemente sob o trabalho bruto.

"Depuis que la Nouvelle-Calédonie est devenue un lieu de déportation, les sauvages Kanaques sont, dit-on, en voie de se civiliser quelque peu...Tant mieux, alors: car c'était bien tout ce qu'on peut imaginer de plus affreux que cette noire peuplade. Au physique d'abord: assez bien faits de corps, pourtant, mais d'une désagréable couleur de chocolat, ils ont les cheveux noirs, laineux, la barbe rude et crépue, le nez étaté, de grosses vilaines lèvres de nègres, saillantes et lippues, le front étroit et la tête aplatie; surtout des yeux ingectés de sang qui leur donnent un regard farouche. Les femmes sont beaucoup lus laides encore; accablées des plus rudes travaux, elles sont vieilles de bonne heure, et, alors, horribles." (Ch. Delon, op.cit. 227)

Para além dessas apreciações preconceituosas, o texto salienta a primitividade dos kanaks, que se situariam num nível muito baixo da evolução. Êles teriam tudo a dever aos franceses, uma vez que antes da sua chegada não conheciam outras armas do que a lança de madeira, pedras de arremesso e objéteis de osso; andavam quase nús, não usando mais do que um cinto grosseiro de fibra, assim como uma tira nos cabelos. (loc.cit.)

"Le Néo-Calédonien, avant notre arrivée, ne connaissait pour armes que la lance de bois dur et le casse-tête de pierre emmanché d'une branche fendue, pour outils que des os pointus et des pierres tranchantes. Ils vont encore presque nus, ayant pour tout vêtement une ceinture grossière faite d'écorces, et parfois une torsade de même étoffe parmi les cheveux." (loc.cit.)

O Pilu-pilu na ótica depreciativa francesa dos neo-caledonianos

Uma particular consideração mereceu no diálogo a menção desse autor das festas pilu-pilu. Tratando-se de um grupo de jovens que procuram representar a sua cultura sobretudo através de expressões festivas, com danças, representações de lutas e cantos acompanhados por instrumentos, com as quais se revelam aos visitantes, o confronto com a forma com que essas expressões foram reveladas aos franceses adquiriu particular interesse, sendo recebidas como particularmente ofensivas.

Em especial, constituiu uma novidade o fato dessa publicação incluir uma ilustração do pilu-pilu até então desconhecida.


O autor apresenta, em texto marcado por intensas expressões, os pilu-pilu como um dos mais horrendos sabbats que se poderia imaginar. A ilustração publicada é acompanhada por uma descrição no qual o leitor é levado a sentir a atmosfera quando, ao cair da noite, os neocaledonianos dançavam ao redor de fogueiras e à claridade da lua, com gritos e com o estrondo de madeira batida com golpes fortes, fazendo contorsões aterrorizantes, enquanto que velhas feiticeiras da tribo, com tochas, rodeavam o grupo com rapidez vertiginosa.

"Leur fêtes, qu'ils appellent pilou-pilou, sont bien le plus effroyable sabbat qu'on pouisse rêvre, quand, après s'être bourrés de nourriture, le soir venant, autour des feux allumés ou à la clarté de la lune ils se livrent à des danses effrénées, avec des cris de fauves, un vacarme d'écorces battues à grands coups de bâton, - cela remplace la musique! - agitant leurs casse-têtes, trépignant, faisant des contorsions effroyables, tandis que les vieilles sorcières de la tribu, portant des torches, tournent en rode autour du groupe avec une rapidité vertigineuse." (loc.cit.)

Contraste entre o descrito e a realidade hoje observada

No diálogo, considerou-se que algumas das características principais do pilu-pilu aqui descritas são mantidas, ainda que modificadas; a forma negativa com que foram porém interpretadas e reveladas pelo autor francês surgem como um mal-entendido das intenções de seus participantes.


Ainda hoje, ao revelar a sua cultura a visitantes de fora, os cantores e dançantes de Lifou realizam uma festa onde há comida em abundância.

Dependendo das condições locais, separam-se hoje expressões musicais da encenação dançada de combates, uma vez que essas exigem um terreiro mais amplo para a sua realização. Assim, no ancoradouro, os visitantes são recebidos com cantos que expressam alegria e jocosidade. Essas ações, que hoje se efetuam sobre um pequeno tablado, desenvolve-se com grande intensidade e volume no cantar e no tocar instrumentos, com movimentos e gestos que demonstram um contentamento quase que infantil, em relaxamento e descontração brincalhona. A representação de batalhas é apenas sugerida com gestos mais ou menos intimidadores, porém claramente lúdicos, predominante uma atmosfera de espontaneidade folgazã, pouco marcadapor um interesse em boa execução.

O sentido dessa relação entre representações de agressividade insinuada e a lúdica da festa alegre e cordial de recepção necessita considerações mais aprofundadas e diferenciadas, sendo tematizadas no diálogo em Lifou, mais desenvolvidas porém em outros contextos. (Vide textos a respeito nesta edição)

Trata-se, em princípio, da recepção de visitantes com a demonstração da cordialidade de um povo em espírito pacífico que apresenta a sua belicosidade como folguedo. Essa expressão da combatividade representa também uma fase passada, superada da vida antiga, e a nova natureza, renascida dos habitantes da ilha se manifesta no verde claro das folhas de palmeira com que todos se envolvem. Há assim, um significado mais profundo do uso de atributos de palha sêca e do verde claro das folhas tenras de palmeiras, relacionados respectivamente com a vida superada e a nova, renascida. (Vide outros artigos nesta edição)

Como o registro do século XIX menciona, também hoje ainda se observa que o grupo masculino dos cantores e dançantes é rodeado por mulheres de mais idade, que compartilham dos movimentos e gesticulações.( http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Musica-Nova-Caledonia.html)

Danças de combates como expressão da auto-revelação

A representação das danças de combates, na área mais apropriada para a sua realização, adquire na atualidade antes um cunho de apresentação cultural, com qualidades artísticas de movimentação e de destreza física, o que exige a participação de jovens atléticos e exercitados. Ainda que surgindo como apresentação de extraordinárias qualidades quanto a movimentos e coreografia, a encenação mantém o seu sentido e as formas de expressão tradicionais.


Assim, se o autor francês do século XIX fala de cascos de árvore golpeados com grande força por meio de paus, hoje essa função é assumida por uma caixa de madeira com um orifício, batida com fortes golpes de baquetas grossas por dois dos participantes que se sentam vis-a-vis.

A força, até mesmo a violência com que são executados os golpes, esgotando os tocadores, dá margens a interpretações do sentido desse ato à luz do complexo de significados da representação de combates. O confronto entre grupos contraentes é aqui levado a um plano musical da execução percussiva, na qual ambos os tocadores se contrapõem.

Também aqui, ainda que de forma modificada, pode-se registrar a presença feminina, na sua maior parte de mulheres de mais idade. Diferentemente das "feiticeiras" com tochas que se movimentavam com rapidez vertiginosa da descrição do autor francês do século XIX, elas procuram assistir aos homens que dançam, preparando-os para o combate.

Apreciação injusta de modos de vida pelos colonizadores

A inserção da expressão na vida da comunidade é sugerida pela presença de mulheres de idade que revelam ocupações femininas realizando trabalhos manuais de cestaria e de trançado sentadas no chão ao lado do terreiro.

A parcialidade e mesmo a injustiça e os êrros da revelação dos kanaks às famílias e aos escolares franceses se evidenciam hoje ao pesquisador cultural sobretudo na apreciação negativa que dá a respeito das habitações nativas.

"Que dirai-je de leurs huttes de terre et de paille, au toit pointu de roseaux, rappelant la forme d'une ruche; à l'intérieur, sans meuble aucun, et d'une saleté dégoutante?" (loc.cit.)

O arquiteto que hoje estuda uma dessas construções fica surpreendido pelas suas extraordinárias qualidades espaciais e técnico-construtivas. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Cultos-Cargo.html )

Esses edifícios, apesar da fragilidade dos materiais empregados, testemunham admirável cultura construtiva, coerentemente inserida em edifício de imagens e concepções do cosmo e do homem.

Valorização da adoção de costumes e do idioma dos colonizadores

Para o autor francês, somente o ensino das crianças nativas segundo modêlos europeus tinha levado a uma modificação positiva do modo de vida dos nativos. Os kanaks passaram a adotar costumes e usos europeus, a construir pequenas casas, a cultivar o solo e a falar uma mistura de francês e inglês.

"Ajoutons enfin qu'un ceertain nombre d'indigênes, élevés depuis l'enfance au contact des Européens, ont adopté leurs moeurs et le costume civilisés, envoient leurs négrillons aux écoles, se construisent des maisonnettes propres et commodes, font un peu de culture et parlent un jargon assez singulièrement mêlé de français et d'anglais. Ceux-là, sans doute, s'ils nous tuent, du moins ne nous mangeront pas..." (op.cit. 251)

Questão crucial: canibalismo

Lendo-se com atenção o texto tão denegridor dos kanaks, constata-se que o ponto central da visão negativa desse povo por parte dos franceses diz respeito ao canibalismo. Essa questão, assim, que foi retomada na ilha de Fiji (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Universidade-Sul-Pacifico.html) e em Vanuatu (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Floresta-e-museu.html), torna-se ponto crucial do diálogo intercultural relativo a revelações e auto-revelações na Oceania.

O autor considerado, cujo texto representou o ponto de partida da troca de idéias, salienta que os kanaks comiam carne humana como os franceses carne de boi ou de carneiro. Para êles, não havia motivo de vergonha ou de remorsos; carne era carne, independente de que tipo de animal proviesse, do homem ou de outros. Quando uma tribo precisava de carne, armava-se e atacava a tribo vizinha.

"Mais le trait le plus saillant de leurs moeurs est le cannibalisme. Là, voyez-vous, on mange de l'homme comme chez nous du boeuf ou du mouton. Nul remords, nulle honte: pourquoi, je vous prie? C'est si bon ! c'est de la viande. - Quand une tribu a besoin de viande, elle s'arme un beau soir, tombe sur la tribu voisine. Guerres effroyables, guerres de bêtes féroces, où l'on s'entre-dévore...Le vainqueur dine des vaincus." (loc.cit.)

Significativamente, o autor salienta que os franceses não deviam imaginar que esse comer de carne humana ocorrria sobre os cadáveres dos caídos, de modo bestial; não, tudo se passava muito decentemente: a carne era cozinha, bem temperada e servida com cuidado e em festim de aparato.

"Ne vous figurez pas, cependant, des tigres se repaissant de chair crue sur les cadavres, ohn non! les chos se passent très décemment. La chair, bien dépecée et bien cuite, avec des assaisonnements convenables et des épices, est servie proprement en un festin d'apparat." (loc.cit.)

Segundo o autor, o comer de carne humana era tão inquestionado pelos nativos que, quando os franceses aportaram na Nova Caledonia, em 1863, teriam oferecido aos oficiais pedaços de carne fresca de um de seus conterrâneos como gesto de hospitalidade. No tom irônico e suffisant do texto escrito para leitores franceses, o autor prossegue dizendo que os nativos logo passaram a comer também franceses, após terem sido estes mortos traiçoeiramente. Esse costume levava a atrocidades no próprio grupo comunitário e na própria família. Quando não tinham inimigos, devoravam os seus próximos, fosse uma mulher velha que já não podia trabalhar, seja um avô idoso, justificando os seus atos dizendo que, assim, os velhos seriam poupados das moléstias da idade. Também comiam  crianças pequenas, bem tostadas, com inhames no lugar de batatas fritas, servidas sobre folhas de bananeira, o que consideravam como delicioso.

"La première chose que firent les naturels quand les Français abordèrent en 1863 fut d'offrir à nos officiers un beau morceau de la chair fraiche d'un de leurs compatriotes; la seconde,... de manger une demi-douzaine des nôtres, supris et massacrés en trahison. - Quando on n'a pas d'ennemis, eh bien, on dévores ses proches, une vieille femme qui n'est plus bonne à rien, un vieux grand-Père: c'est pour leur épargner les infirmités de l'âge! Mais souvent, aussi on mange des petits enfants, - absolumment comme l'ogre du Petit-Poucet, - bien rôtis, avec des ignames en guise de pommes de terre, et servis sur les feuilles de bananier tenant lieu d'assiettes: c'est délicieux!.." (loc.cit.)

Também aqui o autor salienta o papel civilizador desempenhado pelos seus compatriotas franceses. Desde que estes tinham assumido a liderança, tais fatos já não ocorriam, a não ser no centro da ilha, onde as tribos ainda selvagens não tinham perdido a tradição. Essas escondiam o seu canibalismo não por vergonha, mas por mêdo dos franceses. Não compreendiam o horror europeu pelos seus festins; pelo contrário, achavam ridículo que na Europa, após uma batalha, se deixasse perder tanta carne que poderia nutrir a armada vitoriosa por muitos dias. Citando um chefe kanak, o autor transmite a idéia de que a crueldade residiria no ato de matar aquele que sente, e não comer um morto, quando não mais sente. Assim, os kanaks haviam sido sujeitos à abstinência à força, mas não estavam convertidos, lamentando os bons tempos, quando podiam jantar bem.

"Partout où les civilisés sont les maîtres, de telles choses ne se passent plus, cela va sans dire; mais vers le centre de l'ile, dans les tribus encore sauvages, la tradition n'est pas encore perdue. On se cache, seulement; non pas par honte, mas par peur: ces gens-là ne comprennent aucunement l'horreur que leurs festins de bêtes carnassières nous inspirent, et, tout au contraire, trouvent très ridicule qu'en Europe, après une bataille, on laisse perdre tant de bonne viande, de quoi nourrir l'armée victorieuse pendant plusieurs jours..."Car enfin, disait je ne sais quel chef kanaque, enragé consommateur de Français, s'il peut y avoir cruauté, c'est à tuer les gens, qui le sentent, et non pas à les manger, quand ils ne le sentent plus! Que répondrez-vous à cela, vous autres?

Certainement ce que vous répondriez ne persuaderait pas même les Kanaques des tribus soumises à l'abstinence forcée, mais non pas converties... et qui ne se cachent guère de regretter le bon vieux temps, celui où l'on dinait si bien!" (loc.cit.)

Da experiência feita pelos kanaks a uma tarefa que se impõe ao homem em geral

A partir deste texto, que revela um dos principais pontos que explicam a imagem negra dos kanaks na Europa e que surge em tão forte contraste com as expressões de cordialidade e hospitalidade amiga que se manifestam nas suas recepções e apresentações, a atenção é dirigida a problemas gerais da sujeição do homem ao costume e que o impede de refletir.

O diálogo intercultural é levado aqui a um nível mais alto e genérico de considerações antropológicas e filosóficas. Considera-se que, assim como os kanaks nada viam de horrendo e moralmente escuso no canibalismo, não o questionando, sendo este justificado pelo costume, pela vontade de um paladar criado desde a infância, considerando esse tipo de alimentação até mesmo como ato cultural digno de ser celebrado em festins, também o kanak de hoje e o europeu não sentem peso de consciência em cometer atrocidades para com outros seres viventes, considerando o comer carne como ato natural, justificado pelo costume, pelo gosto e pelas convenções.

O diálogo intercultural é levado assim a questões que dizem respeito a questões de ética em respeito a todas as criaturas animais  e ao antropocentrismo de edifícios de concepções. ou seja, a fundamentos da Antropologia filosófica e das relações entre cultura e ética.

A consideração dessas questões a partir da perspectiva do vivenciado pelos kanaks surge, assim, como de alto significado também e sobretudo para os próprios europeus, pois chama a atenção para problemas que este não vê por estar preso ao costume, às tradições e a sistemas de valores, sobretudo por serem justificados pela religião. O que os jovens de Lifou chamam a atenção e para a coerência que deve haver quanto à continuidade de um processo civilizatorio: o combate e o fim do canibalismo não basta, o caminho deve ser prosseguido.

Grupo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Diálogo intercultural em Lifou sôbre o Revelar-se: Do significado da perspectiva kanak
para reflexões sôbre questões fundamentais da Antropologia e Ética. De canibalismo e carnivorismo como graus de barbárie". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 136/11 (2012:2). http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Dialogo-Brasil-Ilhas-Lealdade.html




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


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  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.