Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________

Vanuatu.Foto A.A.Bispo©

Vanuatu.Foto A.A.Bispo©

Vanuatu.Foto A.A.Bispo©

Vanuatu.Foto A.A.Bispo©

Vanuatu.Foto A.A.Bispo©

Vanuatu.Foto A.A.Bispo©

















Fiji.Foto A.A.Bispo©

A.B.E.

Fiji.Foto A.A.Bispo©

Fiji.Foto A.A.Bispo©

Fiji.Foto A.A.Bispo©

Fiji.Foto A.A.Bispo©

Fiji.Foto A.A.Bispo©

Fiji.Foto A.A.Bispo©

Fiji.Foto A.A.Bispo©

Fiji.Foto A.A.Bispo©

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 136/22 (2012:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2882


A.B.E.


Universidades em visita


Consciência Panpacífica no ensino e na pesquisa universitária à luz da experiência panamericana
Questões de perspectivas, imagens contraditórias e coerência de argumentos
no exemplo de Fiji:
Les sauvages les plus sauvages

University of The South Pacific, USP, Campus Vanuatu


Ciclo de estudos Rio 92-Sydney 2012 da A.B.E. no Pacífico Sul. University of The South Pacific, USP, Campus Vanuatu

 
Fiji.Foto A.A.Bispo©

No âmbito do programa Rio 92-Sydney 2012 da A.B.E. (Veja Tema em Debate, nesta edição: http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Australia-Melanesia-Brasil.html), uma instituição universitária de ensino e pesquisa mereceu particular atenção: a Universidade do Pacífico Sul (University of the South Pacific, USP).

Trata-se de uma universidade singular, sob diferentes aspectos. Criada em 1968, é regional por ser dedicada ao Pacífico e ao mesmo tempo supra-regional e supra-nacional no seu escopo, pois este reside sobretudo na pesquisa da cultura da Oceânia e do seu meio-ambiente na complexidade do universo insular do Grande Oceano.

A USP é internacional na sua esfera pacífica, pois é mantida por 12 países: Ilhas Cook, Nauru, Tokelau, Fiji, Niue, Tonga, Kiribati, Salomões, Tuvalu, Ilhas Marschall, Samoa e Vanuatu. Correspondendo a essa internacionalidade, a universidade é decentralizada. Embora tendo a sua sede administrativa em Suva, Fiji, mantém vários polos no Pacífico Sul, entre êles o campus de Port Vila, Vanuatu. Anexas à USP são também a Faculdade de Direito de Vanuatu e a Escola de Agricultura e Tecnologia Alimentar em Samoa.

Vanuatu. Foto A.A.Bispo©

Vanuatu.Foto A.A.Bispo©
A universidade é mantida pelos países que a compõem e pela Austrália, que contribui com avultados meios financeiros e com a concessão de bolsas de estudos.

Com a sua estrutura, pelos países que dela tomam parte e sobretudo pelo papel que nela é desempenhado pela Austrália, a USP é uma universidade que abrange sobretudo a esfera anglofone do Pacifico, fato determinado pelo passado colonial da região. Trata-se, assim, de um universo universitário distinto daquele da esfera de tradição e vínculos franceses, na qual se destaca a Nova Caledônia.

Vanuatu. Foto A.A.Bispo©
Tendo sido fundada em época ainda marcada pela situação colonial, a USP possui relações estreitas com o mundo universitário anglofone em dimensões globais. Seguindo padrões de qualificação comuns à Commonwealth, a sua internacionalidade não se limita àquela regional, sendo as suas graduações amplamente reconhecidas. Assim, pode-se constatar contatos mais estreitos com a Universidade do Havaí, o que leva por sua vez a relações com rêdes universitárias americanas.

A sua internacionalidade inter-pacífica manifesta-se no seu corpo discente, sendo procurada por estudantes dos vários países da região e, em número crescente, por estudantes de outros países que desejam estudar assuntos relacionados com o Pacífico.

Vanuatu.Foto A.A.Bispo©

Consciência Panpacífica e universidade de inserção no contexto anglofone

Escopo explícito da USP é conservar, promover e difundir conhecimentos sobre o Pacífico Sul e formar adequadamente profissionais voltados para o aumento do bem-estar e sensibilizados para as necessidades das comunidades da região. Para isso, possui três faculdades principais, a de Artes e Direito, a de Comércio e Economia e a de Ciência, Tecnologia e Meio-Ambiente.

Um objetivo político-cultural mais amplo é o de contribuir à unidade e à integração das regiões do Pacífico Sul. Como os países nela integrados apresentam, apesar de elos comuns, grande diversidade quanto a seus contextos culturais, econômicos e políticos, a USP procura contribuir através da docência e da formação de estudantes das diferentes regiões à criação de uma atmosfera de respeito e tolerância a caminho de uma consciência panpacífica.

Nesse sentido, a universidade dedica especial atenção à Educação e à política de ensino com a utilização dos recursos disponívels e com a aplicação de métodos e modos de aprendizado adequados aos diferentes contextos culturais.

Ao fomento da consciência panpacífica servem também a concessão de incentivos e de prêmios de excelência no ensino e na pesquisa, assim como programas de treinamento avançado. Formando estudantes de diferentes regiões, procura incentivá-los a que retornem às suas terras de origem após a graduação.

A universidade, além de manter cursos em diversas áreas, desenvolve também intensas atividades culturais e musicais. O seu programa editorial é diversificado, incluindo várias gravações musicais. De particular interesse para estudos músico-culturais são produções relativas à flauta nasal, à fusão da música de Fuji com a das Ilhas Salomões, à flauta Pan na região pacífica, assim como uma gravação com canções contemporâneas de Fiji (Vuku; Nawakanivugayali; The Nose Flute Breathes Again - com Calvin Rore; Panpies Across The Ocean; Veivosaki: A Fiji & Solomon Music Fusion; Kokina - Moffat Luza; Wasawas-Sailasa Tora; Ousenia: A Selection of Contemporary Fijian Songs, de Manoa Suguta).

Uma preocupação dos Estudos Pacíficos: imagens e revelações conflitantes

Observando os cursos oferecidos pela USP, pode-se constatar questionamentos que hoje preocupam mais em particular pesquisadores e estudantes dos Estudos Pacíficos.

A leitura e a análise da produção intelectual de pesquisadores, educadores, escritores e religiosos da região representam ponto de partida para o conhecimento das tendências do pensamento no Pacífico. Procura-se obter, através de seminários dedicados a essa literatura, um melhor conhecimento da situação e dos desenvolvimentos atuais nas várias esferas intelectuais dos diferentes países. Com esses conhecimentos, espera-se poder oferecer sugestões devidamente fundamentadas para a prática politico-cultural e educativa de órgãos e instituições.

Uma preocupação maior reside na tomada de consciência das imagens contrastantes da região do Pacífico criadas através dos séculos por relatos de descobrimentos e de viajantes, analisando-os criticamente à luz da atualidade. Procura-se considerar aqui o impacto dessas diferentes revelações feitas na Europa e nos Estados Unidos e as imagens assim criadas nas sociedades locais. A partir desses estudos, procura-se verificar como essas imagens co-determinam ações no presente. Neste sentido, indaga-se como esses entendimentos do Pacífico foram construídos, como se inseriram em determinados contextos  e como influenciaram as formas de aprendizado e o alcance de conhecimentos na região.

Procura-se aguçar a sensibilidade dos estudantes e pesquisadores para a dinâmica dos contextos em que se inserem, em constantes transformações, mas também contribuir à formação de uma consciência do sentir-se vinculado a uma determinada esfera do globo, a um espaço marcado por relações entre espaços e por rêdes sociais criadas por terra, por mar e também pela comunicação aérea.

Na insularidade das regiões do Pacífico, a questão do tempo desempenha papel importante, pois determinou modos de vida caracterizados por constantes e longas esperas, chegadas e partidas, tornando-se quase que palavra-chave o "eterno esperar".

Cultura kanak. C. Delon. Arquivo A.A.Bispo

Um estudo de caso: Fiji sob a perspectiva do descobrir e revelar

Nas condições especiais de Fiji como centro de interações particularmente intensas de processos culturais, adquire particular relevância a questão da perspectiva na análise dos fatores que se interagem.

Compreende-se, assim, que argumentos concernentes a origens, prioridades e legitimidades baseados em consciência histórica e sentido de identidade fundamentados em determinadas compreensões históricas desempenhem papel significativo também do ponto de vista político-cultural: Fuji apresenta-se hoje como uma nação que se confronta com tensões marcadas por movimentos nacionalistas baseados em concepções de identidade etno-cultural fijiana e porr aqueles de descendendentes de imigrados, o que tem até mesmo levado a emigrações em massa. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Universidade-de-Fiji.html)

Os trabalhos da A.B.E. realizados na Melanésia, em janeiro de 2012, foram desenvolvidos à luz do conceito de revelar. Revelando patrimônios culturais, cidades, estados e regiões é expressão comum no Brasil e o anelo de descobrir a própria herança cultural também na Oceânia. Há, porém, um complexo de questões que podem ser levantadas com relação a essas expressões e que dão margens a reflexões de relevância teórico-cultural.

Vários dos sentidos do revelar foram considerados, do revelar a outros e do revelar-se, a outros do mesmo contexto cultural ou a aqueles de fora. Emprestar atenção especial a essas expressões surge como de particular significado para países que foram descobertos pelos europeus, assim tanto como para o Brasil como para as ilhas da Oceania. (Veja també´m outros textos nesta ediçãõ)

Um dos aspectos tratados disse respeito ao revelar do homem e de sua cultura das ilhas da Melanésia na Europa do século XIX e início do XX. Em século marcado por explorações das ilhas, tomada de posse, missionação dos seus habitantes e estabelecimento de estações coloniais e cidades, o revelar a existência desses povos adquiriu atualidade e interesse nos países europeus. Ler com atenção textos que divulgaram conhecimentos a respeito da Melanésia demonstra o que passou a ser revelado e como foi revelado, trazendo à luz a perspectiva dos autores europeus e a escolha que fizeram do que revelar.

A consideração dessas fontes a respeito de povos recém-descobertos e contactados no século XIX pode levar a uma apreciação mais justa das vozes do século XVI quando do descobrimento do Brasil. O observador fica muitas vezes surprêso em constatar que, após 300 anos, a imagem desses povos revelada à Europa foi por vezes até mais depreciadora, mais ferinamente negativa do que aquela do passado relativamente aos indígenas americanos. Para além do fato de que nesse cotejo os portugueses de séculos anteriores surjam sob luz particularmente positiva, tem-se que constatar que o estudo dessas fontes revela que não houve um aumento de sensibilidade na apreciação de outros povos no decorrer dos séculos.

Razões da negatividade da imagem:  não correspondência entre natureza e cultura

Fiji foi uma das regiões do globo cuja revelação aos europeus teve conotações das mais negativas. A razão desse fato residiu sobretudo na prática da antropofagia. O europeu constatava aqui um contraste entre a beleza da natureza, as qualidades do clima, a riqueza vegetal com a barbaridade de seus habitantes.

Essa não-correspondência entre a beleza e as qualidades do meio com a cultura então salientada adquire interesse em estudos relativos ao binômio Cultura/Natureza, tal como tematizado no programa de pesquisas dedicado a essa temática da A.B.E. Essas expressões do passado demonstram que a compreensão das relações entre Natureza e Cultura também é expressão de sua época e contextos histórico-culturais, ou seja, também é relativa e apta a ser objeto de análises: não pode ser tomada como óbvia, exigindo constantes reflexões.

Esses textos do passado que tratam de povos selvagens, e que salientam os de Fiji, considerados como os mais "selvagens dos selvagens", indicam intuitos de revelar que os homens de países belos e ricos por natureza não são automaticamente os melhores homens ou os mais sensíveis e de beleza interior; reciprocamente, os homens de regiões frias e mais escuras - como as da Europa - não são necessariamente piores.

Essa idéia, ainda que aparentemente trivial, não deixou de constituir uma revelação no século XIX, uma vez que na linguagem quotidiana, em publicações populares e mesmo em observações de cunho científico predominava a noção de uma correspondência nas relações entre Natureza e Cultura, explicando-se fatos, níveis e desenvolvimentos culturais como resultados e expressões do meio ambiente.

Um exemplo que pode ser aqui considerado é o livro "Os povos da terra", de Ch. Delon, publicado em Paris em várias edições, parte da série "Biblioteca das Escolas e das Famílias" (Ch. Delon, Les Peuples de la Terre, Paris: Hachette, 5a. ed. 1905), e que inclui um capítulo a respeito de Fuji.

O autor inicia significativamente esse capítulo salientando as qualidades naturais do arquipélago e a selvageria de seus habitantes, revelados como a pior de todos os demais povos da Oceânia.

"Il est, au milieu de l'Océanie, dans la région de l'Équateur, un groupe assez nombreux d'iles et d'ilots, dont le sol est fertile, le ciel magnifique, le climat égal et doux: les Anglais les nomment Fiji, nous Viti. Les habitants de ces belles iles, les Fijiens ou Vitiens, comptent parmi les sauvages les plus sauvages des terres perdues de l'immense Océanie: ce sont - c'étaient, surtout - de véritables ogres!" (loc.cit.)


"Os mais selvagens dos selvagens" sob o interesse francês por questões de cuisine

A relativamente ampla consideração de ilhas do Pacífico na descrição dos povos do mundo dessa publicação oferece um testemunho do interesse por essa região na França pela passagem do seculo XIX ao XX.

Esse fato explica-se pelo particular interesse dado à questão da selvageria. Assim, o Brasil se encontra representado com um texto dedicado a selvagens e a semi-selvagens, que se inicia afirmando que os índios do Brasil, assim como aqueles do Peru e da Colombia, como em geral da América meridional na sua parte tropical, seriam menos inteligentes, mas também "infinitamente menos cruéis" do que aqueles da América setentrional; haveria, porém, ainda algumas tribos mais bravias, até mesmo antropófogas no Brasil. ("Sauvages et semi-sauvages au Brésil", op.cit. 203 ss.)

Esse motivo da selvageria e da antropofagia domina os textos relativos à Oceânia, dedicados à "cozinha" dos Fijianos e aos "jantares" de kanaks. ("La grande fourchette de Viti", op.cit. 225 ss., "Diners de Kanaques", op.cit. 227 ss.).

Essa atenção à selvageria e à antropofagia, como uma leitura mais cuidadosa revela, servia à forma de entretenimento leve, a gosto francês, apropriada a uma publicação de grande difusão. Indiretamente, procurava-se salientar que os franceses contribuiam à civilização e ao progresso cultural dos povos, uma preocupação compreensível em século marcado por conceitos evolucionários, por intenções de justificação da política colonial e, sobretudo, pela intensificação de sentimentos nacionais franceses e de auto-valorização cultural.

Interesse francês por questões de distinção: polidez exterior versus ferocidade interior

Como em outros capítulos desse livro, o autor revela o seu particular interesse por questões de aparência e moda. Esse fato, compreensível em obra francesa e dedicada a leitores franceses, dirige a atenção ao contraste que é feito entre a aparência bárbara de seus habitantes e a cordialidade, doçura e suavidade no trato que demonstravam a estrangeiros.

"Pas trop laids, pourtant, quoiqu'ils soient de couleur noire; leur chevelure, leur barbe, sont épaisses et crépues. Le climat du pays étant trés chaud, ils portent pour tout vêtement une pièce d'étoffe roulée autour des reins. Souvent ils attachent sur leur tête une sorte de mouchoir qui couvre leurs cheveux, ou encore une façon de peruque feutrée, extrêmement épaisse et grossière, de couleur rougeâtre, terminée par une houppe ou une pointe. Les Vitiens, comme beaucoup d'autres peuplades sauvages, se tatouent, dessinent, ou plutôt gravent sur leur corpos et surtout sur leur visage des lignes, des figures bizarres qu'ils considèrent comme une parure...(loc.cit.)

O autor sugere, assim, que não apenas não existia uma relação direta entre as qualidades de beleza da natureza e a cultura, mas sim também não havia uma correspondência imediata entre a aparência dos homens e o grau de civilização quanto a formas sociais ou civilidade. Assim, aparências selvagens ou mesmo bárbaras, criadas pela semi-nudez, cor de pele ou tipo de cabelo, barbas ou tatuagens não significavam incondicionalmente que os homens não se mostrassem delicados, doces, demonstrando cordialidade e amizade.

O autor vai, porém, mais longe na sua argumentação, advertindo que também aqui o europeu não se devia fiar nas aparências. Esses povos tropicais mostravam-se polidos, finos, alegres, comunicativos, sorridentes e dados ao riso, amigos de brincar e de dansar, musicais, cordatos e pacíficos, surpreendendo e conquistando com a sua simpatia aqueles que tinham sido primeiramente assustados com as suas aparências selvagens; na verdade, porém, essas qualidades de polida civilidade eram também apenas aparentes, uma vez que eram interiormente bárbaros, praticando a antropofagia.

Malgré ces barbares ornements, ils n'ont pas, à l'ordinaire, un aspect de férocité; ils ont plutôt l'air assez doux: ne vous y fiez pas trop, pourtant. Ils sont polis à leur façon et obligeants quand ils veulent, assez fins et surtout rusés. Gais, rieurs, parleurs intarissables, ils aiment le bavardage, les ébats, les chants bruyants, les jeux et les danses. Ils ont quelques cultures, sont adroits chasseurs et pêcheurs; ils se nourrissent de fruits, de gibier, de poisson - et quelque peu encore, à l'occasion, de chair humaine. Ce sont, eux aussi, des anthropophages!" (loc.cit.)

Assim como o autor havia sugerido de início não haver correspondência direta entre a beleza da natureza e a cultura de seus habitantes, salienta que também não se podia tirar conclusões a respeito de suas qualidades interiores e desenvolvimento civilizatório ou cultural a partir de atitudes e modos de convivência amigáveis, polidas, sensíveis, suaves, doces e alegres do homem dessas belas regiões tropicais.

O canibalismo como questão de gosto, não de necessidade

Digno de nota é o fato do texto salientar que a ferocidade interna que se manifestava no canibalismo, no devorar-se uns aos outros, não era questão de necessidade, mas sim de gosto.

Com esse argumento, o autor desmentia aqueles que procuravam justificar a antropofagia a partir da necessidade de alimentação ou de nutrição, compreendendo assim esses procedimentos e modos de vida como fatos culturais e relativando julgamentos quanto à sua barbaridade. Pelo contrário, como afirma o autor, nessas terras havia comida em abundância e na maior quantidade, e a sua obtenção não exigia demasiado dispêndio de energia.

A abundância, a riqueza de alimentação fornecida pela natureza, ou seja, a falta de necessidade nas ilhas oceânicas desmentia a noção de que atos e modos de vida ferozes e cruéis para com co-viventes, inadmissíveis sob o ponto de vista ético, fossem explicados e justificados pela necessidade criada pelo meio ambiente no qual o homem vive.

As ilhas Fiji demonstravam que aqui se tratava de uma questão de gosto, de vontade de comer carne, ou seja, de um costume fundamentado na tradição, no qual os homens tinham sido criados desde a sua infância e do qual não conseguiam se libertar. Tratava-se, assim, de uma expressão "cultural" no sentido dado à concepção tida como ampla de cultura, considerada como "antropológica" e que é até hoje compreendida por vezes de forma inquestionada e pouco diferenciada.

Significativamente, o autor parte do gosto para oferecer descrições de cunho etnográfico de Fiji. Considera que os Fiji não se envergonhavam dessa predileção, nem a escondiam, e até mesmo a celebravam, praticando-a publicamente e em situações de importância, uma vez que era justificada pelo costume e garantida por expressões tradicionais da vida social. Não havia crítica ou a consideração à distância do costume.

Se não era a natureza da ilha que criava a necessidade, esta era criada pelo gosto, no caso pelo paladar e desejo de comer. Aqueles que assim comiam não tinham vergonha, pois esse gosto era compartilhado e assim aceito pela sociedade, e mesmo festejado. Era reforçado pelo exemplo estatuido por pessoas que gozavam de autoridade, prestígio e poder.

O bem comer nesse sentido surgia como distintivo de poder e potência, de bravura e masculinidade, motivo de orgulho para chefes que tinham caçado e devorado inimigos. O autor ilustra essa situação mencionando que um chefe nativo, que teria morto e comigo centenas de homens,era tão altamente considerado como um Rolando ou um Carlos Magno na história européia.

"Ce n'est point par nécessité, du moins, que ces gens-là s'entre-dévorent, c'est par gourmandise. - La terre leur fournit en abondance les merveilleux fruits de la zone tropicale, (...) Mais quoi? pour un Vitien, parait-il, rien ne vaut la viande d'homme...-ils ont un mot pour dire cela; - et comme les ogres des contes, ils flairent voluptueusement la chair fraîche. Ils ne s'en cachent pas: loin de là; les grandes fêtes, les victoires de la peuplade sont célébrées par des repas de cannibales. Ces jours-là, autour des cases, des maisons de bambous, les sauvages insulaires, assis en cercle, se partagent le roti. Les meilleurs morceaux, comme il est naturel, sont réservés pour les personnages considérables de la tribu; les femmes, les enfants gentils rongeotent les petits os...La vanité s'en mêle: c'est à qui aura digéré plus d'ennemis! On citait, il y a quelques années, un certain chef, encore existant et bien connu des voyageurs, célèbre pour avoir dévoré à lui seul toute une tribu: plus de huit cents hommes! La fourchette de cet ogre avait un nom propre, tout comme l'épée héroique de Roland ou de Charlemagne: elle s'appelait uno-uno: ce qui signifie: qui porte lourd! - Ce que c'est, pourtant, que la gloire!" (loc.cit.)

Consequências da escravização ao gosto criado pela tradição e aceitação coletiva

Como o autor salienta, essa situação, porém, onde os homens eram escravos do gosto, tendo a sua conduta justificada pelo compartilhamento, pela sua aceitação social e pela tradição, levava a grandes problemas na vida do homem e da sociedade. Consciente- ou inconscientemente à procura de satisfação de desejos criados por essa necessidade do paladar, encontravam-se em contínuos conflitos entre si, em perenes guerras intertribais, marcadas por grande crueldade, uma vez que se guerreava não apenas para matar os inimigos, mas sim para devorá-los.

Essa situação tinha também consequências político-internas na vida dos grupos, pois os chefes se tornavam tiranos nas suas respectivas ilhas ou tribos, secundados por asseclas que obedeciam incondicionalmente a seus mandos, assim como escravos dependentes, que seriam devorados caso não servissem a contento.

O autor extende ainda mais as suas considerações a respeito das consequências derivadas dessa escravidão ao gosto salientando que levava a que os homens não fossem verdadeiros, se tornando falsos, mentirosos, ladrões e pérfidos. Esses problemas morais resultantes da inverdade exprimiam-se ou tinham os seus fundamentos em concepções religiosas; também as suas divindades queriam comer, deviam ser amansadas por meio de oferendas de alimentos, criando-se uma situação de dependência, de escravidão do homem a poderes, fundamentando uma atmosfera de mêdo e terror.

"Toujours en armes les uns contre les autres, les Vitiens sont très cruels à la guerre: une guerre où l'on ne se tue pas seulement, où l'on se mange! Les chefs, petits tyrans de chaque ile ou de chaque tribu, ont des sujets, obéissant à la parole et rampant devant eux à quatre pattes, et des esclaves corvéables et mangeables à merci... Le peuple ne vaut mas mieux. Voleurs, menteurs, extrêmement perfides, très superstitieux, ils ont des divinités qu'ils honorent, à leur façon de goinfres, en leur offrant à diner..." (loc.cit.)

Danças como expressão de cultura marcada pela escravização ao gosto

Após ter assim preparado os seus leitores, o autor passa a oferecer mais alguns dados de interesse etnográfico e que passam a ter o seu sentido marcado pelo quadro geral oferecido. Assim, o autor salienta a simulação de combates e de mortes nas danças e nos folguedos de Fiji, mencionando alguns instrumentos, entre êles a flauta, a concha marinha e um instrumento de percussão, provavelmente o tambor de fenda.

"Leurs jeux, leurs danses sont des cabrioles effrénées, avec simulacres de guerre et de tuerie; grands amateurs de vacarme, ils ont pour instruments de musique une flûte dont ils jouent avec le nez, puis la conque marine, sorte d'énorme coquille roulée en spirale qui rend des sons rauques, enfin une sorte de tambour avec lequel ils font un tapage épouvantable." (loc.cit.)

Sucesso de missionários "não-gostosos"

Terminando o seu texto, a argumentação que partira da selvageria e da antropofagia desses "selvagens dos selvagens" leva à consideração do processo civilizatório desenvolvido pelos missionários. Esse processo civilizatório fora promovido pelos inglêses, possuidores das ilhas, e que para isso enviaram missionários para a evangelização das tribos.

Utilizando-se do humor que caracteriza essas publicações francesas destinadas a larga difusão popular, o autor salienta mais uma vez o gosto pela carne dos habitantes de Fiji como principal empecilho a esses intuitos. Assim, os missionários mais bem nutridos tinham sido mortos e devorados, o que teria levado as instâncias missionárias britânicas a enviar desde então apenas pastores magros e de má aparência, não gostosos.

"Les Anglais, possesseurs de ces îles, y ont envoyé des missionnaires, espérant en civiliser un peu les farouches naturels, - lesquels ont commencé par manger les plus gras des dévoués apôtres. Ce que voyant, les pêcheurs d'hommes ont pris, dit-on, le parti de choisir, pour évangéliser ces îles inhospitalières, tout ce qu'ils ont pu trouver de plus maigre et de plus coriace parmi les zélés pasteurs, afin de ne pas trop exciter l'appétit de ces ouailles féroces..." (loc.cit.)

Atraves desses missionários que não incentivam o paladar, a escravização ao gosto foi sendo superada, abrandando-se consequentemente a necessidade de guerrear-se. Esse processo teria sido acompanhado por uma transformação na aparência externa dos habitantes, no seu modo de trajar. Passaram a vestir-se a modo europeu, mas da forma a mais extravagante possível, colorida, utilizando-se de peças desaparelhadas do vestuário europeu. A geração assim educada, em época de gradativa superação do gosto pela carne humana, que iria estar sufocado e desaparecido dentro talvez de meio-século, já constituia uma nova comunidade, miscigenada, levando também ao desaparecimento da precedente.

"Cependant, par leurs efforts, par l'influence des Européens qui trafiquent en ces parages, les moeurs s'adoucissent. On s'habille, de la façon la plus extravagante, avec des morceaux dépareillées de costumes européens, on se met à cultiver un peu d'orge et de blé, dans les coins; surtout on se dévore moins, déjà, dans le pays. Et il faut espérer qu'avant und demi-siècle l'anthropophagie aura disparu: mais peut-être aussi, du même coup, la race des anthropophages. - Faudra-t-il regretter beaucoup?" (loc.cit.)

Releitura de textos europeus portadores de tais revelações

Passados mais de cem anos desde que esse texto foi divulgado em escolas e em famílias francesas, revelando a selvageria dos habitantes de Fiji e o processo de transformação então em andamento, a descrição oferecida necessita ser relida de forma diferenciada.

Um aspecto dessa releitura pode ser visto na aplicação dos critérios argumentativos nos dois lados envolvidos, ou seja, aquele dos Fijianos e aquele dos europeus à luz de questionamentos relacionados com o conceito do revelar.

Partindo-se da atenção dada pelo autor à ação de missionários no combate ao canibalismo, pode-se dizer que os Fijianos foram confrontados com problemas de auto-revelação. Êles, que se revelavam àqueles que chegavam como alegres e delicados amigos, mostrando-se pacíficos apesar das situações marcadas por violências em que viviam, foram obrigados a se confrontar com a verdade sufocada em consciência pelo costume, compartilhamento e aceitação social.

Utilizando-se da linguagem do texto, pode-se compreender que, escravizados pelo gosto, que criara desejos, a superação do canibalismo não foi fácil, representando um considerável esforço de libertação, controle e força de vontade. O encontro com os europeus pode ser assim considerado como uma revelação do não-canibalismo aos Fijianos e, a partir da nova visão, ou melhor, do desmascaramento de uma visão que pelo que tudo indica já era existente no edifício de concepções e imagens, de um desconfortável e difícil processo de auto-revelação.

Continuidade do debate na procura de coerência argumentativa

Os argumentos utilizados pelo autor devem ser aplicados também com relação aos próprios europeus. Também êles eram escravizados pelo costume e pelo gosto, e a própria publicação francesa demonstra esse interesse especial do autor francês por questões de gosto e de "cuisine", constantemente presentes nos seus vários capítulos.

Já o fato de mencionar que os canibais da Oceania procediam como os europeus quando comiam carne de carneiros, de porcos e de vacas, que também aqui se deliciavam e do qual não conseguiam deixar, indica que êle próprio tinha consciência de atos relacionados com matanças e crueldades, mas que a sufocava premido pelo gosto, pelas necessidades por êle criadas e justificadas pelo compartilhamento e aceitação social, assim como pelo exemplo dado por autoridades e pela fundamentação fornecida pela religião.

A revelação dessa situação surge como tão desconfortável para os europeus como aquela que os Fijianos tiveram que passar ao se defrontarem com povos mais poderosos e potentes que não devoravam homens e olhavam com horror para essa prática.

Também os europeus procuravam e procuram assim sufocar a consciência e fechar os olhos perante a necessidade de susciar desejos que não podem ser explicados por necessidades de alimentação, tão abundantes na Europa como nas ilhas da Oceânia.

Também aqui o processo de auto-revelação da barbárie em que se encontra o homem carnívoro do presente será tão desagradável e difícil como aquele experimentado pelos Fijianos do passado. Assim como estes tiveram que questionar e superar justificativas religiosas e tradição, o mesmo impõe-se relativamente aos europeus no árduo  processo de auto-revelação. Assim como os Fijianos tiveram que transformar o seu sistema econômico, modos de vida e expressões, fato similar deveria ocorrer no lado daqueles que abriram os seus olhos à escravização pelo gosto e que agora precisam também ter os seus olhos abertos.

O processo civilizatório compreendido como o de aprimoramento de sentimentos e da sensibilidade no tratamento de co-viventes em nome do qual outros povos foram levados a modificar os seus costumes e práticas não pode agora não deixar de valer para aqueles que agiram em seu nome.

A decolonização dessas regiões colonizadas exige que os mesmos critérios nelas empregados sejam aplicados aos próprios agentes das transformações. Estes, enquanto assim não procederem e tomarem a si o difícil processo auto-revelador e transformatório, não devem ser vistos como portadores de autoridade para tratar com competência assuntos relacionados com civilização e cultura se não derem continuidade a um fluxo argumentativo que forneceu motivos condutores de suas ações civilizatórias e de educação no passado.

A superação da antropofagia foi necessária, mas não é suficiente.

Grupo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Consciência Pan-Pacífica no ensino e na pesquisa universitária: o problema de perspectivações e imagens contraditórias.Tensões franco-britânicas nas revelações de Fiji: Les sauvages les plus sauvages. University of The South Pacific, USP, Campus Vanuatu". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 136/22 (2012:2). http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Universidade-Sul-Pacifico.html





  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.