Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Ekasup, Vanuatu.Foto A.A.Bispo ©

Ekasup, Vanuatu.Foto A.A.Bispo ©

Ekasup, Vanuatu.Foto A.A.Bispo ©

Ekasup, Vanuatu.Foto A.A.Bispo ©

Ekasup, Vanuatu.Foto A.A.Bispo ©

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 136/19 (2012:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2879


A.B.E.



Vanuatu revelando-se: celebrando o patrimônio cultural kanak
A floresta como centro nacional de cultura e o museu como floresta


Ciclo de estudos Rio 92-Sydney 2012 da A.B.E. no Pacífico Sul. Ekasup Cultural Village, Vanuatu

 
Ekasup, Vanuatu.Foto A.A.Bispo ©

Em janeiro de 2012, a A.B.E. desenvolveu ciclos de estudos no Sul do Pacífico com o objetivo de dar continuidade, sob novas perspectivas e em outros contextos, a questionamentos que marcaram o congresso internacional realizado por ocasião dos 500 anos do Descobrimento da América. (Vide Tema em Debate, nesta edição: http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Australia-Melanesia-Brasil.html)

As observações e os estudos que relacionaram o Brasil com a Oceânia foram conduzidos à luz do complexo de significados relacionados com o descobrir e o revelar.

A atualidade desse motivo condutor justificou-se pelo uso que se constata do termo revelar e descobrir em empreendimentos culturais tanto no Brasil como na Melanésia, de um lado por exemplo na série de eventos denominada Revelando São Paulo, de outro, em programas como Découverte du patrimoine, na Nova Caledônia.

Não se tratou, assim, nem de revelar a Melanésia ao Brasil, nem o Brasil à Melanésia, mas sim antes o de descobrir ou revelar compreensões e usos de intentos reveladores em ambas as regiões, analisando similaridades e diferenças, assim como mecanismos comuns que permitam reflexões teóricas mais aprofundadas.

Como regiões do mundo descobertas pelos europeus, o motivo do Descobrimento e o ato de descobrir encontram-se continuamente presentes em considerações relacionadas com a história e a cultura do Novo Mundo e do ainda mais novo mundo da Oceania.

O observador brasileiro constata que o descobrir e o revelar das riquezas de valores culturais nos jovens países insulares melanésios recém saídos de regimes coloniais diz respeito em primeiro lugar ao patrimônio cultural indígena, ou melhor, das populações que ali viviam antes da chegada dos europeus.

Essa constatação pode surpreender, uma vez que no Brasil preocupações patrimoniais e programas reveladores dessa herança são antes voltadas a expressões tradicionais do contexto cultural não-indígena, em geral remontantes a tradições européias nas suas origens e objeto de estudos do ramo disciplinar designado como Folclore. O revelar de expressões e valores culturais indígenas surge antes como tarefa de etnólogos e instituições especializadas.

Essa situação parece, numa primeira aproximação, indicar diferenças relativamente à identidade cultural e à identificação cultural de pesquisadores e de agentes da política cultural. Nesse sentido, os brasileiros estariam mais interessados em descobrir e revelar expressões e valores de uma cultura derivada da formação colonial, reforçando expressões, sentimentos e elos de nacionalidade assim fundamentados, intuitos que poderiam ser criticados como extensões de eurocentrismo e auto-colonialismo. Os melanésios, ao contrário, estariam muito mais preocupados em descobrir e revelar expressões e valores indígenas, tratando-os como seus, com eles se identificando.

Excetuando-se talvez a situação francesa da Nova Caledônia, o patrimônio indígena não é objeto de museus de etnologia, mas de museus nacionais, como se observa, por exemplo, em Vanuatu: a arte indígena é arte nacional, o mesmo valendo para narrativas, música e outras expressões. Não se pensaria, aqui em revelar formas de cortejos, de danças e expressões tradicionais do populário das festas cristãs como patrimônio nacional, surgindo essas antes como documentos residuais, relitos, curiosidades ou mesmo trash da história colonial e missionária.

Vanuatu, em especial, oferece até mesmo um exemplo para o pesquisador brasileiro, que no diálogo cultural se envergonha de princípio por ter que constatar que o patrimônio cultural indígena do Brasil, que foi, na sua riqueza e diversidade muito maior do que o oceânico, tão valorizado nessas ilhas, foi relegado a museus etnográficos.

Expressões e iniciativas auto-reveladoras - a Ekasup Cultural Village

Observações, reflexões e diálogos mais aprofundados, porém, revelam outros aspectos que devem ser considerados. Essa diferenciação e aprofundamento da discussão são possibilitados sobretudo pela observação de como os próprios melanésios se revelam. Se em outras ilhas o pesquisador necessita analisar mais sutilmente expressões culturais para nelas identificar sentidos auto-reveladores, como no caso de Île de Pins ou ilhas Lealdade (Veja  http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Dancas-dramaticas-Pacifico-Brasil.html), em Vanuatu, país emancipado politicamente, a auto-revelação é explícita, parte de programas de apresentação e representação cultural do país.

Talvez um dos mais exemplos de instituição de natureza patrimonial que mais atenção merece no âmbito dos museus ao ar livre do mundo é aquele próximo à capital das antigas Novas Hébridas: a Ekasup Cultural Village. Esses museus vêm recebendo atenção privilegiada nos trabalhos da A.B.E. por diversas razões, tendo levado a visitas e trabalhos em vários países do mundo. (Veja p. ex. http://www.revista.brasil-europa.eu/132/Skogar.html). Entre elas, pelo fato desses museus tematizarem, para além de aspectos conservacionais de objetos e edifícios, questões de particular interesse teórico-cultural, tais como aquelas relacionadas com o quotidiano, com colonização e imigração, com mudanças e interrelações culturais e, sobretudo, por chamarem a atenção a relações entre Cultura e Natureza.

Ekasup, Vanuatu.Foto A.A.Bispo ©

Muitos desses aspectos podem ser tratados no caso de Vanuatu, salientando-se este último devido à orientação explicitamente ambientalista da instituição. Esse museu ao ar livre não surge assim propriamente como um museu, mas sim como uma floresta deixada incólume, apenas cortada por picadas limpas e pequenas clareiras, com alguns abrigos de palha, onde nativos desempenham os seus trabalhos quotidianos, possibilitando a observação de modos de vida e técnicas. As poucos áreas previstas para apresentações e demonstrações são cuidadosamente inseridas no meio natural, representando nada mais do que pequenos terreiros com troncos onde os visitantes podem tomar assento.

Numa primeira aproximação, o observador sente-se tentado a comparar esse museu, que procura vir de encontro a recomendações de órgãos internacionais no sentido de uma "cultura viva", a exposições em museus etnológicos conhecidas de outros países, também do Brasil.

Em ótica mais negativa, o observador pode-se sentir
desconfortável em ver nativos realizando trabalhos quotidianos e de artesanato como amostras ou objetos de museu, lembrando-se de antigas exposições coloniais na Europa, quando habitantes de países extra-europeus eram apresentados em cenas do seu próprio habitat  e até mesmo em jardins zoológicos.

De espectador a observado: alternâncias de visões e recíprocas revelações

Essas impressões negativas se dissipam, porém, com a forma pela qual o visitante é tratado e segundo a qual lhe é revelada a cultura indígena de Vanuatu. Êle é envolvido na encenação, passa de observador a observado, não apenas olha e indaga, mas passa a ser olhado e indagado. De toda a parte da mata escuta gritos e se sente observado, seguido e perseguido. Indígenas com atitudes ao mesmo tempo de curiosidade e de atenção distanciada e movimentos de aproximação ameaçante intimidam o visitante, que se sente acuado e se conscientiza de se encontrar em espaço cercado, exposto à observação: não mais espia, é espiado.

Com essa troca de posição, passando de espectador a objeto, insere-se em complexo processo de alternâncias de visões e de recíprocas revelações. É colocado em posição na qual não mais é o explorador que descobre, mas o que escuta o que lhe é revelado. Conduzido a uma pequena clareira, um dos protagonistas que o espiou e que se salientou no caminho marcado por intimidações e mesmo aterrorizações, revela-se como amigo, pacífico, elucidador de expressões, técnicas e valores da própria cultura, na qual se mostra como especialista.

Toda a encenação e mesmo o museu ao ar livre inserido no meio ambiente criador do espaço dramático revelam-se a serviço do auto-revelar-se. Nas suas elucidações, o protagonista-especialista surge como orador, dá as boas vindas, manifesta os seus sentimentos de amizade e fraternidade, expõe modos da vida inserida e marcada pela natureza, explica técnicas, aproveitamento de plantas para alimentação e cura, para a confecção de objetos e adornos.

Agora, como elucidador, passa a guia, conduzindo aquele que visita pela floresta e revelando sentidos de expressões e procedimentos culturais, inclusive da própria encenação a serviço das boas vindas e da confraternização.

Auto-revelando-se, explica que também o indígena teve um passado marcado por lutas e conflitos, por atrocidades e sobretudo pela vingança. Maior expressão da vingança teria sido o canibalismo, ainda em passado não muito remoto constatado em casos isolados nas ilhas.

Um sistema de valores que acentuava a paz e apresentava o homem amigo e cordato como aquele que havia superado o seu passado - mas que sempre dele lembrava-se na constante ameça de nele recair - é exposto como já existente na própria cultura kanak. A consciência desse campo de tensões não havia sido criada pelos europeus, ainda que missionários, diferenciando-se de muitos colonizadores, tivessem dado exemplos de vida marcada pela não-violência.

A dança-guerreira como elemento central da auto-revelação

A ação auto-reveladora e de revelação da cultura kanak atinge o seu ponto culminante na dança. Conduzidos a outro terreiro, os visitantes vivenciam a passagem do ato em que estiveram envolvidos e que foi caracterizado por etapas - da transformação do observador em observado, do explorador em ouvinte, do investigador em aprendiz - a ação teatral.


Agora, os guerreiros e o orador se mostram dançando e cantando, fazendo com que as representações de lutas e combates surjam como elementos de uma dança executada para fins festivos, lúdicos, de divertimento, mas profundamente séria no seu significado intrínseco.

O kanak "selvagem" revela-se como altamente cultivado, como homem consciente da labilidade de um estado de civilização constantemente ameaçado de ser perdido, de queda na barbárie, e que somente pode ser evitado com a constante lembrança, ainda que na forma lúdica, de suas agruras, pavores e lamentáveis consequências.

Exemplaridade da lembrança do passado superado como pré-condição da civilidade

O auto-revelar-se do kanak revela-se assim como o de um homem consciente de sua fragilidade, constituindo essa forma de auto-revelação um patrimônio cultural no seu sentido mais profundo.

O visitante percebe que esses supostos selvagens surgem antes como exemplos de cultivo e civilidade justamente por lembrarem-se de situações e atos passados, atrozes e cruéis para si e outros.

Conscientiza-se, assim, envergonhado, que a lembrança do passado, das violências cometidas, inclusive contra os indígenas, nem sempre se encontra presente entre colonizadores e seus descendentes, não havendo em geral processos de requestionamentos críticos e auto-críticos desse passado.

Entretanto, o pesquisador cultural se recorda que também no repertório das expressões culturais herdadas da Europa e que continuam presentes nas tradições do folclore no Brasil encontram-se representações de lutas e combates que revelam ou que permitem reconhecimentos de sentidos similares às aulas auto-reveladoras recebidas do orador kanak em Vanuatu.

Também essas expressões surgem assim como auto-reveladoras e nesse sentido deveriam ser consideradas.

O encontro internacional possibilita não apenas confrontos de expressões auto-reveladoras e de intuitos de revelação de diferentes contextos, no caso de Vanuatu e do Brasil, mas sim também de relacionamentos e comunicações para além de contextos nacionais definidos por decorrências históricas.

A atenção é assim dirigida à unidade do Homem, a elementos comuns que unem a Humanidade para além de todas as diferenças étnicas e etno-culturais.

Vanuatu adquire, assim, nos estudos culturais em contextos globais, um significado excepcional por trazer á consciência que a valorização das culturas indígenas não revela a sua importância tanto sob o aspecto da diferença étnica, e que traz em si o risco de concepções relativas à desigualdade do Homem, mas sim sob aquele da unidade do Humano, caminho que abre portas aos Direitos Humanos, àquele dos seres viventes em geral e, no seu sentido mais amplo, à Ética.


Grupo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Vanuatu revelando-se: celebrando o patrimônio cultural kanak. A floresta como centro nacional de cultura e o museu como floresta". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 136/19 (2012:2). http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Floresta-e-museu.html




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