Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Música na Nova Caledônia. Fotos A.A.Bispo©

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Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 136/12 (2012:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2872


A.B.E.


Observação empírica e o estudo de fontes históricas da música dos kanaks
Nova Caledônia-Brasil na Etnomusicologia
e no estudo de processos músico-culturais em contextos globais I


Ciclo de estudos Rio 92-Sydney 2012 da A.B.E. no Pacífico Sul. Musée de Nouvelle Calédonie, Noumea

 

Os estudos desenvolvidos na Oceânia, em janeiro de 2012, foram realizados por motivo da passagem dos 20 anos do congresso internacional levado a efeito no Rio de Janeiro, em 1992. (Veja Tema em Debate, nesta edição: http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Australia-Melanesia-Brasil.html))

Naquele evento, deu-se início a um programa de atualização de conhecimentos e de perspectivas relativo às culturas musicais indígenas baseado em proposta de renovação culturológica dos estudos específicos desenvolvida a partir de 1972, quando a disciplina Etnomusicologia foi incluida nos cursos de Graduação e Licenciatura da Faculdade de Música e Educação Artística de São Paulo. (http://akademiebrasileuropa.de/Chroniken/1972-Ethnomusikologie.html)

Em época de cruciais mudanças para muitos grupos indígenas devido ao impacto causado pela abertura de estradas que passaram a cortar o litoral sul da Bahia, o Brasil-Central, o Amazonas e o Pará, reconheceu-se a necessidade de um direcionamento da atenção a processos de transformação cultural e, entre outros, de integração na sociedade predominante.

Para isso, tornava-se necessário questionar concepções e orientações de disciplinas voltadas a estudos culturais, como o Folclore, e promover a cooperação interdisciplinar. Essa preocupação correspondia aos objetivos do movimento que propugnava uma atualização dos estudos culturais através de um redirecionamento das atenções de esferas culturais (erudita, popular, folclórica, indígena) a processos (ND 1968). (http://akademiebrasileuropa.de/Chroniken/1968-Neue-Diffusion.html)

A direção da atenção a processos históricos de ocupação e expansão da sociedade resultante da colonização trazia á consciência também a necessidade de uma consideração refletida de perspectivas históricas na Etnologia e de resultados das pesquisas empíricas nas disciplinas históricas, o que vinha sendo discutido desde 1966. (http://akademiebrasileuropa.de/Chroniken/1966-Geschichte-Volkskunde.html)

O projeto de 1992, iniciado em ano da passagem dos 500 anos do Descobrimento da América, marcado por discussões quanto a perspectivas históricas eurocêntricas, reveladoras de visões dos colonizadores - não dos indígenas -, teve como um de seus objetivos promover transformações na própria orientação de disciplinas culturais voltadas ao contexto cultural do observador.

Esperava-se que, através do contato com a realidade em campo, através de encontros, sobretudo folcloristas, historiadores e missionários de diferentes confissões passassem a considerar mais intensamente e sob outras perspectivas as culturas indígenas e suas transformações, contribuindo para o questionamento de esferas e escopos disciplinares. Em ano marcado pela rememoração de Descobrimentos, o ato do descobrir deveria ganhar uma nova acepção, passando a ser os grupos indígenas que deviam revelar-se, possibilitando a que os pesquisadores descobrissem visões e perspectivas outras.

Esse intento levou necessáriamente ao reconhecimento que o estudo dirigido a processos históricos e de transformação cultural não podia restringir-se aos limites nacionais do Brasil, exigindo que fosse considerado na todo das Américas.

Da ampliação do debate ao contexto das Américas e ao Pacífico Sul

Assim, como relatado em números anteriores desta revista, foram realizados encontros e visitas a grupos e instituições em outros países, entre outros nos Estados Unidos (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/128/Abbe-Museum.html).

No decorrer dos trabalhos, tornou-se evidente que, para uma intendida modificação de pontos de vista e de concepções disciplinares do próprio contexto do observador inserido no contexto cultural predominante, remontante aos colonizadores europeus, seria conveniente e mesmo necessário ampliar ainda mais o campo de observações.

Nesse sentido, passou-se a defender ainda com maior intensidade a exigência de uma superação de delimitações geográficas de áreas da Musicologia, até então marcada pela convenção insustentável de que à musicologia histórica caberia o estudo sobretudo da história da música européia, à Etnomusicologia a pesquisa extra-européia em geral.

A preocupação de relacionamento entre a pesquisa empírica e a histórica passou também a ser aplicada à Oceania, procurando-se, a partir da limitada bibliografia disponível, reconhecer-se processos históricos e transformações.

Esse intento teve o seu progresso no trabalho desenvolvido na seção de Etnomusicologia do Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos da organização pontifícia de música sacra, quando a história da ação missionária no Pacífico e no Índico, que foi um dos principais fatores de mudança cultural desses povos, passou a ser considerada a partir do levantamento e da análise de fontes eclesiásticas. Os trabalhos puderam então ser desenvolvidos pelo editor desta revista com a colaboração, entre outros, do Prof. Dr. A. MacCredie da Universidade de Adelaide, Austrália.

Da Etnomusicologia convencional à estudos de processos culturais em contextos globais

Os estudos realizados no âmbito da A.B.E. possuem, porém, uma orientação particular, própria, pois, segundo os seus objetivos, estudos culturais devem ser realizados em estreito relacionamento com aqueles da própria produção do saber, sobretudo também de análises das rêdes envolvidas.

O estudo das referências documentais de significado musical passaram a exigir, assim, não apenas a sua consideração contextualizada, mas sim também a das ordens missionárias, suas concepções e métodos.

Essa exigência é válida naturalmente também para relatos e outros documentos não eclesiásticos. O levantamento dessas fontes e o seu estudo tanto relativamente à contextualização dos fatos descritos como relativamente a seus autores - e aos próprios pesquisadores - foram desenvolvidos no âmbito de unidades dedicadas ao Pacífico/Índico no curso de Música no Encontro de Culturas, realizado a partir dos trabalhos da A.B.E./I.S.M.P.S. em universidades alemãs pelo editor desta revista. Por último, dando continuidade a essa orientação, realizou-se um curso sobre a música na Austrália e na Oceania na Universidade de Colonia, em 2008 e que teve as suas extensões em trabalhos desenvolvidos no Pacífico e no Índico pela A.B.E./I.S.M.P.S., como relatado em números anteriores desta revista. (http://www.revista.brasil-europa.eu/125/Musica_do_Tahiti.html)

A partir de estudos desenvolvidos na Austrália, as atenções foram primeiramente dirigidas à Polinésia Francesa, devido sobretudo a seus elos mais próximos a complexos temáticos relacionados com o continente americano e o mundo de língua portuguesa. (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/125/Polinesia.html).

Estudos desenvolvidos em Maurício demonstraram a secular história que possibilita o estudo de relações com o passado colonial português e, sobretudo, a antiga presença cultural francesa nessa ilha que foi a sua principal colonia à época do antigo regime. Expressões musicais e de dança que teriam sido trazidas da África por escravos - segundo interpretações de folcloristas locais - possibilitam cotejos com tradições e suas interpretações no Brasil. (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/123/Sega.html)

Ao mesmo tempo, constatou-se a transformação causada no desenvolvimento cultural de Maurício com a passagem da ilha a domínio britânico e consequente vinda de trabalhadores das colonias britânicas, em particular da Índia, o que levou a uma intensificação gradativa da presença de expressões religioso-culturais - e musicais - indianas em Maurício. (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/123/Indentured_immigrants.html)

Se os elos com a França na vida musical de Maurício continuaram predominantes sob o domínio britânico no século XIX, necessitam ser êles vistos como expressão de um campo de tensões causado pela situação política modificada e pela permanência da identificação cultural francesa de círculos líderes de sua vida cultural. Essas constatações demonstraram a necessidade de se considerar com mais cuidado aquela região da Oceania que representou quase que uma sucessora de Maurício como "Ile de France": a Nova Caledônia.

Significado do estudo de processos músico-culturais da Nova Caledônia para o Brasil

Uma consideração da Oceania relacionada com o Brasil sob a perspectiva dos estudos de processos músico-culturais surge como promissora e significativa sob diferentes aspectos.

O primeiro a ser reconhecido foi de natureza etnológica e comparativa, e é este que passou a ser sobretudo questionado.

Os povos nativos de ambas os espaços geograficamente tão distantes entre si apresentam similaridades no seu modo de vida e nas suas expressões culturais, o que se manifesta da forma mais evidente no instrumentário. Sugeriram, assim, o estabelecimento de paralelos e comparações. Procurou-se, de cotejos e análises organológicas e da análise musical, obter subsídios para o reconhecimento de edifícios de cunho sistemático que permitam a determinação de princípios e desenvolvimentos por assim dizer evolutivos, das suas respectivas etapas e de dos caminhos difusivos tomados.

Diferentemente da antiga "Ile de France", o pesquisador é confrontado na nova "Ile de France" com um patrimônio indígena mais vital e valorizado. Não tendo um passado tão longo de presença colonial, ocupada na maior parte de suas ilhas apenas no século XIX, a região apresenta tradições mais vivas e mais intensas referências a essa herança musical anterior à chegada dos europeus em expressões de representação cultural do presente.

Relativamente à Polinésia Francesa, onde a missão protestante americana foi em geral predominante, tendo a hinologia influenciado profundamente as expressões musicais de várias ilhas, o Catolicismo na Nova Caledônia parece ter facilitado uma maior permanência de expressões com danças e representações. A observação de como pesquisadores e músicos consideram e se utilizam criativamente dessas tradições surge como particularmente relevante tendo-se em vista que, no caso da Nova Caledônia, tem-se um território francês que se encontra prestes a decidir-se sôbre uma possível emancipação.

"Découverte du patrimoine" - Musée de Nouvelle-Calédonie

Instituição principal para o estudo do patrimônio cultural indígena não só da Nova Caledônia como da Melanésia em geral é o Museu da Nova Caledonia em Nouméa (Musée de Nouvelle-Calédonie).

Esse museu, excelentemente instalado, possuidor de considerável acervo, no qual instrumentos musicais também se encontram representados, desenvolveu, em 2011, um programa denominado de Héritages Caledóniens e que tem como objetivo o de descobrir o patrimônio, revelando-o.

Esse programa é realizado por classes de projeto artístico e cultural e de descobrimento do patrimônio de colégios e liceus.

Entre os instrumentos apresentados nas exposições do museu, muitos deles lembram instrumentos conhecidos dos indígenas do Brasil. Salientam-se aqui idiofones feitos de cachos de cápsulas vegetais que, presos aos tornozelos, se entrechocam. Um dos exemplos, são feitas de Cycus Circinalis secos, usados em danças de Bondé, Ouegoa.

O mesmo diz a certas flautas, devendo-se aqui salientar a particularidade daquelas feitas de partes de canas presas entre si com resina vegetal e levemente encurvadas.

Não comuns no Brasil são batedores em cortiça de figueira ou de outros materiais ou o "tambor" de folhas Pé de Lifou, Nova Caledonia, tocado por mulheres. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Dancas-dramaticas-Pacifico-Brasil.html)

Museu e patrimônio musical vivo

O descobrir a Nova Caledônia não resume-se, certamente, a demonstrar valores de um patrimônio cultural encerrado. Os instrumentos conservados no museu podem ser observados em grupos musicais, de dança e representações que se apresentam por ocasião de festas de comunidades e sobretudo para a representação das
ilhas e fomento do turismo. Ainda que os instrumentos sejam em grande parte os mesmos - como o demonstra a vitalidade do Pé não só em grupos da ilha de Lifou, como também de Nouméa, observa-se o uso de instrumentos ocidentais, salientando-se aqui o violão, cavaquinho e similares.

Se algumas encenações de lutas parecem ser relitos de tradições nativas, mantidas ainda por membros de determinadas tribos, e a forma de se apresentar dos homens lembrar a vida indígena, o trajar que revela pudor das mulheres e os próprios cantos e sua execução revelam a influência poderosa da ação missionária e da assimilação dos valores da sociedade predominante.

Se grupos de Lifou ainda mantém-se mais próximos à tradição, em Nouméa a música, a dança e as representações tradicionais são colocadas claramente a serviço de apresentações com o cunho de quadros de revistas e shows. Aqui observa-se uma espécie de polinesiação das expressões, com referências sobretudo ao Tahiti, sugerindo atmosfera esperada de Mar do Sul a visitantes.

Uma tahitização de expressões manifesta-se sobretudo na Hula dançada por mulheres  - que em geral apenas participam no canto em conjunto acompanhando-se discretamente com o Pé - leva a uma conotação mais sensual das expressões. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Pilu-Pilu-e-show.html)

Diferenças na participação feminina e masculina

As mulheres, vestidas com a reserva cheio de pudor imposta pelas longas saias soltas implantadas pelos missionários em nome da moral, o que se observa em muitos povos do Pacífico, do Caribe e da América Latina, apresentam-se ao lado de homens quase nús, com atributos indígenas ou "selvagens". 

Nesse confronto e interrelacionamento de expressões configuradas em diferentes situações - mulheres recatadas em trajes missionário-coloniais e homens semi-nús de representações tradicionais de lutas - salientam-se por vezes coros que evidenciam a tradição de música comunitária e de coros de igreja, com repertório ampliado com músicas populares da atualidade. Enquanto as cantoras ainda se acompanham suavemente com o "Pé", o conjunto canta em geral ao som de violão e outros instrumentos de percussão.

Esse panorama complexo que o observador obtém da cultura musical novo-caledoniana não pode ser compreendido adequadamente a partir de estudos organológicos ou de análise melódica, rítmica ou de outros fatores musicais no sentido de reconhecimento de sistemas caracterizadores de uma linguagem musical.

Constata-se, nessas realizações, a interação e concomitância de expressões provenientes de diferentes esferas da prática musical e decorrentes de diferentes processos: o missionário moralista no canto feminino e no Pé, na interpretação recatada do coro, nos seus próprios textos, o missionário que levou à resignificação de antigas encenações de lutas de homens, a tahitização de grupos mais voltados ao turismo, a assimilação dos mais variados instrumentos ocidentais e de outras culturas em auto-exotização. Apenas análises desses e outros processos no sentido de uma orientação teórico-cultural da pesquisa músico-cultural correspondem aqui a procedimentos adequados na aproximação às expressões musicais do complexo cultural novo-caledoniano.

Para o estudo desses processos, a consideração das fontes históricas é condição indispensável.

Uma fonte histórica pela primeira vez considerada: Pilu Pilu no texto de J. Garnier (1867)

O relato de viagem do Engenheiro Jules Garnier inclui uma pormenorizada descrição de festa com música e dança que vivenciou entre os nativos da região onde desenvolveu os seus trabalhos.

Esse seu texto representa uma significativa fonte histórica para uma prática até hoje constatada na Nova Caledônia: a importância dada à música e à dança no ato de recepção e despedida de visitantes.

Jules Garnier menciona que, tendo anunciado ao chefe da tribo onde se encontrava, de nome Arama, que as suas explorações haviam terminado e que partiria no dia seguinte, imediatamente percebeu uma movimentação não usual entre os nativos. Sempre tão calmos e sedentários, passaram a agitar-se, movimentando-se por toda a parte; de todos os lados ouviam-se gritos, as crianças e as mulheres vinham ao acampamento olhar com curiosidade como se algo muito especial fosse acontecer.

Ainda que até então apenas tivesse tido boas experiências no seio dessa tribo, passou mesmo até ter receios de que alguma das muito faladas perfídias pudesse acontecer, sobre as quais muito levianamente corriam boatos.

Também aqui, Jules Garnier, defendendo os nativos, demonstra como eram infundadas tais suposições negativas. Mesmo assim, chegou a advertir os seus auxiliares, mantendo-se de alerta. Em determinado momento, os gritos que se ouviam das redondezas se tornavam mais altos, passando a uma espécie de uivos que se tornaram cada vez mais próximos. Todos estavam assustados, mas a presença das mulheres e das crianças ao redor do acampamento tranquilizava os europeus. De repente, viram sair da mata uma fila de kanaks nús, tatuados, movimentando os seus machados em cadência, assim como os seus caça-cabeças e suas lanças. Aproximaram-se de mais em mais, colocando-se por fim em linha à frente dos europeus. Nesse momento, dois homens se sentaram à frente desse grupo de guerreiros, um com uma flauta, outro com um bambu ôco, sobre o qual percutiam ritmadamente. Os europeus reconheceram a música de festa, e perderam o mêdo. Tratava-se de um Pilu-Pilu oferecido pelo chefe Arama por ocasião de sua partida.

Nessas danças, os participantes moviam-se batendo o chão em cadência, agitando as suas armas em compasso ao som de um ruído em forma de assobio que imitiam. O principal episódio da cena era um natural ornado de Dangat, ou máscara caledoniana. Trata-se de uma cabeça de madeira, gigantesca, atemorizante, pela boca da qual o seu portador olha; cabelos humanos formam uma grande peruca e a parte inferior é amarrada por uma tira coberta de penas de pássaro. O kanak que a trazia avançava aos europeus vindo da borda do mar, fazendo alusão à sua chegada; dança por longo tempo à frente de seus, que o acompanham brandindo com força uma zagaia aguda sobre a sua cabeça.

Após essa cena, o chefe colocou-se êle próprio perante a linha e entoou aos que partiam uma espécie de melopéia rápida e entrecortada de pausas. Os kanaks dançavam sempre e cantavam em coro em altos brados sempre que o chefe parava. Jules Garnier dá um dos textos que eram entoados: "Nossos amigos vão nos deixar; Vão partir amanhã pelo grande mar. Que os ventos lhe sejam favoráveis! Que encontrem o mar doce e calmo! Que cheguem a bom porto!"

Representações aparentemente atemorizantes em visitas intertribais de amizade


Outra passagem de significado para estudos músico-culturais no relato de J. Garnier é aquele que se refere à sua passagem pela aldeia de Hienghène, quando foi testemunho de uma festa realizada pela morte do irmão do chefe, de nome Bouarate. Os kanaks de todas as tribos amigas para ali vieram em grupos, e no momento em que Garnier falava com Bouarate anunciou-se a chegada de uma deputação da tribo dos Néménas.

Essa tribo era há muito aliada, sendo os seus chefes ligados por vínculos de parentesco com aqueles de Hienghène. Era a tribo de Hienghène que construia para êles as grandes pirogas duplas, com as quais podiam ir pescar ao largo sobre os recifes, uma vez que nas suas montanhas não cresciam árvores kaori, da qual eram feitas as pirogas. Os jovens desta casavam-se não raro com jovens daquela tribo, cuja beleza era decantada. Eles traziam como ofertas sacos enfeitados de pedra, pontiagudas e polidas; fabricavam também colares de sementes ou de pedras, e tudo o mais que substituia o dinheiro entre os nativos.

Descrevendo a chegada da tribo amiga, J. Garnier salienta o aspecto singular e o intuito aparentemente atemorizador do proceder. Quando, a uma certa distância, entre o mar e a tribo, aproximou-se um grupo de homens que avançavam lentamente e de modo regular, ninguém da tribo de Bouarate fêz qualquer gesto de recebê-los; ao contrário, em alguns minutos, os guerreiros se reuniram num plano, apresentando-se todos armados e tatuados de fresco e dispondo-se em ordem e em silêncio ao retor de Bouarate, que tinha a seu lado o seu filho e três personagens das mais importantes da tribo: o chefe da palavra, o chefe da religião e o chefe da guerra. A uma distância de trezentos ou quatrocentos metros, os Néménas pararam, formaram uma roda e entoaram três gritos que ressoaram nas montanhas e de onde vieram numerosos ecos. Anunciavam assim a sua chegada.

Dançaram a seguir no mesmo lugar durante alguns minutos, formando um círculo no meio do qual se encontravam os presentes que iam ser oferecidos. Por fim, o grupo retomou o seu caminho em fila, andando em silêncio. Chegados no plano onde os europeus se encontravam, o grupo manobrou de modo a vir desfilar à frente da linha longa formada pelos guerreiros de Bouarate, começando pela direita.

Todos esses homens passaram diante deles com passos tranquilos, leves e silenciosos, o que caracterizava o modo de andar dos nativos. Todos estavam nús e apresentavam o peito e a face enegrecidas; à mão direita traziam uma longa lança ou uma caixa esculpida. Nenhum deles virava a cabeça para olhar de um ou outro lado. Contavam-se 150 guerreiros. Atrás deles vinham 56 kanaks, trazendo uma grande tartaruga e diferentes outros presentes que foram depositados perante Bouarate. Os habitantes de Néména, depois te terem desfilado, colocaram-se em linha perante a tribo de Hienghène.

O orador aproximou-se de Bouarate e lhe ofereceu os presentes da parte do chefe de Néména que, não podendo ter vindo pessoalmente, desejava fazer aliança de amizade com o filho de Bouarate, futuro chefe de Hienghène. Esses dois hovens sairam das filas e apertaram as mãos; depois, o jovem chefe do Norte apresentou dois ramalhetes, enquanto que um outro, encarregado dos presentes, ofereceu braceletes e colares ao filho de Bouarate.

Segundo o orador, os dois ramalhetes, feitos com determinadas plantas e folhas, eram simbólicos. Um representava a paz, outro estava envolto com um longo colar de sementes muito valorizadas pelos nativos. Após essa cerimônia, as danças começaram. Foram seguidas de um almoço e somente depois as mulheres chorarm o morto.

(Veja outros textos relativos à música nesta edição)

Grupo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Observação empírica e o estudo de fontes históricas da música dos kanaks
Nova Caledônia-Brasil na Etnomusicologia e no estudo de processos músico-culturais em contextos globais I". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 136/12 (2012:2). http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Musica-Nova-Caledonia.html




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.