Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________

Aborigene. Foto A.A.Bispo ©

Aborigene. Foto A.A.Bispo ©

Blue Mountains. Foto A.A.Bispo ©

Blue Mountains. Foto A.A.Bispo ©

Blue Mountains. Foto A.A.Bispo ©

Blue Mountains. Foto A.A.Bispo ©

Blue Mountains. Foto A.A.Bispo ©

Blue Mountains. Foto A.A.Bispo ©

Blue Mountains. Foto A.A.Bispo ©

Blue Mountains. Foto A.A.Bispo ©

Blue Mountains. Foto A.A.Bispo ©

Blue Mountains. Foto A.A.Bispo ©

Blue Mountains. Foto A.A.Bispo ©

Blue Mountains. Foto A.A.Bispo ©

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 136/3 (2012:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2863


A.B.E.


Scenic World. Descobrindo os descobertos e descobertos revelando-se
Um monumento às expressões aborígenes de boas-vindas nas Blue Mountains
- do Korrobori (
Korroberry, Corroberie, Corroboree)  -



Ciclo de estudos Rio 92-Sydney 2012 da A.B.E. no Pacífico Sul. Blue Mountains, Sydney

 
Blue Mountains. Foto A.A.Bispo ©

Em janeiro de 2012, realizaram-se ciclos de estudos na Austrália e em países da Oceânia sob o lema "Rio 92-Sydney 2012", nos quais foram retomadas questões discutidas no congresso internacional levado a efeito no ano dos 500 anos do Descobrimento da América em 1992, ano da Conferência Internacional do Meio Ambiente. (Veja Tema em Debate http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Australia-Melanesia-Brasil.html))

No evento de 92, as atenções foram voltadas aos fundamentos de processos desencadeados no Novo Mundo com a chegada dos europeus e às bases epistemológicas dos próprios estudos culturais.

Na consciência da perspectiva eurocêntrica da historiografia dos Descobrimentos, tematizou-se a necessidade de uma maior consideração da visão indígena na discussão histórica e no presente do trabalho intelectual. Para isso, deu-se início a um projeto de atualização de conhecimentos e de perspectivas voltado às culturas indígenas.

O direcionamento da atenção a processos - como propugnada pela organização fundada em 1968 e hoje representada pela A.B.E.(http://akademiebrasileuropa.de/Chroniken/1968-Neue-Diffusion.html) - exigiu a superação de delimitações nacionais ao estudo da atualidade da reflexão indígena em situações e instituições de outros países do continente americano.

Passados agora 20 anos do congresso, o campo de estudos e reflexões foi ainda mais ampliado, passando-se a considerar a história e da atualidade de aborígenes, kanaks e outros povos da Austrália e Oceania que experimentaram impactos e desenvolvimentos similares sob muitos aspectos àqueles dos indígenas do Novo Mundo. A A.B.E. deu, aqui continuidade a estudos que vem desenvolvendo no Pacífico. (Vide e.o.http://www.revista.brasil-europa.eu/118/Pacifico-Atlantico.html; http://www.revista.brasil-europa.eu/119/Tema-em-debate.html;http://www.revista.brasil-europa.eu/125/Polinesia.html)

Um dos aspectos tratados no congresso do "Ano Colombo" foi a questão do papel dos Descobrimentos na historiografia, de construções de imagens e mesmo mitos, assim como o da necessidade de reflexões sobre o "descobrir" nos estudos culturais.

No desenrolar dos trabalhos, os pesquisadores se propuseram antes a dirigir os trabalhos no sentido de ouvir o que o outro, no caso os indígenas, revelavam e revelam. Considerando-se a atualidade de apelativos ao descobrir e revelar patrimônios no Brasil e na Oceânia, os trabalhos de 2012 realizaram sobretudo à luz desses conceitos.

Blue Mountains. Foto A.A.Bispo ©

Música e dança de povos extra-europeus por ocasião da chegada dos europeus

Já foi por várias vezes salientado o papel da música e da dança em atos de chegada de europeus em novas terras, tanto do lado daqueles que chegam como dos nativos. Esse foi o caso do Descobrimento do Brasil, sendo os dados sobre a primeira missa e as festas que a ela se seguiram marco dos estudos culturais e musicais, estudados sob diversas perspectivas em diversas publicações e eventos. (A.A.Bispo, "Zur traditionellen Praxis des Gregorianischen Chorals in Brasilien", Divini Cultus Splendori: Studia Musicae Sacrae necnon et Musico-Paedagogiae, Roma 1980, 87-96; Grundlagen Christlicher Musikkultur in der aussereuropäischen Welt der Neuzeit: der Raum des früheren portugiesischen Patronatsrechts, Jahrbuch Musices Aptatio 1987/88, Roma/Colonia 1989, 540; "Musik in der ersten Quelle: Begegnung der Indianer mit der Verehrung des Kreuzes", Die Musikkulturen der Indianer Brasiliens IV, Roma/Siegburg 2002, 16-25))

Os dados dessas fontes podem ser exemplarmente considerados sobretudo sob as duas perspectivas, servindo para estudos de reciprocidades de processos receptivos e, nesse sentido, representando marcos iniciais no tratamento de questões relacionadas à visão dos dois lados do processo desencadeado pelo encontro.

Recepção de europeus de expressões de receptividade de indígenas

Um dos aspectos desses primeiros momentos tanto com relação ao Brasil como a outras partes do mundo reside nas surpreendentes menções a expressões de boas vindas por parte dos encontrados. Nessa perspectiva, coloca-se então a questão de como os europeus perceberam e interpretaram tais expressões.

Já esse questionamento expressa uma tentativa de modificação de ângulo de perspectiva em complexo jogo interpretativo de textos documentais: do registro europeu tira-se dados a respeito de expressões culturais de indígenas considerando que as mesmas foram documentadas a modo daquele que a recebeu, passando-se, a seguir, a assumir empaticamente a posição daquele que manifestou surprêsa pela chegada de visitantes.

Esse procedimento pode ser exercitado de modo particularmente favorável na Austrália e na Oceania, pois tem-se documentos históricos e ainda hoje a possibilidade de observação empírica do significado do dar as boas-vindas (e despedidas) a visitantes por parte de aborígenes e kanaks.

Essas expressões, que assumem por vezes formas inusitadas e não compreendidas, constituem hoje importante parte do patrimônio cultural de muitas ilhas e representam, além do mais, modos de revelação. Os visitados, demonstrando a sua simpatia ou hospitalidade, revelam-se como amigos. Tem-se, assim, possibilidades de analisar, nessas expressões, as complexas relações entre o descobrir e o revelar.


Korrobori/Corroboree

Monumento às expressões de boas vindas de aborígenes

Um das mais representativas obras de estatuária dedicadas a uma expressão cultural de interesse etnomusicológico e de encontro de culturas é o conjunto de figuras de aborígenes que se encontra à entrada do centro de visitas de Blue Mountains.

Aquele que chega não entende de início o sentido desse conjunto de figuras, apenas distinguindo mulheres e homens em estranhas contorsões e gestos, em expressão de alegria em gestos aparentemente desajeitados e unusuais. Que as figuras representam aborígenes, isso é imediatamente reconhecível.

Situando-se as figuras abaixo dos dizeres do parque que indicam a sua relevância como região natural de extraordinárias qualidades ecológicas e de beleza (Scenic World), o observador pode perceber relações intendidas entre a natureza privilegiada das Blue Mountains, a proposta das instalações ali existentes e a vida dos aborígenes, os primeiros donos das terras.

O que apenas poucos observadores percebem é que o conjunto plástico representa realisticamente uma expressão dos aborígenes de dar as boas vindas àqueles que chegam. A questão que se levanta é a da veracidade ou pelo menos da propriedade da representação.

Em primeira aproximação, poder-se-ia pensar que o artista deu expansão à sua imaginação, criando uma obra com características livres, até mesmo diminuidoras dos aborígenes, uma vez que esses se apresentam de forma e com gestos grotescos. O observador constata uma desproporção nos corpos, as pernas finas e longas daqueles que se movimentam, as expressões faciais que podem ser vistas como boçais, o que leva a indagar a razão pela qual ali, em local de tal significado ecológico, turístico e de ensino se levantou uma encenação plástica de cariz negativo ou preconceituoso para com os nativos.

Fundamentos documentais da representação plástica do Korrobori

Essas suposições puderam ser relativadas e o sentido da representação plástica explicado a partir dos trabalhos de levantamento de dados históricos de interesse músico-cultural em contextos globais que veem sendo desenvolvidos pela A.B.E./I.S.M.P.S..

Tendo sido esses dados tratados de forma contextualizada em cursos universitários dedicados à música no encontro de culturas na década de 90 pelo editor desta revista, foram considerados em ciclos de estudos posteriores promovidos pela A.B.E. na Austrália e Nova Zelândia, como relatado em número anterior desta revista. Naquela ocasião, comemorando-se o ano Darwin, salientou-se a descrição que esse cientista deixou a respeito de uma das mais significativas expressões culturais dos aborígenes de interesse musical, coreológico e para o estudo de encenações. (http://www.revista.brasil-europa.eu/119/Darwin-Albany.html)

A representação plástica corresponde em pormenores a uma descrição publicada em livro publicado na Alemanha, em 1885, até então não considerada nos estudos etnomusicológicos. A descrição literária coincide de tal modo com a representação plástica que tudo indica que foi usada como base para o trabalho criador do artista. Trata-se de um relato de festa de boas-vindas de aborígenes a um europeu - James Brown - que acabava de chegar à Austrália e que pretendia ali assentar-se.

O mais significativo, porém, é que esse texto foi escolhido para integrar um livro representativo de uma fase da Geografia no qual se procurava transmitir imagens de caráter de regiões da terra a partir de quadros transmitidos por obras dedicadas a países e a povos. O livro tinha como escopo servir ao ensino da Geografia nas escolas e proporcionar uma leitura enriquecedora a todos os amigos dessa disciplina (A. W. Grube, Geographische Charakterbilder in abgerundeten Gemälden aus der Länder- und Völkerkunde, Leipzig: Friedrich Brandstetter 1885).

O autor integrou a descrição de James Brown com o título "Uma festa dos negros austrálios" no seu capítulo dedicado à Austrália, fazendo-a seguir ao ítem "Uma viagem aos montes azuis" (op. cit. 565-567). Com essa disposição, localiza a festa descrita na região em que hoje se levanta o centro ecológico que recebe os seus visitantes com a encenação plástica da festa de boas vindas dos aborígenes. Estabelece, assim, uma relação estreita entre essa região montanhosa e o mundo dos aborígenes, o que também menciona explicitamente no seu texto.


As boas vindas de aborígenes nos Blue Mountains

A.W. Grube oferece, no seu texto, primeiramente uma descrição de Blue Mountains em fins do século XIX, quando já havia sido alcançada pela ferrovia. É, neste sentido, de interesse histórico-cultural local e regional, pois registra uma fase importante da expansão da sociedade colonial de Sydney no interior do país. Ao mesmo tempo, é documento significativo para o estudo das relações entre Cultura e Natureza em contextos globais, registrando o início de uma das regiões que se tornariam das mais procuradas pelas suas qualidade climáticas e suas belezas.

Grube lembra que o povoamento do interior australiano partiu de Sydney. Somente após 25 anos da tomada de posse da Austrália é que se conseguiu dar início ao empreendimento de atravessar o cinturão de mata e mato que se situava entre o litoral leste e as montanhas australianas chamadas de montes azuis. Até então, essas montanhas tinham constituido a fronteira sudoeste do território de Novo Gales do Sul. Apenas em 1815 completou-se a estrada que levava a esses montes, que, transposto, abriu um imenso areal para a colonização e para a pecuária. O próximo passo para a exploração do interior e expansão da sociedade colonial deu-se com a construção da ferrovia em 1846, a primeira da Austrália. Inicialmente ia de Sydney até Paramatta, sendo posteriormente prolongada até Orange.

A construção dessa ferrovia através de montanhas cortadas por grandes abismos, com íngrimes elevações, exigiu enormes capitais. O ponto mais elevado foi alcançado no Mount Viktoria, numa altitude de mar de 4100 pés. Como a linha ferroviária precisou ser instalada com muitas curvas, a distância percorrida, no todo, não era muito longa. O trajeto em Emu-Places, Mount Viktoria e Mount York exigiram túneis bastante longos escavados na rocha, por abismos e por altas pontes. O panorama de ambos os lados oferecia quadros às vezes atemorizadores e cinzentos, às vezes suaves, claros e convidativos. Continuamente abriam-se aos olhos do viajante novos e interessantes cenários. Grube explica que o nome de "montes azuis" explica-se pelo fato das montanhas surgirem à distância envoltas em éter azul, perceptível mesmo em dias irradiantes de sol. Esse fenômeno era atribuído às emanações das diferentes espécies de eucaliptos que cobriam esses montes.

"Uma festa dos negros austrálios" de James Brown

Como mencionado, o autor inclui, no seu livro sôbre o caráter dos povos um texto de James Brown que relata uma festa de aborígenes. Esse texto, se lido concomitantemente com a apreciação da plástica, indica ter sido usado comm muita probabilidade como ponto de partida para a representação. Primeiramente, cumpre salientar a expressão visual da figura feminina esculpida com as características fisionômicas descritas por Brown do primeiro aborígene que encontrou na Austrália, de nome Wan-e-war.

"A primeira impressão que ganhamos de um selvagem semi-sorridente, com a sua cor negro-carvão, os seus olhos brilhantes e penetrantes, com só uma fila de dentes, que se salientam desproporcionadamente de uma boca grande, aberta, foi a de que êle seria antes um pavinao ou uma criatura qualquer estranha desse novo mundo do que um ser humano. Um traje curto de couros de canguru, o costume resistente dos nativos, como constatamos mais tarde, era a sua única peça de roupa e alcançava até mais ou menos a metade de sua coxa, deixando descobertas as metades inferiores das pernas magras, disformes. Os seus braços eram magros mas fortes, como são em geral mais desenvolvidos entre os selvagens australianos do que os magros membros inferiores."

O artista parece ter dividido o Wan-e-war de Brown em duas figuras, o da mulher acima descrita e o de Wan-e-war propriamente dito. Essa parte da descrição de Brown coincide com os traços da plástica, sobretudo nos traços de sua fisionomia.

"Ele era de pequena estatura, sem significado, e, como, soube, de 30 anos de idade, embora parecesse ser muito mais velho. O seu cabelo espesso, crespo, crescia fundo na testa baixa, fracamente desenvolvida; os seus olhos eram pequenos, baixos e vivos, o seu nariz estreito e mais ou menos achatado, a sua boca larga e saliente. Assim era Wan-e-war, o primeiro nativo da Austrália que tive à frente, e um bom tipo de sua raça decadente e infeliz. Logo tivemos outras oportunidades de observar os proprietários originais da terra na qual íamos nos assentar."


Descrição documental e realização plástica

Correspondendo ao texto, percebe-se que a principal intenção do artista não foi, porém, a de representar tipos humanos, mas sobretudo o ato da festa com a qual receberam James Brown. Este descreve expressivamente como os aborígenes improvisaram a Korrobori/Corroboree (Korroberry ou Corroberie) para a própria noite da chegada.

"Ao cair da tarde do nosso dia de chegada ouvimos uma alta gritaria e conversações entre os selvagens, do qual entendemos que se preparavam para alguma festividade especial. Os homens estavam reiunido ao redor do fogo e ocupados em se ornamentar, passando uma pomada feita de gordura e ocre vermelho nas suas carapinhas, assim como o seu corpo de diferentes modos. Todos esses preparativos eram para o Korroberry, uma dança que queriam realizar em homenagem à chegada dos estrangeiros. Para esse fim, reuniram-se logo após o cair da noite ao redor de um fogo aceso nas proximidades da nossa moradia, e assim começou a festa."

A atenção do cronista e o do artista plástico voltou-se aos detalhes das vestes, dos atributos e da pintura. Percebe-se, aqui, que o escultor procurou, através do tratamento do material, transmitir o brilho da pele untada de gordura dos participantes. Também o Wameva, que o autor menciona como nunca saindo das mãos dos homens, é representado na figura.

"Os mantos dos dançantes não eram atirados sôbre os ombros, como de uso, mas amarrados nas cinturas, deixando o tronco totalmente livre e que, assim como a face, estava pintado da forma mais grotesca com ocre vermelhos e luzia de gordura. Alguns traziam maços de penas ou flores nos cabelos, enquanto outros haviam colocado o rabo de um cão selvagem no gorro. Alguns traziam um osso de canguru num orifício na raíz do nariz; todos traziam lanças e Wamevas (paus para atirar de madeira dura, que os selvagens nunca soltam), e, assim estando ao redor do fogo, que atirava uma luz clara nos seus corpos luzios de gordura, o quadro geral era verdadeiramente pitoresco e selvagem."

A descrição do canto fornecida por James Brown não pôde, naturalmente, ser representada realisticamente no grupo escultório. Entretanto, lendo-a, o observador parece ouví-lo da boca entreaberta do aborígene e ao som do qual os participantes se movimentam.

"Aqueles que queriam tomar parte na dança agruparam-se de um lado da fogueira, do outro sentavam-se os velhos, as mulheres e as crianças. A festa começou com a entoação de uma espécie de canto de lamentação pelos dançantes, no qual entravam por vezes os homens velhos e as mulheres. Todo o texto do canto era constituido das palavras Junger a bia, mati, mati!, sempre repetidas; cantavam em tom alto, esganiçado, e deixavam que a voz descesse aos poucos, até que fosse, por fim, fraca e suave, que quase não podia ser diferenciada do ruído do ar que saía do mato."

Mais realisticamente, o artista pôde representar na sua obra a descrição da posição corporal dos dançantes. Apresenta-os em posição encurvada ou com os joelhos semi-dobrados,

"Durante o canto, os dançantes permaneceram em posição encurvada e marcavam o compasso com os pés, que levantavam com pequenos movimentos do chão, mechendo ao mesmo tempo com as duas pontas compridas de suas barbas. De repento, modificaram a sua música num alto ha hei, ha hei, ha hei!, enquanto entrechocavam as suas lanças e Wamevas e socavam os pés com toda a força no chão. Levantando-se com um gesto repentino, soltaram um grito alto, aterrorizador de Garra wai! De novo tomaram o seu movimento inicial, mas em tempo duplamente mais rápido; logo toda a fila passou a movimentar-se de lado, para cima e para baixo, ombro a ombro, logo dançavam em roda ao redor, e tudo ao som da mesma música e do mesmo bater de pés."

Particularmente significativa na descrição de Brown é o trecho em que menciona danças imitativas do canguru e das atividades de caça. Essa cena pode ser vista como indício do sentido da festa como auto-revelação do grupo, apresentando cenas do seu quotidiano e modo de vida, uma interpretação que não tem sido até o momento considerada, uma vez qua a atenção sempre tem sido voltada a conteúdos simbólicos. Já em trabalhos anteriores da A.B.E. realizados em Albany (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/119/Darwin-Albany.html), considerou-se a descrição de Darwin da mesma expressão, na qual se descreve, ao lado da dança da ema, também a do cangurú. O intuito imitativo dos movimentos do animal é em ambos os casos claramente expresso, na descrição de Brown tem-se, porém, a atenção dirigida à caça do animal, fato que precedeu à confraternização geral na dança. O momento do revelar aos de fora aspectos do modo de vida da própria comunidade é assim salientado.

"Cansados desse divertimento, começaram com a Dança do Canguru. Esta era muito semelhante à descrita, apenas com a diferença que no meio do barulho um dos homens aparecia pulando e saltando como um canguru entre os dançantes ao redor do fogo; de repente, a dança parou, e um dos dançantes apareceu como se perseguisse um animal. Ambos representaram o ato de caçar e matar o canguru, e, quando isso se deu, uniram-se de novo todos na dança. No meio do barulho, do bater dos pés e do entrechocar das lanças e Wamevas, dos gritos e dos uivos apagou-se o fogo, a cena foi coberta pela escuridão e o divertimento noturno chegou a seu fim. Assim terminou o primeiro dia da minha estadia na Austrália ocidental."


Revelando sentidos não compreendidos e o papel do índio americano nas interpretações

Relatos de viajantes e imigrantes como esse de James Brown, sendo aproveitados para publicações de Geografia Humana e de Estudos de Povos ou Etnografia, marcaram imagens e interpretações. Serviram como reveladores de expressões culturais e influenciaram publicações de cunho científico que, por sua vez, emprestaram-lhes respaldo teórico.


Esses relatos de observações, necessariamente superficiais, representavam ou podiam representar interpretações inadequadas de sentidos. O „revelando“ nessas descrições podia não corresponder àquilo que os aborígenes revelavam.


Já em publicações posteriores de Geografia e Etnografia, assim, passou-se a salientar os elos mais profundos das expressões com a vida e a visão do mundo e do homem dos nativos, sobretudo considerados sob o conceito de Totemismo. Com esse conceito, os autores estabeleceram paralelos com as culturas indígenas das Américas.


Um exemplo expressivo desses paralelos oferece a Geografia de H. Harms,  primeiramente publicada em 1923, cujo volume IV trata da América e da Austrália com a Oceania e Antártica e cujo autor também procurou considerar relatos de viagem para oferecer aos leitores não fontes, mas sim textos impregnados de ação, oferecedores de panoramas gerais cheios de vida, capazes de dar aos leitores a impressão de vivenciarem as diferentes regiões da terra.


Considerado como modelar para esse tipo de descrição foi singularmente um texto relativo ao Brasil, com impressões do imigrante Friedrich Hoops, cujas qualidades foram tão altamente consideradas que passou a ser recomendado para leituras em voz alta nas famílias e nas escolas.  (H. Harms, Erdkunde in entwickelnder, anschaulicher Darstellung IV/II: Australien, Ozeanien und Antarktis, com a colaboração de G. Hennigs, ed. por Albin Arno Müller, Leipzig 1927, Prefácio)



Nessa publicação, o Totemismo dos australianos é explicado a partir do termo totem dos indígenas americanos, compreendido como sinal e emblema. Para o autor, o Totemismo, que seria próprio dos índios, poderia ser designado como uma espécie de „aliança com a natureza com a finalidade de manutenção recíproca“. Nesse sentido, cada grupo na Austrália e Oceania possua o seu totem, ou seja, o seu sinal ou emblema, proveniente do mundo animal ou vegetal. Segundo o animal escolhido, por ex. o cangurú ou emu, ou segundo uma determinada planta, o grupo não era apenas designado, mas também relacionado com o ser vivente respectivo, um testemunho de que os povos naturais não fariam uma distinção essencial entre homens, animais e plantas.


Os austrálios acreditariam, segundo o autor, que se encontravam sob a proteção do ser vivente representado pelo totem, animal ou planta; por outro lado, esse ser vivente era também protegido pelo grupo. O animal correspondente não era morto, mas até mesmo integrado em atos de sentido não-revelado destinados ao incremento do bem-estar e da fertilidade e poder do grupo respectivo dos animais e das plantas. Assim como os homens de um mesmo totem eram vistos como irmãos do seu animal-totem, seriam irmãos entre si, de modo que os membros do mesmo totem não se casariam no interior do grupo, procurando mulheres de outras tribos ou clans. 


A possibilitação desses casamentos era um dos objetivos dos encontros chamados de Korrobori. O Korrobori teria, assim uma função fundamental na organização social e na religião. Realizava-se entre os diferentes grupos para o estabelecimento de laços de amizade, de comércio de trocas, para a celebração da puberdade de jovens, para casamentos, aconselhamentos ou mesmo para a moderação de conflitos.


Esses Korroboris, com danças pantomímicas, eram frequentemente acompanhados por ritos de introdução de jovens nas normas e tradições do grupo. Neles manifestava-se uma certa sabedoria de vida do grupo, por exemplo no fato de que se ensinavam aos jovens que rabos de canguru e galinhas, assim como certos alimentos, os fariam envelhecer precocemente, levando-os a que os deixassem para os mais idosos. Assim, o Korrobori surgia como um substituto relevante de uma organização política mais estruturada ou de toda a ordem de Estado. (op.cit. 103)


Grupo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Scenic World. Descobrindo os descobertos e descobertos revelando-se
Um monumento às expressões aborígenes de boas-vindas nas Blue Mountains
". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 136/3 (2012:2). http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Aborigenes-Blue-Mountains.html






  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.