Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 119/6 (2009:3)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2447


 




Fontes históricas da Etnomusicologia e da Musicologia de orientação intercultural:

Aborígenes e índios

Darwin e o Corroboree em Albany, Austrália







Albany. Foto A.A. Bispo 2009©
Este texto apresenta uma súmula de reflexões encetadas no decorrer de ciclo de estudos, contatos e observações realizados na Austrália e Nova Zelândia no âmbito do programa Atlântico/Pacífico da ABE/ISMPS pelo Ano Darwin 2009. O evento foi preparado no contexto dos cursos "Música no Encontro de Culturas" (1998-2002) e "Música na Oceania" (2008) levados a efeito na Universidade de Colonia sob a direção de A.A.Bispo.


O programa de trabalhos - o primeiro do gênero - concretizou impulsos partidos do Congresso Internacional "Música e Visões" pelos 500 anos do Brasil e triênio subsequente (1999-2004), do II° Congresso Brasileiro de Musicologia (RJ 1992), do Encontro Regional para a América Latina e Caribe ICM/UNESCO (SP 1987) e do projeto "Culturas Musicais Indígenas" patrocinado pelo Ministério das Relações Exteriores da Alemanha (1992-).


Os trabalhos procuraram dar continuidade aos impulsos decorrentes do simpósio de renovação dos estudos interamericanos e transatlânticos (Leichlingen/Colonia 1983). A orientação teórica é marcada pela tradição de pensamento e de iniciativas remontante à sociedade de renovação de estudos e prática cultura fundada em S. Paulo, em 1968 (Nova Difusão), atual Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais.

Instituições envolvidas e visitadas: Academia Brasil-Europa, Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes e.V./IBEM, National Maritime Museum (Sydney), Tasmanian Museum (Hobart), State Library of New South Wales (Sydney), Western Australian Museum (Albany), Pacific Cultures Gallery (Adelaide), Royal Exhibition Building (Melbourne) e Viktoria Library (Melbourne)






Descrições e notícias de interesse etnomusicológico em obras de viajantes são frequentemente consideradas em publicações especializadas. Várias questões teóricas relacionadas com essas fontes também já foram levantadas e tratadas sob diversos aspectos. Entretanto, a discussão não está encerrada.


Em seminários e cursos da A.B.E. tem-se salientado sobretudo o fato de que é insuficiente a consideração de tais fontes históricas apenas com o intuito de nelas se encontrar referências a expressões culturais conhecidas no presente. Uma superação de perspectivas convencionais da Etnomusicologia e uma reorientação da historiografia da música em função de contextos internacionais podem abrir novas perspectivas para os estudos musicológicos sensíveis a questões teórico-culturais em âmbito global.


Tal discussão foi desenvolvida por último sob a direção do editor desta revista em janeiro/fevereiro de 2008, na Universidade de Colonia, Alemanha, dando-se atenção sobretudo à função de fontes históricas relacionadas com a Austrália em confronto com aquelas pertinentes ao Brasil. Uma das preocupações foi a de discutir critérios de leitura adequados para a percepção do  como os autores desses relatos viram a realidade em função dos conhecimentos e das imagens que traziam de outras regiões.


Uma fonte particularmente discutida, por não ter sido até hoje considerada pormenorizadamente em estudos etnomusicológicos e histórico-musicais globais foi a descrição de uma expressão cultural de aborígenes australianos por Charles R. Darwin. Tendo visitado a Austrália após ter estado na América do Sul, as observações de Darwin surgem como sendo de particular interesse para estudos euro-australiano-brasileiros. Esse debate foi retomado em viagem realizada pelo Ano Darwin 2009 ao local onde Darwin realizou o seu registro, a Albany, Austrália.


As reflexões puderam apoiar-se em exposição referente ao encontro de europeus e aborígenes do Western Australian Museum, localizado no histórico edifício dos Government Residents e Resident Magistrates à frente do Princess Royal Harbour. Principal fonte utilizada foi a reedição-aniversário pelo Ano Darwin da obra de F.W. Nicholas & J.M. Nicholas Charles Darwin in Australia (Cambridge University Press 2008).


Contexto histórico do contato entre europeus e aborígenes


A observação de interesse etnomusicológico de Darwin deu-se durante a sua viagem de retorno. No dia 6 de março, à tarde, ancoraram na embocadura do porto de King Georges Sound.


No dia seguinte, atravessaram os estreitos em direção ao Princess Royal Harbour. Darwin chegava aqui a uma região que já havia sido visitada por outros viajantes.


Em 1791, George Vancouver havia explorado a costa da então New Holland, denominando a região e tomando posse, a 26 de setembro, do território para a Coroa britânica. Tentou estabelecer boas relações com os nativos. No ano seguinte, a região foi visitada pelo francês Bruni d‘Entrecasteaux, sem porém ter entrado no King George Sound. Matthew Flinders, em 1801, permaneceu algumas semanas na área.


À época da independência do Brasil, o território foi visitado por Phillip Parker King. Alguns anos mais tarde, em 1826, novamente um francês, Dumont d‘Urville, aportou na região antes de seguir a costa até Port Jackson. Preocupados com a possibilidade de que franceses passassem a colonizar a costa australiana, e perante a necessidade de ereção de uma nova colonia de detentos, o govêrno britânico determinou a vinda de parte das tropas e de detentos de Sydney.


O povoado foi estabelecido a 21 de janeiro de 1827. Os contatos com os aborígenes foram marcados positivamente pelo resgate de mulheres nativas que haviam sido sequestradas por europeus. Esse ato fundamentou boas relações entre os nativos e os colonizadores nessa região, tendo sido comemorado pela realização de uma festa com danças: um Corroboree.


Entretanto, a posição da colonia foi prejudicada pela criação, dois anos depois, de uma outra, independente, no Rio Swan, a atual cidade de Perth. Para lá foram transferidos os detentos, em 1831. Albany foi criada oficialmente no início de 1832, referindo-se o seu nome ao Príncipe Frederick, filho de George III, e que era duque de York e Albany. O significado da localidade manteve-se apenas pelo fato de ser o único porto de maior calado na Austrália Ocidental, um privilégio que perderia apenas em 1900 com a abertura do porto de Fremantle, próximo de Perth.


Albany à época de Darwin


A vinda de Darwin ocorreu cinco anos após esses fatos, e a cidade já demonstrava sinais de ter perdido a sua importância.


Como Darwin salienta, as suas impressões não foram positivas, e a semana que ali passou teria sido a menos interessante desde que saíra da Inglaterra. A colonia contava, na época, com apenas 30 ou quarenta casas, caiadas de branco, com poucos e pequenos jardins. As circunvizinhanças permaneciam em estado original. A vida dos habitantes era bastante simples, vivendo de carne salgada, sem conforto. Uma modesta exceção era uma pequena fazenda das redondezas, de R. Spencer, hoje local de interesse histórico.


A situação rústica do local nesses primórdios de sua urbanização e colonização permite que se compreenda o grau mais intenso de contato entre europeus e aborígenes. O próprio Darwin reconhecia que a má impressão que obtivera da localidade poderia ser explicada pelo fato de ser demasiadamente recente a colonização da região.


Entre os aspectos positivos, porém, salientou não apenas a amenidade do clima e o fato de ali chover mais do que em outras regiões. Para êle, os „aboriginal blacks“ da região eram de melhor índole, de expressão mais bem humorada e mais dispostos ao trabalho do que aqueles que vira em outras localidades, embora fossem, nos seus costumes, instrumentos e aparência similares àqueles de New South Wales. Darwin menciona assim expressamente as condições mais positivas nas relações entre europeus e nativos nessa região, fato explicável pela história do contato, como acima mencionado:


„Although true Savages, it is impossible not to feel an inclination to like such quiet good-natured men“.


Corrobery/Corroboree


Assim como o início da história dos contatos entre europeus e aborígenes foi marcada positivamente pela realização de um Corroboree, também a estadia de Darwin coincidiu com a celebração dessa dança.


Durante os primeiros dois dias após a sua chegada, ocorreu a vinda de um numeroso grupo de aborígenes, denominado de „homens de White Coccatoo“. Esses homens, juntamente com pessoas de King Georges Sound, foram solicitados a realizar um Corrobery nas proximidades de uma das casas dos residentes. Foram conquistados com a oferta de algumas vasilhas de arroz cozido e açúcar.


Também o capitão FritzRoy, no segundo volume de sua Narrative, oferece uma descrição do Corrobery. Seguindo êle, a dança teria sido sugerida sob a alegação de que os residentes queriam estabelecer laços estreitos de conciliação com os aborígenes. Teria sido o próprio Darwin aquele que providenciara a grande porção de arroz cozido e açúcar para agradá-los.


O texto de Darwin pode ser inserido entre as mais significativas descrições de interesse etnomusicológico que se possui de viajantes do passado. Oferece, inicialmente, um quadro da ocorrência, de seus preparativos e das características gerais da dança.


„Assim que escureceu, acenderam pequenos fogos e começaram a sua toilete, que consistia em pintar-se a si próprios com pontos e linhas, com uma tinta branca. Tão logo a dança começou, manteve-se grandes fogueiras, ao redor dos quais as mulheres e crianças se reuniam como espectadores.


Os Coccatoo e a gente de King George formaram dois grupos distintos, dançando em geral em resposta um ao outro. A dança consistia no correr de todo o grupo, de lado ou em fila indiana em espaço aberto, e no bater com os pés no chão todos juntos e com grande força. Isso era acompanhado cada vez com uma espécie de ronco ou suspiro, com o bater no chão de suas maças e armas, e várias gesticulações, tais como estender os braços ou contorcer os corpos.“ (F.W. Nicholas e J. M. Nicholas, op.cit. 165)


A seguir, Darwin entra na questão da interpretação de sentido daquilo que observou:


„Era uma cena das mais rudemente bárbaras e para nós sem nenhum sentido: mas constatamos que as mulheres e as crianças observaram todo o procedimento com muito interesse. Talvez essas danças tivessem representado originalmente algumas cenas tais como guerras e vitórias; houve uma, chamada de dança do emu, na qual o grupo estendia um braço numa forma curvada como se imitasse os movimentos do pescoço de emus. Numa outra dança, um homem mostrou os movimentos de um cangurú no bosque, enquanto que outro homem rastejava, pretendendo atingí-lo com a lança. Quando ambas as tribos se juntaram numa única dança, o chão tremeu com a força do bater de pés e o ar ressoou com os seus gritos selvagens.“ (loc.cit.)


Essa descrição de Darwin lembra, sob muitos aspectos, descrições de festas indígenas do Brasil. A sua interpretação, mencionando a representação de combates e, sobretudo, de imitação da vida animal e de caça coincide com a impressão que observadores estrangeiros do passado transmitiram de danças indígenas.


Aliás, o próprio Darwin refere-se expressamente a essas descrições e ao fato de se ter, aqui, expressões similares ocorrentes em diferentes regiões do mundo. Podia contar, no caso, com as suas observações de expressões de indígenas da Terra do Fogo. Como se sabe, Darwin teve como companheiros de viagem à América do Sul nativos da região que haviam sido sequestrados para aprender a língua e costumes na Grã-Bretanha e que eram trazidos de volta para a Terra do Fogo.


„Todos pareciam estar com bom ânimo, e o grupo de figuras quase nuas, visto à luz dos fogos, todos se movimentando em harmonia terrível, formava uma cena perfeita de uma festa entre bárbaros dos mais inferiores. Imagino, pelo que li, que cenas similares podem ser vistas entre povos de cor que habitam o extremo sul da África. Na Terra do Fogo, observamos várias cenas curiosas da vida selvagem, mas nunca uma na qual os nativos estivessem de ânimo tão alto e que fosse tão perfeita a seu modo. Quando a dança acabou, formaram um grande círculo no chão, e o arroz cozido, para o prazer de todos, foi distribuido a cada um, sucessivamente.“ (op.cit. 167)


A descrição de Darwin permite que se constate que o Corroboree era não apenas uma dança aborígene, mas sim designava a celebração de uma ocasião determinada, com danças e canto. Supõe-se que o termo seja originário da região de New South Wales.


O termo „boojery carib-berie“, no sentido de „boa dança“ encontra-se no An Historical Journal of Events at Sydney and at Sea, 1787-1792, de John Hunter (Sydney, 1968, 148, cit. in Alice M. Moyle, „Corroboree“, The New Grove Dictionary of Music & Musicians 4; Londres: Macmillan Publishers Limited, 1980, 804).


A descrição de Darwin permite também que se suponha ter ocorrido o fato hoje conhecido pelos etnólogos da participação de diferentes grupos no Corroboree. As dificuldades de interpretação da dança testemunha também o fato apontado na literatura de que o Corroboree possui conotações sócio-religiosas apenas compreendidas por poucos. Sabe-se que - similarmente ao que ocorre em várias culturas indígenas do Brasil - os Corroborees, ou seja, os seus cantos e textos eram recebidos em sonhos, acreditando-se ser espíritos da morte aqueles que o transmitiam.


(...)


Antonio Alexandre Bispo



  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa (A.B.E.) - e do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, I.S.M.P.S. e.V.), visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens: http://www.brasil-europa.eu


  2. A A.B.E. é entidade exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias. É, na sua orientação teórico-cultural, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. A Organização de Estudos de Processos Culturais remonta a entidade fundada e registrada em 1968 (Nova Difusão). A A.B.E. insere-se em tradição derivada de academia fundada em Salzburg pelos seus mentores, em 1919, sobre a qual procura sempre refletir.