Bispo, A.A..Estudos jesuitas, processos performativos e músico-educativos. Colegio de São Paulo - Brasil e Goa. Rev. BRASIL-EUROPA 131/17. Academia Brasil-Europa e ISMPS






Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

A Educação Musical no Brasil, para ser tratada adequadamente, necessita da cooperação interdisciplinar, em particular da Musicologia, desde que esta tenha uma orientação científico-cultural, como vem sendo defendido no âmbito dos trabalhos do I.S.M.P.S. e da A.B.E..


Para a pesquisa musicológica assim compreendida, a consideração da história e do presente da Educação Musical nas suas concepções e na sua prática representa tarefa até mesmo privilegiada.


Faz parte de um procedimento correto por parte da pesquisa, porém, considerar o vir-a-ser e o desenvolvimento dos estudos e das reflexões, ou seja a própria história da pesquisa e a situação do debate dela decorrente. Somente assim pode-se esperar um progresso fundamentado, refletido e justo dos conhecimentos e das reflexões a serviço tanto da própria pesquisa como da política e da prática músico-educativa. Ignorá-lo significa ou atestar desconhecimentos, intuitos questionáveis de tentativas de reescrita da história da pesquisa ou de ingênuas afirmações de grupos, em todos os casos reverberativas e contraproducentes.


As preocupações e os esforços concernentes ao relacionamento interdisciplinar entre a Educação Musical, a pesquisa musicológica e os estudos culturais não são recentes. Vários aspectos dessas relações foram tratados quando da introdução de disciplinas de natureza musicológica, em particular de Etnomusicologia em cursos de Licenciatura em Educação Musical/Artística da Faculdade de Música do Instituto Musical de São Paulo, em 1972. Questões metodológicas relativas ao trabalho interdisciplinar foram tematizadas durante o Primeiro Congresso Nacional de Educação Musical realizado por instituições de ensino superior e de pesquisa de São Paulo em 1974. (Bispo, A.A. "Possibilidades e limites de uma orientação musicológica à Educação Musical", Art: Revista da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia 10, 1984, 37-62).


Simpósio 1981. Páteo do Colégio. Foto A.A.Bispo
Quanto à cooperação internacional relativa à Educação Musical no Brasil e suas relações com a pesquisa e os estudos culturais, cumpre salientar os trabalhos do simpósio internacional levado a efeito em São Paulo, em 1981. Tendo-se, até então, constatado o estreito relacionamento entre a história da Educação Musical e a da ação da Igreja no Brasil, sobretudo relativamente ao papel desempenhado pela música nas missões das primeiras décadas da história colonial, reconheceu-se que um primeiro simpósio internacional dedicado a esse complexo de questões necessitava, para além de educadores, musicólogos e pesquisadores culturais, também da cooperação de especialistas em música sacra e missiologia, informados das correntes de pensamento e do estado da pesquisa em dimensões internacionais e familiarizados com a situação e as tendências da discussão contemporânea.


Para a abertura desse primeiro simpósio, que contou com a presença de representantes de instituições de pesquisa, de ensino, de universidades, de faculdades de Educação e escolas superiores de Música de diversos países, escolheu-se significativamente o Pátio do Colégio de São Paulo, local de importância histórica e mesmo emblemática para o tema.


Simpósio 2002. Páteo do Colégio. Foto A.A.Bispo
Esse local histórico continuou a marcar o desenvolvimento das reflexões e dos trabalhos concernentes à Educação Musical nas suas relações com a pesquisa cultural e musicológica.


Foi, assim, sede de eventos quando da realização do Forum de Educação Musical no âmbito do Primeiro Congresso Brasileiro de Musicologia, levado a efeito no "Ano Villa-Lobos" de 1987,
Simpósio 2004. Páteo do Colégio. Foto A.A.Bispo
quando se considerou a situação das pesquisas musicais e músico-culturais no Brasil.


Foi, em 1998, visitado pelos participantes do Colóquio Internacional de Antropologia Cultural e, em 2002, escolhido como local simbólico para o encerramento, em São Paulo, dos trabalhos do triênio pelos 500 anos do Brasil.


Foi sede, por ocasião das comemorações dos 450 anos de São Paulo, de sessão dedicada ao papel dos jesuítas em processos de transformação cultural no âmbito do Colóquio Internacional de Estudos Interculturais. Nessa ocasião, considerou-se também o estado das pesquisas desenvolvidas em instituições européias concernentes ao papel da ação jesuítica em processos performativos sob a perspectiva das novas tendências teóricas dos estudos culturais. Salientou-se, aqui, os estudos relativos à linguagem de imagens e à hermenêutica, em particular, no caso, do complexo de sentidos concernentes ao apóstolo São Paulo, cuja data de Conversão passou a ser aquela da fundação de São Paulo.


Para relembrar os 30 anos do primeiro simpósio internacional de 1981, a A.B.E. e o I.S.M.P.S. realizaram trabalhos em Goa, procurando reconsiderar, agora na contextualização indiana, os elos existentes entre São Paulo no Brasil e São Paulo na Índia, ou seja, retomando estudos quanto à ação desenvolvida pelos jesuítas nos seus colégios nas duas partes do mundo marcado pelos portugueses.


Colégio em São Paulo e Colégio de São Paulo de Goa


Se os eventos realizados no Brasil puderam ser efetuados no local histórico do antigo colégio dos jesuítas de São Paulo, o de Goa não o pode, pois do antigo Colégio de São Paulo e de sua igreja apenas restam ruínas.


Também o de São Paulo representa uma reconstrução historicista, que substituiu o palácio presidencial da Província e que, por sua vez, substituira o antigo edifício. Em Goa, porém, não houve reconstruções. Com a expulsão dos jesuítas, o antigo colégio caiu em abandono, encontrando-se, em 1827, em estado deplorável. Dois anos depois, foi demolido pelo Govêrno, restando apenas a fachada da igreja, da qual hoje tem-se somente um arco. O material da demolição foi empregado em novas construções levantadas em Nova Goa/Pangim, que, no século XIX, dando prosseguimento a um processo já iniciado há décadas, passava a substituir a velha cidade, levando-a à decadência.


A história do desenvolvimento cultural e urbano de Goa apresenta assim  afinidades e diferenças quanto à de São Paulo. Em ambos os casos, documenta as consequências das medidas de expulsão da Companhia dos territórios portugueses, de 1759. Enquanto São Paulo permaneceu centro político e administrativo, Goa perdeu a extraordinária posição que ocupara nos três séculos anteriores a favor de Nova Goa, levando a uma destruição da urbe em grandes dimensões.


O elo de continuidade com o passado jesuíta manteve-se sobretudo na veneração a S. Francisco Xavier S.J., cujos restos mortais se encontram em mausoléu na igreja do Bom Jesus (Veja artigo a respeito nesta edição). Pareceu ser adequado, portanto, desenvolver os trabalhos nas dependências contíguas a essa igreja e que contém, em forma de museu, objetos históricos e documentos relativos à ação da Companhia. Em particular a sacristia da igreja apresenta-se como espaço de alto significado histórico e artístico, com mobília histórica, obras de arte e objetos da história religiosa local.


Jesuítas. Goa. Foto A.A.Bispo


Coeducação em situação de pluralidade


Se a ação educativa dos jesuítas no Brasil serviu à conversão e à formação religioso-cultural dos indígenas, que apesar das diferenças entre os vários grupos étnicos apresentavam similares pré-condições, a de Goa foi, desde o início, servindo aos mesmos propósitos, marcada por uma muito mais acentuada diversidade quanto aos pressupostos culturais dos seus pupilos.


Não se pode partir da suposição que os jesuítas tivessem sido os pioneiros nas atividades de ensino na Índia. Essa já estava sendo certamente exercida; importante iniciativa para o ensino sistemático com objetivo missionário foi a criação de uma confraria - significativamente denominada de "Santa Fé" - com o objetivo de fomentar conversões e aprofundar os conhecimentos da doutrina cristã em jovens batizados. Os meninos passavam a ser integrados culturalmente na comunidade de Goa, recebendo, assim, ao lado do ensino catequético, aulas de ler e escrever em português, assim como de rudimentos de latim. Assim preparados, podiam servir como intérpretes mediadores nas ações destinadas à conversão de não-cristãos, então dirigidas pelo mestre Diogo de Borba e Miguel Vaz. Esse ensino foi, assim, desde o início marcado pela participação dos educandos nos propósitos de conversão. Os assim educados podiam passar a exercer atividades de catequese e, assim, a participar da ação missionária. Os meninos admitidos já estavam numa idade em que já não corriam o perigo de esquecer a língua materna.


Esse "colégio de Santa Fé" pode ser considerado como uma singular e historicamente relevante tentativa expressa de coeducação. Iniciado em fins de 1541, foi terminado na festa da conversão de São Paulo, dia 25 de janeiro de 1543. Nas atas de sua fundação, de 1546, determinava-se que nele deveriam ser admitidos seis meninos de cada região, entre eles malabares, canareses, tuticorinos, malaios de Málaca e das Molucas, chineses, bengaleses, pegueses, siameses, cafres de Sofala, Moçambique e das ilhas São Lourenço (Madagascar), assim como oito etíopes e dez canarins das redondezas de Goa. Assim, tanto meninos procedentes de culturas não-cristãs como daquelas marcadas por antigas tradições cristãs do reino africano "do Preste João" recebiam ali ensino.


Na procura de uma orientação competente para o colégio, recorreu-se a Francisco Xavier S.J. (1506-1552), que chegara a Goa em 1542 e que desenvolvia intensa atividade catequética (Veja artigo a respeito nesta edição). Dever-se-ia diferenciar, a este respeito, as atividades primordiais de arregimentação e preparação religioso-cultural desenvolvida nas ruas, com os seus métodos próprios, e o ensino escolar. As atividades de ensino no colegio passaram então a ser dirigidas pelo seu companheiro de missão, o Pe. Paulo de Camerino, conhecido em geral por Micer Paulo.


Uma carta do P. Antonius Criminalis S.J. a Inácio de Loyola, de 7 de outubro de 1545, possibilita uma visão geral do trabalho do Colégio Santa Fé nos primeiros anos de sua existência. Nessa época, quase todos os alunos, de seis a ca. de 20 anos, provinham da "gentilidade", apenas seis ou sete tinham vindo do reino do "Preste João". Paulo de Camarino, com êles vivia e os acompanhava fora da escola. (fontes e comentários em Bispo, A.A., Grundlagen christlicher Musikkultur in der außereuropäischen Welt der Neuzeit, Musices Aptatio 1987-88, Roma 1989, 610 ss)


Paulo de Camerino na história do emprêgo da música em processos performativos


Camerino,- Micer Paulo -, merece ser particularmente considerado nos estudos relativos à história da Educação Musical pelo papel que o canto desempenhou na sua ação educativa.


O Pe. A. Criminalis relatou que, não sem surprêsa, constatara que Micer Paulo cantava com os alunos, nos dias de festa, a missa e as Horas do Ofício, ou seja, a Terça, a Sexta, a Nona, a Véspera e a Completa. Também se cantavam orações à mesa. Quase que justificando esse intenso emprêgo da música na escola, o que contrariava as constituições da Companhia, Criminalis salientava que isso não se dava por razões de canto, ou seja, pela música em si. Assim, não se dava atenção às qualidades musicais do canto, que constituia apenas um "entoado", ou seja, uma forma meio-cantada de recitação.


A sua opinião coincidia com as orientações da Companhia: não se deveria cantar. Lembrava que a Sociedade de Jesus não tinha a obrigação de canto das Horas em côro, nem de outros cantos. Entretanto, reconhecia que não podia proibir essa prática, pois tirá-la significaria causar revolta, pois o povo já tinha tal costume. Não sabia, assim, se devia ou não tolerar o ensino do canto. Para êle, pessoalmente, era algo estranho, pois (provavelmente) não tinha formação musical. Se se cantasse, então era da opinião que apenas viria em questão o ofício novo, com apenas três lições, - Breviarium trium tantum lectionem, de Francisco Quinones (1535), e que poderia ser praticado com base em dispensa papal.


Não querendo tomar por si tal decisão, dirigiu-se a Inácio de Loyola  (1491-1556) para pedir orientações. Perguntava se não seria perda de tempo permanecer em Goa para ensinar crianças a cantar, ler e escrever, uma vez que havia tanto trabalho para ser feito. Enquanto não tivesse uma resposta decisiva de Loyola, iria ocupar-se com outras questões. (Bispo, A.A., loc.cit.)


Dessa carta percebe-se a perplexidade do Pe. Criminalis perante a diferença constatada entre a prática em Goa e as determinações da Ordem. Aquelas correspondiam às exigências locais, onde o canto surgia como necessário para o ensino, de costume e apreciado por todos, estas às prescrições e que refletiam concepções de importância, senão fundamentais da Companhia. A não-obrigação do cantar em coro, sobretudo das Horas do Ofício, elemento integrante da vida religiosa de outras ordens, representava uma conquista a serviço da mobilidade necessária à militância religiosa. 


Argumentos de um cantar pelo cantar e pela sua função


Os alunos do Colégio pareciam já ter desenvolvido, nessa época, uma espécie de cantar com características próprias, ou seja, o de entoar as orações em tom melodioso. Essa forma de cantar, tal como recitação salmódica, originava-se do próprio texto. Pode ter sido similar à entoação dos cantos catequéticos de Francisco Xavier e parece ter representado uma tradição local desenvolvida em Goa. Não se pode deixar de pensar que nele tivesse tido influência o ensino do cantochão praticado pelos franciscanos e outros religiosos. Nesse caso, o "entoado" de Goa seria um primeiro exemplo de uma forma particular de cantochão desenvolvido fora da Europa.


Essa menção do Pe. Criminalis tem sobretudo interesse por representar uma tentativa de justificativa para a prática musical, afirmando que se cantava não pela música em si, mas sim pela sua função e por razões de participação comunitária. Essa atitude justificativa teve implicações práticas, ou seja, não se dava atenção, em princípio, às qualidades de execução, à entoação, à afinação, à concordância entre as vozes, ou às nuances interpretativas, o que pode explicar certas características assumidas pela tradição musical goana na sua realização sonora. Seria aqui o caso de levantar-se a questão se esse desenvolvimento também não teria ocorrido no Brasil. Possibilitaria assim uma elucidação para práticas tradicionais de realização sonora que têm sido até hoje discutidas sob a perspectiva de expressões populares na música erudita, justificando o emprêgo de perspectivas etnomusicológicas na pesquisa histórico-musical.


Tentativa de implantação da atmosfera silenciosa de Coimbra: A. Gomes SJ


A atitude reservada dos Jesuítas perante a música foi bem vista pelo bispo de Goa, D. João de Albuquerque (1538-1553). Em carta de 28 de novembro de 1548, esse prelado salientou que, ao contrário dos dominicanos e dos franciscanos, os jesuítas não exigiam muito para a vida religiosa; não sobrecarregavam o clero e não tomavam a si as suas missas cantadas, fazendo-lhes concorrência; não assumiam funerais e não acompanhavam enterros com cruzes e cantos pelas ruas. (Bispo, A.A., loc.cit.)


Segundo esse bispo, a igreja dos jesuítas era uma igreja dos pobres, não sobrecarregava nem a hierarquia nem o povo, dedicando o tempo empregado no Ofício das Horas para um serviço ativo a favor do próximo. Assim, no passado, cantavam-se as Horas na igreja de Cannanor, agora, apenas ali se celebrava missa rezada, como na igreja da Lamdeira, uma pequena paróquia no distrito de Évora. (Bispo, A.A., loc.cit.).


Das palavras desse bispo pode-se concluir que a celebração de missas sem canto, pelo menos nos domingos e dias de festa, era incomum na Índia. O usual era, assim, missas e ofícios de Horas cantados.


Os jesuítas procuraram seguir as prescrições da Companhia e abolir a prática musical. Sobretudo o Pe. Antonio Gomes S.J. procurou implantar em Goa a atmosfera de recolhimento silencioso do Colégio de Coimbra. Na sua missiva a Simão Rodrigues, em Lisboa, de 20 de dezembro de 1548, dava conhecimento que. nessa época, os 80 ou 90 alunos do colégio Santa Fé apenas cantavam nas vésperas e na missa nos domingos e dias santos. (Bispo, A.A., loc.cit. )


O Pe. Gaspar Barzaeus, Vice-Provincial na Índia, em carta de 1553, ao chegar em Goa vindo de Hormuz, recebeu reclamações de que os meninos não recebiam aulas de canto para as missas e os ofícios, e isso apesar do colégio ter sido construído de forma adequada para tal aulas e ter-se edificado a igreja espaçosa e com um coro.


G. Barzaeus SJ e a música sob o argumento de que "fins justicam os meios"


A posição da Companhia perante a música contrariava as expectativas da população e do Govêrno. Isso levou que os jesuítas reconhecessem a necessidade da prática musical. Numa carta de 7 de outubro de 1545, falava-se na conversão de gentios apenas através da assistência de uma missa cantada, ainda que nela ficassem apenas até o Offertorium. (Bispo, A.A., loc.cit.)


Barzaeus acentuou como o povo apreciava as missas cantadas. Desde a sua reintrodução na igreja da Companhia, as demais igrejas tinham-se esvaziado. Diferentemente do Pe. Criminalis, via a relação entre a prática musical e a militância sob outro aspecto. Para Barzaeus, os jesuítas tinham partido em viagens pelo mundo para exercitar a caridade, na Índia procurando o próximo nos fiéis e infiéis. Para tal, precisava usar de todos os meios que pudessem servir a seus fins. Não podia, assim manter o recolhimento silencioso do Colégio de Coimbra. (Bispo, A.A., loc.cit.).


Pero d'Almeida, o critério qualtativo e o canto na edificação do proximo: Paixão


Como a frequência à igreja havia muito sofrido com a abolição da música, e constatando-se a sua imprescindibilidade, procurou-se um mestre para gregoriano e música polifônica.


Primeiramente, os meninos foram ensinados por um cantor que atuava na catedral. Encontrou-se, a seguir, um mestre adequado: Pero d'Almeida. G. Barzaeus, êle próprio, apesar das determinações da Companhia, tinha celebrado a missa cantada, onde os meninos haviam assumido as partes em Gregoriano. Após a sua partida, tinham continuado com essa prática.


Passou-se a ensinar o cantochão a todos os meninos órfãos. Alguns deles, desenvolveram logo aptidões para o canto polifônico. Uma das práticas sacro-musicais intensificadas ou introduzidas por Pero d'Almeida foi a da Paixão.


Em carta de Fr. Luís Frois, de 1 de dezembro de 1552, tem-se a informação de que os meninos órfãos haviam-se dedicado meses a atividades de edificação do próximo. Tomavam parte em quatro procissões durante a semana. Nessas ocasiões, um dos meninos pregava sobre a Paixão em pé à frente da igreja. O missivista acentua ser impressionante a quantidade de pessoas que assistiam a essa prática. (Bispo, A.A., loc.cit.)


Regulae Collegii Goani e música na vida escolar

As Regulae Collegii Goani de 1552 determinaram a cerimônia para a admissão de novos alunos. Os meninos deviam ser recebidos à porta da igreja com cruz processional e vela, sendo acompanhados à capela ao canto do Laudate pueri, Domine e do Veni Creator. A seguir, o sacerdote proferia uma oração.

Os mestres dos órfãos eram divididos, de acordo com as suas aptidões, a serviços gerais, caritativos e para a edificação do próximo; alguns deles deveriam ser escolhidos para o cantochão e para as "prosas"; os meninos escolhidos para o canto canvam na missa, nas procissões e iam também "cantar fora".

O dia-a-dia no colégio era marcado por sinais de "sino de correr". Para a primeira missa do dia o sino soava às 5: 30. Às 6:00 horas celebrava-se a missa para os irmãos. Para missas cantadas em dias festivos soava três vezes seguidas; aos sábados o toque à hora do "Salve" orientava-se seguindo os toques da catedral. Às terças-feiras, os meninos tomavam parte em cantos polifônicos na missa cantada da irmandade; nelas auxiliavam também os cantores da catedral, e que apreciavam cantar com os meninos acompanhados por "charamellas, frautas e saquabuxas" ((Bispo, A.A., loc.cit.).

A primeira grande ocasião para a atuação dos meninos foi proporcionada pelas cerimônias realizadas pela vinda de relíquias das 11000 virgens, no dia 21 de outubro de 1552, as solenidades mais aparatosas até então realizadas. As vésperas solenes foram celebradas com polifonia e todos os "instrumentos reais". Em várias sextas-feiras realizaram-se atos penitenciais comparáveis àqueles de Santo Antão, em Portugal. Os órfãos ajoelhavam-se nos degraus do altar e cantavam mortem, mortem autem crucis (Antiphona feria VI in Parasceve) e, a seguir, Senhor, misericordia; nesse pedido, toda a comunidade participava "com muitas lagrimas e sospiros". Quanto o pregador deixou o púlpito, os meninos cantaram, com muito sentimento, "prosas" sobre o Juízo Final. (Bispo, A.A, loc.cit.)

A situação singular da vida musical no colégio de Goa e a política da Companhia


No dia 12 de janeiro de 1553, a nova situação foi descrita em carta a Roma: a maioria dos alunos de Goa já sabiam cantochão e alguns deles cantavam também obras polifônicas (canto d'orgão). G. Barzaeus lembrava mais uma vez que, na época do P. Antonio Gomes, tinha-se procurado acabar com o canto dos moços da terra, mas o povo, porém, tinha reclamado, e a frequência à igreja e a própria piedade haviam sofrido com isso. Mesmo o Vice-Rei e outros fidalgos haviam protestado, pois não estavam dispostos a ouvir pregações se as solenidades não fossem cantadas. Por isso, parecia-lhe ser bom serviço a Deus dar aulas de canto durante a semana para que os meninos pudessem cantar nas missas. Já se mantinha esse costume há um ano. Barzaeus não se cansava de salientar o bem que dai resultava. (Bispo, A.A., loc.cit.)


A resposta do Pe. Inácio de Loyola a Barzaeus veio em carta do P. J. de Polanco de 24 de dezembro de 1553: o canto podia ser aceito nas Vésperas, não porém nas missas. A razão disso residia no fato de não se criar prescedentes que pudessem levar a obrigar a Companhia a cantar missas. As Constituições, porém, permitiam o canto das Vésperas para ocupar o povo até que se pregasse ou se lesse. (Bispo, A.A., loc.cit.)


Desenvolvimento da prática musical. Colégio de São Paulo e solenização de batismo


O desenvolvimento do ensino e da prática musical deu-se paralelamente ao crescimento e aumento de significado do colégio. O primitivo foi substituído por dois edifícios interligados, o de Santa Fé passou a ser dedicado aos estudantes, o Colégio de São Paulo a abrigar residência dos jesuítas. A partir de 1556, experimentou uma ampliação, sendo aberto a estudos seculares, passando a abrangir noviciado, casa de professos, hospital e moradia para conversos, com biblioteca e a imprensa. A igreja deu lugar a uma outra, maior, com três naves, cuja pedra fundamental foi lançada em 1560. No seu projeto já se previu um coro com maiores dimensões para a prática musical.

 

Uma visão da prática musical em Goa de 1569, sobretudo por ocasião dos festejos de batismos que então ocorriam em grande número, oferece uma carta do Ir. S. Fernandes ao Pe. Francisco de Borja (1510-1572). Em uma semana batizaram-se 20 pessoas na capela de Cortalim, 60 em Vernã, 158 em Margão e 92 em Rachol. Por todo o lado tinham sido festejadas com toques e cantos segundo as possibilidades locais. Numa vista ao povoado de Margão, onde viviam 1000 cristãos de origem brâmane, o visitador foi acompanhado pelos órfãos cantores, celebrando-se solenemente a festa do padroeira.


Segundo o religioso, o Vice-rei com os seus instrumentistas tinham participado de batizados de indianos de posição social que viviam nas terras de um português. Tinham sido recebidos na alvorada por músicos que os acompanharam à residência do Vice-Rei; este, então, os acompanhou até a igreja. As festas foram celebradas musicalmente com trombetas e charamelas, tendo-se ouvido motetes e cantigas entoados pelos estudantes do Colégio. No batizado de um brâmane em Goa, na festa dos Reis Magos, houve música de trombetas, atabales, charamelas e outros "instrumentos da alegria"; em outro batismo também houve música de charamelas e flautas, além de motetes e cantigas entoadas pelos meninos. (Bispo, A.A., op.cit. 708)


Prática musical na nova igreja do Colégio e o Colégio de São Paulo Novo


Quando a nova igreja jesuíta foi consagrada, na festa da conversão de São Paulo, a 25 de janeiro de 1572, o Santíssimo foi trazido em procissão solene na véspera do dia da consagração com música vocal e instrumental. Na manhã da festa celebrou-se uma das mais solenes procissões já realizadas em Goa e na qual tomou parte o Vice-Rei e o bispo de Malaca, D. Georgius de Santa Luzia O.P. com uma relíquia da Santa Cruz. Nessa procissão tomaram parte vários grupos com "invenções de danças".


Epidemias que assolaram Goa na década de 70 tiveram consequências para o Colégio. Os padres adquiriram casas na zona mais alta da cidade, na colina de Nossa Senhora do Rosário (Veja artigo nesta edição), ali levantando, em 1578, uma casa de reconvalescentes. Em 1580, passou a ser conhecido como Colégio de São Roque, santo protetor de doenças contagiosas, sendo para ali transferidos os estudos.


Passado o período crítico, o colégio passou a ser conhecido como Colégio de São Paulo Novo, distinguindo-o do velho. A transferência para o monte não foi recebido pelas outras ordens, a das freiras de Santa Mônica - um dos mais importantes conventos femininos do Oriente - e a dos Agostinhos (Veja artigo nesta edição). A inimizade de outros grupos relativamente aos jesuítas manifestou-se em várias tentativas feitas de incendiá-lo. Era ali que se conservava a urna de prata com os restos mortais de Francisco Xavier, antes de ser a mesma transferida para a nova igreja do Bom Jesus.


(...)




Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. "Estudos jesuítas e análise de processos performativos e músico-educativos. Colégio de São Paulo - Brasil e Goa." Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 131/17 (2011:3). http://www.revista.brasil-europa.eu/131/Goa-Colegio_de_Sao_Paulo.html




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.




 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 131/17 (2011:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2756



Estudos jesuítas e análise de processos performativos e músico-educativos
Colégio de São Paulo - Brasil e Goa

Trabalhos da A.B.E. na Índia pelos 500 anos da "reconquista" de Goa por Afonso de Albuquerque.
30 anos do Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira" e 20 anos de sessão acadêmica na Universidade Urbaniana em Roma.
Igreja do Bom Jesus, Goa.


 









Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

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