Bispo, A.A..Estudos xaverianos em perspectivas teórico-culturais. Rev. BRASIL-EUROPA 131/16. Academia Brasil-Europa e ISMPS





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

A imagem de Francisco Xavier encontra-se em muitas igrejas do Brasil, sendo a memória de sua vida e ações cultivada em museus e institutos, em particular, naturalmente, em colégios, universidades e outras instituições jesuítas. Um exemplo de particular significado artístico e histórico-cultural de sua presença nos altares é a sua imagem na catedral de Salvador.

Francisco Xavier é, ao lado de Inácio de Loyola (1491-1556), um dos maiores nomes da Companhia de Jesus, um missionário que representou como poucos outros as correntes que levaram à sua constituição e marcaram o seu desenvolvimento. Devido ao significado da ação jesuítica na história colonial do Brasil, o seu nome encontra-se necessariamente presente nos estudos brasileiros.

Francisco Xavier é considerado primordialmente o "apóstolo do Oriente" da época moderna, sendo o principal vulto da ação jesuítica na Índia e em várias outras regiões da Ásia. Assume, assim, uma posição de central importância nos estudos voltados à história missionária, às relações entre o Ocidente e o Oriente, entre o Brasil e outras nações da Ásia, em particular da Índia.

Goa não pode deixar de ser considerada com particular atenção nos estudos dedicados a Francisco Xavier, uma vez que foi o centro do Catolicismo no Oriente, conservando a sua sepultura e sendo, até o presente, o principal centro da veneração ao missionário fora da Europa. 

A Índia - assim como o Brasil - está estreitamente relacionada com a própria história da Companhia. Um dia antes de Ignatius de Loyola ser escolhido para primeiro Praepositus Generalis da Companhia de Jesus, Francisco Xavier viajou para a Índia, a 7 de abril de 1541, como legado pontifício, juntamente com Micer Paulo e Francisco de Mansillas, com livros dados por D. João III, no navio que levava o governador Martim Afonso de Souza (1500-1571). Ali chegou, após uma viagem excepcionalmente longa, a 6 de maio de 1542.

Atuou alguns anos no subcontinente, em Goa e entre os pescadores de pérolas e outras regiões, também ao redor de Travancore. A partir de 1545, passou para Malaca e para as Molucas, atuando partir de 1549 no Japão, onde fundou a primeira comunidade cristã; tinha como objetivo alcançar a China, vindo a falecer na ilha Sancian/Cantão. Foi sepultado em Goa, em 1554. Parte de seu braço direito foi enviada como relíquia a Roma, em 1615.

S. Francisco Xavier. Goa. Foto A.A.Bispo

Francisco Xavier e a cultura funerária e memorial de Goa

S. Francisco Xavier. Goa. Foto A.A.Bispo
Não apenas a vida de Francisco Xavier marcou a história das "Índias orientais", em particular de Goa. A sua morte deu ensejo a solenidades que marcaram a história cultural do Oriente cristão. Fundamentou uma cultura memorial de alto significado para a identidade de comunidades e que apenas nas últimas décadas, com a integração de Goa na União Indiana, passa a ser substituida com bases em outros referenciais. A consideração do seu mausoléu e de sua veneração em Goa adquire particular atualidade à luz do debate relativo à superação do eurocentrismo nos estudos do Cristianismo no Oriente (Veja artigos a respeito nesta edição).

O corpo de São Francisco foi trazido da ilha de Sancian pelo seu companheiro, Antonio de Santa Fé, em 1552. Transportado pela nave Santa Cruz, após dois e meio meses, alcançou Malaca, onde o corpo foi venerado na igreja. Em dezembro de 1553, foi transferido para Goa pelo irmão Manoel de Tavora, com estações em Cochim e Batcal. 

O noviço Mendes Pinto descreveu, em carta de 1554, o recebimento dos restos mortais de Francisco Xavier em alto mar, acompanhado por quatro catecúmenos que cantavam o Gloria. Ao chegar o corpo em Goa, após 15 meses da morte do missionário, o caixão foi recebido por 5000 pessoas, com a presença de representantes do Govêrno e da nobreza, sendo os funerais celebrados também com a participação do clero secular e de outras ordens religiosas. As exéquias tiveram lugar no Colégio de São Paulo e entraram na história local como uma das mais solenes cerimônias até então celebradas na cidade. Em sua memória, os Franciscanos cantaram uma "missa de Nossa Senhora" num sábado e os clérigos da Sé Catedral cantaram a "missa da cruz" para dar um testemunho do trabalho de Francisco Xavier pela adoração da cruz. ((Bispo, A.A., Grundlagen christlicher Musikkultur in der außereuropäischen Welt der Neuzeit, Musices Aptatio 1987-88, Roma 1989, 629)

Após cinco anos de sua morte, as solenidades e a pompa fúnebre foram ainda maiores. Apesar da reserva prevista pelas Constituições relativamente ao canto, em particular ao Ofício, as circunstâncias já criadas em Goa eram de tal ordem que as cerimônias foram realizadas com grande aparato musical, convidando-se os mais capacitados cantores e instrumentistas para o salmos da Véspera, o primeiro e o segundo Noturno, as Antífonas, o Invitatorium e as orações. Esse grupo coral, de especialistas, foi alternado pelos alunos do Colégio, que formaram um segundo coro. À noite, os sinos dobraram várias vezes. A solenidade foi tão longa que o terceiro Noturno apenas pode ser cantado à alvorada. A seguir, celebrou-se uma missa solene. Para a benção do caixão, o Patriarca Nunes Barreto entoou o último Responsorium, apoiado por muitos cantores de boas vozes. ((Bispo, A.A.,op.cit.)

Canonizado em 1622, a notícia chegou a Goa em 1623, dando motivo, no ano seguinte, a grandes solenidades. O corpo, em pequeno caixão de prata, foi levado em procissão à capela de São Francisco de Borja, na igreja do Bom Jesus. Um livro especial foi publicado pela imprensa do Colégio de São Paulo em 1624, com o relato das solenidades feitas para celebrar a canonização de Inácio de Loyola e Francisco Xavier.

S. Francisco Xavier. Goa. Foto A.A.Bispo

Com a doação do Capitão Antonio Teles da Silva, tomada no leito da morte pelo irmão Marcelo Francesco Mastrilli, que abrira o caixão em 1636, tornou-se possível construir um novo sarcófago. Em 1637, o corpo foi colocado no novo repositório de prata feita por artistas goanos.

Presença de Florença em Goa: mausoléu de Francisco Xavier no Bom Jesus

O mausoléu de S. Francisco Xavier na igreja do Bom Jesus é considerado como um dos principais tesouros do patrimônio religioso-cultural de velha Goa (Veja artigo a respeito do Bom Jesus nesta edição).

Esse mausoléu manteve vivo o culto a Francisco Xavier à época da expulsão dos jesuítas e de outras ordens religiosas no século XIX, quando a sua festa continuou a ser ali celebrada, e sobreviveu ao longo período de decadência da antiga cidade. Ainda hoje é alvo de peregrinações e atos de culto.

O mausoléu, na capela direita do transepto, é uma obra estruturada em três partes: o altar, o mausoléu propriamente dito e a urna de prata. As relíquias estão conservadas nessa urna, obra artisticamente elaborada por artesãos da própria Índia.

Em mármore italiano, foi obra do artista florentino Giovanni Battista Foggini (1652-1725). Executado em 1697, é uma das mais valiosas expressões do Barroco tardio europeu do Oriente.


A elucidação da autoria da obra e das circunstâncias da sua criação é devida sobretudo ao pesquisador Carlos de Azevedo. Foggini, arquiteto e escultor, protegido por Cosimo III de Medici (1642-1723), estudou de 1673 a 1676 na Accademia Fiorentina em Roma, sendo nomeado, em 1687, a escultor e arquiteto da Côrte dos Medicis, tornando-se famoso pela sua arte funerária.

Cosimo III de Florença, tendo sido procurado pelo Ir. Francisco Sarmento, Procurador Geral da Província de Goa, que lhe ofereceu uma peça sobre o qual a cabeça de S. Francisco Xavier havia descansado após a morte, mandou que se criasse um mausoléu de mármore italiano para ser enviado a Goa. Para a sua ereção no local, no ano seguinte à sua criação, foi especialmente enviado a Goa o artista Placido Francesco Ramponi.

A parte superior do sarcófago tem uma forma que lembra, segundo alguns, trabalhos indianos em marfim ou um templo. 32 placas de prata nos quatro lados do sarcófago representam diferentes cenas da vida de Francisco Xavier. Algumas delas lembram fatos da vida do santo em Veneza e Vicenza, assim como atos e milagres que praticou no Oriente. Anjos ornamentam o mausoléu, um deles segurando um coração ardente e outro com o texto: Satis est - Domine, Satis est.

Em 1659, o caixão foi removido para a capela do tabernáculo, defronte à de S. Francisco de Borgia, inicialmente determinada para servir de capela mortuária. As paredes foram decoradas com pinturas representando cenas da vida de S. Francisco Xavier.

Em todos os lados do mausóleu há representações da vida do santo em bronze: a pregação aos molucos, com as palavras Nox inimica fugat, o batismo de povos de Moluca com o texto Ut vitam habeant, o ataque da ilha Moro com o texto Nihil horum vereor e Francisco na ilha de Sancian, com o texto Major in occasu.

Estudos xaverianos sob perspectivas teórico-culturais

Compreensivelmente, os estudos dedicados a Francisco Xavier foram desenvolvidos sobretudo por historiadores religiosos, em particular jesuítas, ou pequisadores que seguiram a documentação por êles coletada e estudada.

A sua consideração por parte de pesquisadores culturais coloca exigências e levantam questões que a distingue da pesquisa xaveriana desenvolvida por estudiosos de identificação religiosa. Ela dirige a atenção mais especificamente a aspectos de interesse histórico-cultural nas fontes, às concepções religiosas e culturais do missionário e da ordem, aos métodos empregados nas suas atividades de transformação religioso-cultural e às consequências das ações. Ela exige exames da posição daqueles que se dedicaram à formação da sua imagem, à difusão de seus feitos, à sua veneração e aos próprios estudos.

No exemplo de Francisco Xavier se manifesta de forma particularmente evidente a necessidade de uma condução dos estudos culturais em contextos globais em estreito relacionamento com os estudos da própria pesquisa e da rêde daqueles que a ela se dedicam. Essa tarefa diferenciadora não é fácil, uma vez que a copiosa correspondência jesuítica, que consistui um dos principais fundos documentais dos estudos históricos coloniais, foi escrita da perspectiva daqueles inseridos na ação missionária no Exterior e daqueles responsáveis pelos desígnios da Companhia na Europa. Essa peso de fontes epistolares, com a sua natureza missionária, levou não apenas a uma participação extraordinariamente relevante de religiosos no debate historiográfico como também à definição de perspectivas na apreciação de fatos e ocorrências que nem sempre são mais conscientemente questionadas. A preocupação com a própria pesquisa, portanto, marca a situação dos estudos teórico-culturais relacionados com Francisco Xavier.

Estudos de pressupostos culturais da ação xaveriana

Um ponto de partida para a consideração histórico-cultural da personalidade, da vida e das concepções de Francisco Xavier é o do exame mais aprofundado e diferenciado dos pressupostos de sua formação na Europa do início do século XVI. O desenvolvimento de estudos internos europeus surgem, aqui, como pré-condição para a análise de sua ação e dos processos que pôs em vigência. Francisco Xavier não foi aquele que levou um Cristianismo "em si", por assim dizer em forma abstrata ao Oriente, mas sim um Cristianismo inserido historicamente em determinada situação histórica do Ocidente.

Para cristãos da Índia, foi agente transmissor de aspirações de reforma religiosa que apenas podem ser compreendidas no contexto europeu de sua época. Assim, os não-cristãos confrontados com Francisco Xavier, tomaram contato com um Cristianismo configurado em determinada situação cultural européia.

É sob o pano de fundo desses pressupostos que devem ser conduzidos os estudos referentes às adaptações, às transformações, às particularidades determinadas pragmaticamente pelas exigências dos diferentes contextos da ação missionária e suas repercussões na Companhia no seu todo e em desenvolvimentos europeus.

"Estudos barbistas" como um dos pressupostos da pesquisa

O estudo dos pressupostos da formação de Francisco Xavier - e dos jesuítas em geral - dirige a atenção ao Collège Sainte-Barbe, em Paris, onde residiu durante os seus estudos, a partir de 1525. Esse colégio, fundado em 1460, não tem sido suficientemente considerado na pesquisa histórica dos contatos internacionais de fins do século XV. Ali estudaram pensadores e religiosos de várias nações européias, também da Península Ibérica. Ali formou-se o humanista português André de Gouveia (1497-1548) e que retornou posteriormente a Portugal para dirigir o Colégio das Artes em Coimbra.

Além de Francisco Xavier, de Navarra, ali receberam formação Petrus Faber (1506-1546), Alfonso Salmeron (1515-1585), Nicolas Bobadilla (1511-1590) e Diego Lainez (1512-1565), e, de Portugal, Simão Rodrigues (1510-1579). Tendo feito votos de castidade e pobreza em 1534, foram companheiros de Inácio de Loyola (1491-1556) na formação da Companhia, o que demonstra o significado da participação ibérica na configuração do grupo, das suas aspirações e convicções.

Pela presença destacada de estudantes do mundo ibérico, deve-se levar em consideração nos estudos dos pressupostos da Companhia a síndrome ibérica da luta contra os infiéis, historicamente contextualizada na reconquista da Península e na recuperação de Jerusalém. Tais desígnios primeiros do grupo, porém, devido à situação política internacional, com a intensificação do poderio turco no Mediterrâneo, foram direcionados à ação educativa e de amparo aos doentes em Roma, para onde se transferiram.

Para além desses pressupostos culturais sul-europeus, deve-se considerar sobretudo o espírito de reforma interior dos próprios religiosos em época sentida por êles como de decadência de costumes e secularização da esfera religiosa.

Explica-se, assim, que em primeiro lugar, se colocasse a tarefa auto-disciplinar de condução de vida e afirmação da fé através de exercícios, acompanhados do empenho militante pelo disciplinar da vida e da profissão de fé através da catequese e da missão. 

A fundamental prontificação à ação em dimensões globais em espírito de obediência ao Papa e aos superiores fêz do movimento forjado no Collège Sainte-Barbe um dos mais efetivos empreendimentos de cunho religioso-cultural da história mundial.

Militância e suas relações com a música

A consideração da ação cultural jesuítica nas regiões fora da Europa não pode deixar de considerar uma das singularidades da vida religiosa da Companhia. Diferentemente de outras ordens religiosas, por exemplo dos franciscanos, que desempenharam papel tão importante nas primeiras décadas do desenvolvimento histórico desencadeado pelos Descobrimento, os jesuítas não previam o canto das Horas em comunidade, substituindo-o pela oração privada.

Essa particularidade, que possibilitou uma atuação mais livre na configuração do tempo aos missionários, foi de significativa relevância para a história cultural de regiões e de esferas populacionais marcadas pela ação jesuítica.

Com a presença de religiosos de outras ordens, os diferentes povos contactados pelos europeus tiveram conhecimento de uma cultura sacro-musical de antigos fundamentos teológicos, demonstrados e vividos na prática contínua do canto coral em comunidade, onde o cantar surge como culto. A exclusão da prática do canto das Horas do Ofício em comunidade, ainda que vindo de encontro a aspirações e exigências de cunho pragmático, implicou em profunda transformação de concepções relativas à sacralidade musical. O papel que a prática musical assumiria na história da ação missionária jesuítica, surpreendente a partir das convicções de sua origem, necessita ser compreendido também a partir de um emprêgo de expressões culturais para os fins militantes da Companhia no sentido de uma instrumentalização de meios.

O brilho exterior de expressões músico-culturais alcançado através de uma estrategia de uso de meios para o alcance de fins surge aqui em singular contraste com uma diminuição do significado mais profundo das próprias expressões.

Já a designação da bula pela qual o Papa Paulo III reconheceu a fundação da Companhia, em 1540, - Regimini militantis Ecclesiae -, indica o caminho para uma a aproximação ao estudo cultural da ação dos jesuítas. Trata-se, aqui, da militância e da concepção de Igreja militante. Foi, assim, à luz de conceitos e imagens da Igreja militante que nações e comunidades tiveram o seu contato com o Cristianismo ocidental levado pelos jesuítas, diferenciando-o daquele antes contemplativo de outras ordens.

Esse foi o caso da Índia e do Japão, assim como do Brasil. O estudo histórico-cultural dessas regiões tão distantes entre si necessita considerar essas diferenças de cultura religiosa ou espiritual interna do Catolicismo. Em alguns casos, a militância jesuita representou um desenvolvimento posterior em contextos culturais já em processo de transformação, cujos fundamentos já haviam sido lançados pela ação dos franciscanos com as suas tendências místicas, por exemplo na Índia e, em parte, no Brasil.

É nesse contexto que se coloca a tarefa de exames mais aprofundados da militância em contextos religiosos, dos seus pressupostos, fundamentações, antecedentes históricos e expressões culturais.

Estudos de concepções e imagens da Igreja militante

Imagens e concepções da militância cristã, porém, não foram levadas a outros povos primeiramente pelos jesuítas, tendo sido antes êles próprios por elas marcados. Sobretudo no culto aos santos implantados em regiões não-européias pode-se constatar diferentes formas de expressão de um espírito de militância e que chama a atenção para a necessidade de um tratamento diferenciado de concepções intrínsecas ao próprio edifício da visão do mundo e do homem.

Com relação a Goa, como tratado em outros artigos desta edição, constata-se, para além de uma fundamentação mariana da cultura, uma singular importância do culto a determinadas santas, entre outros Santa Catarina. Os atributos que se referem a combates nas expressões relacionadas com Santa Catarina devem ser, porém, interpretados não no sentido mais imediato, mas sim antes sob a perspectiva do conceito da vida ativa no sentido cristão, no modêlo de Marta, a superar, pela sua subordinação à vida contemplativa, a escravização ao ativismo no mundo (Veja artigo a respeito da igreja de Santa Catarina nesta edição).

Diferentemente, Santa Bárbara foi venerada, segundo a tradição, sobretudo nas fortalezas e em outros locais relacionados com atividades militares. A elucidação dessa característica da veneração a Bárbara - ao lado de outras -, exige a consideração de suas bases mais remotas, como já salientado em outros artigos deste órgão. Atentando-se à difusão do culto a Santa Bárbara na Europa, as associações que a êle se prendiam, pergunta-se se o espírito reinante no Collège Sainte-Barbe de Paris não teria sido marcado pela veneração da santa que lhe emprestou o nome.

A ação dos jesuítas no mundo poderia, assim, ser analisada como consequência de um espírito "barbiste"que teria tido os seus fundamentos no edifício de concepções e na linguagem de imagens de remotas origens. Somenter estudos mais aprofundados poderão elucidar mais precisamente essa questão.

Estudos de métodos: compreensibilidade de textos e traduções

Nos estudos voltados aos mecanismos de transformação cultural, os métodos empregados por Francisco Xavier no Oriente assumem particular significado. As características do seu procedimento nas diferentes situações já foram consideradas sob diferentes aspectos. Entre êles,  discutiu-se os métodos de cunho educativo, sobretudo infantil, o uso de determinadas orações nas línguas nativas, a repetição de fórmulas a serviço da memorização e a prática da oração "entoada". (a respeito desses estudos, fontes e bibliografia: Bispo, A.A., loc.cit.)

À sua chegada a Goa, Francisco Xavier encontrou um culto marcado por cuidado pela dignidade de celebrações e qualidade sacro-musical. Assim, ficou surpreendido com a vida religiosa no convento franciscano e com a solenidade das cerimônias litúrgicas na catedral, onde atuavam 13 cônegos, 6 vigários e o pároco. De acordo com os preceitos da Companhia, dedicou-se primeiramente a atos caritativos na assistência espiritual a doentes no Hospital da Misericórdia, na de presos e no ensino das crianças. Numa ermida mariana, passou a ensinar a ca. de 300 crianças os rudimentos da religião, ou seja, orações, o Credo e os mandamentos (provavelmente a igreja do Rosário, veja artigo nesta edição).

O sucesso do seu ensino catequético levou a que passasse a ser feito também em outras igrejas. Aos domingos e dias festivos, pregava aos "cristãos da terra", a êles ensinando o Pater Noster, a Ave Maria e o Credo, assim como os mandamentos. A seguir, celebrava missa no hospital dos leprosos de São Lázaro.

Seguindo um desejo do governador, transferiu-se para o cabo Comorin, para Pescaria e Travancore, fazendo-se acompanhar de dois seminaristas de Tuticorin que lhe serviam de tradutores. Logo após a sua chegada, procurou tomar conhecimento do estado dos conhecimentos da doutrina cristã, por não entenderam a língua do missionário, porém, não sabiam no que deviam crer. Nem êle sabia o malabar, nem os malabares conheciam a língua da Biscaia.

Por esse motivo, procurou os melhores conhecedores da região para lhe servirem de tradutores. Estes, com muito esforço, conseguiram traduzir alguns textos fundamentais, o "modo de sanctiguar", confessando as três pessoas serem um só Deus, o Credo, os Mandamentos, Pater noster, Ave Maria, Salve Regina e a confissão geral.

Com essas traduções decoradas, o missionário percorria as ruas com uma campânula, procurando reunir meninos e homens. Estes, tendo decorado os textos, deviam transmiti-los em casa às suas mulheres e vizinhos. Aos domingos, reunia todos os habitantes para que proferissem as orações na língua nativa. Isso representava, segundo as suas palavras, um grande prazer a todos, vindo para as reuniões com muita alegria. Começava-se com a profissão de fé na Santíssima Trindade; com grandes vozes entoavam o Credo de forma alternada com o missionário. O Credo era repetido e Francisco Xavier tratava pormenorizadamente de cada frase. Os presentes, com os braços cruzados ao peito, respondiam a alta vou os artigos. Rezavam-se 12 vezes o Pater Noster e a Ave Maria com as 12 afirmações de fé e 10 vezes o Pater Noster e a Ave Maria com os 10 Mandamentos.

Papel das crianças: instrumentos da transformação religioso-cultural

A natureza repetitiva desses textos decorados, e o contentamento dos participantes nessas repetições de frases proferidas por um estrangeiro oferecem-se para considerações teóricas relativas a processos de transformação cultural.

Esse procedimento, de início basicamente verbal, diferia daquele de outras ordens e, sobretudo, de processos desencadeados espontaneamente no contato dos indianos com expressões culturais e festivas dos portugueses. Aqui, a linguagem das imagens, próprias de danças e representações desempenhou um papel preponderante.

Outro aspecto a ser considerado - também com relação ao Brasil - é que esse método adequava-se mais a crianças do que a adultos. Assim, a grande esperança de Francisco Xavier residia nas crianças por se mostrarem mais abertas e com vontade de aprender.

As crianças tornaram-se, assim, importantes auxiliares do missionário. Para auxiliar o seu trabalho, enviava as crianças que já sabiam as orações aos doentes. Perante os parentes e vizinhos, cantavam, então, o Credo.

As crianças tornaram-se também auxiliares no combate à atos de culto e expressões religioso-culturais consuetudinárias, tão importantes para os seus pais e parentes. Às vezes estavam tão bem preparadas que iam espontaneamente atrapalhar os ritos, atacar os gentios e admoestar os próprios pais. Quando Francisco Xavier tomava conhecimento que iriam ser celebrados ritos, enviava as crianças para que fossem perturbá-los. (Ep. 52,299) (Bispo, A.A., op.cit., 597-601)

(...)


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. "Estudos xaverianos em perspectivas teórico-culturais. Questões de cultura memorial e métodos de militância. No mausoléu de S. Francisco Xavier (1506-1552).Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 131/16 (2011:3). http://www.revista.brasil-europa.eu/131/Goa-Francisco_Xavier.html



  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.






 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 131/16 (2011:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2755




Estudos xaverianos em perspectivas teórico-culturais
questões de cultura memorial e métodos de militância
- no mausoléu de S. Francisco Xavier (1506-1552) -


Trabalhos da A.B.E. pelos 500 anos da "reconquista" de Goa por Afonso de Albuquerque (1510-2010). 30 anos do Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira" e 20 anos de sessão acadêmica na Universidade Urbaniana em Roma. Mausoléu de S. Francisco Xavier, Goa

 








Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________