Bispo, A.A..Agostinhos em Goa e procissões dos Passos. Rev. BRASIL-EUROPA 131/19. Academia Brasil-Europa e ISMPS





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 131/19 (2011:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2758


A.B.E.

Montefalco (Umbria) e Monte Santo de Goa: Eremitas Agostinhos no Oriente
De procissões e motetos dos Passos no mundo colonial português


Trabalhos da A.B.E. pelos 500 anos da conquista de Goa por Afonso de Albuquerque. Museum of Christian Art, Old Goa.
30 anos do Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira" e 20 anos de sessão acadêmica na Universidade Urbaniana em Roma.

 
Santo Agostinho. Goa. Foto A.A.Bispo

Santo Agostinho. Goa. Foto A.A.Bispo

Santo Agostinho. Goa. Foto A.A.Bispo

Santo Agostinho. Goa. Foto A.A.Bispo

Santo Agostinho. Goa. Foto A.A.Bispo

Santo Agostinho. Goa. Foto A.A.Bispo

Santo Agostinho. Goa. Foto A.A.Bispo

Santo Agostinho. Goa. Foto A.A.Bispo

Santo Agostinho. Goa. Foto A.A.Bispo

Santo Agostinho. Goa. Foto A.A.Bispo

Santo Agostinho. Goa. Foto A.A.Bispo

Santo Agostinho. Goa. Foto A.A.Bispo

Santo Agostinho. Goa. Foto A.A.Bispo

Santo Agostinho. Goa. Foto A.A.Bispo

Santo Agostinho. Goa. Foto A.A.Bispo

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 


Se o Brasil possui as ruínas de Alcântara, no Maranhão, Goa apresenta uma das mais impressionantes complexos de ruínas cristãs do Oriente: o conjunto arruinado do antigo convento de Santo Agostinho.


No contexto global marcado pela ação portuguesa, ambos os locais, para além das associações romântico-sentimentais mais superficiais que possam despertar, incitam a reflexões relativas à temporalidade da existência, do mundo, do homem e suas obras.


Nas ruínas de Santo Agostinho, em particular, os sentimentos de tristeza e desesperança que podem tomar conta do observador perante os restos de uma das maiores obras arquitetônicas da antiga Índia portuguesa abrem caminhos para a compreensão mais profunda dos próprios fundamentos religioso-culturais daqueles que levaram à sua construção.


Santo Agostinho. Goa. Foto A.A.Bispo
Poucos locais seriam mais adequados para reflexões sobre a Paixão na cultura ocidental e sua difusão no mundo não-europeu do que os altos arruinados de Santo Agostinho. Desse fato decorre o seu significado para todo os países que tiveram a sua formação cultural desde a época dos Descobrimentos marcada por correntes e instituições portadoras desse direcionamento do pensamento e das emoções ao Passional.


Essa constatação vale também para o Brasil, bastando considerar-se a relevância que a Quaresma e a Semana Santa desempenhou e em parte ainda desempenha na vida religioso-cultural das comunidades. (Bispo, A.A., Semana Santa de Lagoinhas: Jose da Luz Passos, São Paulo: IMSP 1973; "Theodoro Cyro: Motetos para os Passos da Procissão do Senhor", Boletim da Sociedade Brasileira de Musicologia 2, 1983, Separata).


Correspondentemente, expressões tradicionais dessa época do ciclo do ano ocupam significativa posição nos estudos culturais. Entre outros aspectos, assumem particular relevância para a pesquisa musical. Esta vê-se confrontada com obras, formas e expressões que necessitam ser consideradas a partir de seus próprios pressupostos e nas suas inserções adequadas, o que nem sempre é fácil para estudiosos que não se inserem nesse universo religioso-cultural e com êle não se identificam.


Contrição, conversão interna e pesquisa - relações


Problemas de imagens da própria cultura e mesmo de identidade cultural relacionam-se aqui com intuitos de pesquisa e compreensão mais aprofundada de expressões culturais. Nesse intuito, pode ocorrer que estudiosos, no fascínio do descobrir esferas recônditas da cultura, de fortes apelos emocionais, procurem nelas se inserir, experimentando ressurgimento de sentimentos religiosos, vivenciando até mesmo em si a potencialidade de conversão dessas expressões e que  as tornaram importantes veículos da ação missionária no passado colonial. Sobretudo o critério da "observação participante"  da antropologia cultural pode levar a conversões.


A conversão de pesquisadores, porém, não pode ser objetivo precípuo dos estudos teórico-culturais. Para que esses sejam adequadamente conduzidos a partir de perspectivas que também considerem a função e o sentido do seu objeto de estudos no presente e para o futuro, necessita-se de uma certa distância na observação, uma visão dirigida a contextos mais amplos nos quais o observado se insere.


A consideração de Goa revela-se aqui como relevante, uma vez que ali o pesquisador- diferentemente da situação que encontra em Sevilha ou em outras cidades da Península Ibérica e mesmo do Brasil -, pode considerar as dimensões passionais em processos culturais postos em vigência com a chegada dos europeus a partir de um universo cultural e religioso profundamente marcado pela diversidade.


Museum of Cristian Art Goa


A grande área marcada pelas ruínas de Santo Agostinho situa-se nos altos de Goa, no planalto do Monte Santo, próximo a a outros monumentos da arquitetura religiosa - Rosário, Santo Antonio, São João de Deus e Convento de Santa Mônica. Neste último encontra-se hoje instalado o Museu de Arte Cristã de Goa. Nos seus acervos, possui objetos e obras de arte provenientes de várias igrejas e que possibilitam estudos comparados de arte sacra.


Pelos seus objetivos científicos, essa instituição surge como adequada para a realização de estudos de natureza teórico-cultual do patrimônio de Goa. Foi o primeiro museu de Arte Cristã da Ásia, inaugurado em 1994 pelo Presidente da Índia, Shri Shankar Dayal Sharma. Obteve o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e do Indian National Trust for Art and Cultural Heritage, Nova Delhi, localizado no Seminário de Rachol, Salcete, Goa. É localizado no Convento de Santa Monica, construído em 1627. O museu procura salientar a participação de artistas indianos e mesmo hindús em obras de arte e arquitetura da época portuguesa em Goa.


Ruínas e suas inserções em desenvolvimentos globais


O complexo de Santo Agostinho foi abandonado em 1835 como resultado da expulsão das ordens religiosas de Goa. À época de sua extinção, o convento contava com o considerável número de 59 frades. O edifício passou à Santa Casa de Misericórdia, que para ali transferiu recolhidos da Serra. Quando esses foram novamente transferidos, o edifício, abandonado, arruinou-se.


Em 1842 ruiu a abóbada, cuja segurança havia sido desde o início motivo de preocupações. Em 1846, caiu a nave principal da igreja e o convento deteriorou-se rapidamente. O colégio fronteiro foi demolido por ordem governamental. Os objetos foram vendidos, perdidos ou transferidos para outras igrejas de Goa. O maior sino da torre foi inicialmente levado para o Forte Aguada para servir ao relógio e, mais tarde, em 1871, para a Igreja da Imaculada Conceição de Nova Goa ou Panaji, tendo-se para isso construído o campanário, em 1875 (Veja artigo a respeito nesta edição).


A fachada da igreja e as torres sobreviveram várias décadas, ruindo apenas em 1936, restando parte de uma das duas grandes torres, que possuiam cinco pavimentos, com 64 metros de altura. Restaram, do interior, o vasto espaço da nave, o transepto e restos das oito capelas laterais. Dos edifícios anexos, pode-se ainda percorrer extensas áreas com restos das paredes do pavimento térreo.  Numerosas inscrições e lápides de sepulturas no chão da igreja oferecem indícios para a reconstrução de famílias e de personalidades ligadas aos Agostinhos do passado.



Considerado as causas políticas em Portugal e os seus pressupostos na história do pensamento europeu que levaram à extinção de ordens religiosas e ao abandono de edifícios, o observador compenetra-se que não apenas o edificar, mas também o cair em ruínas de monumentos levantados por europeus insere-se em processos globais.

Transformações político-religiosas levaram não só na Europa ao abandono de mosteiros e igrejas que se arruinaram, mas também tiveram consequências em longínquas regiões do globo.


Convento dos eremitas descalços ou recoletos em Goa


O Convento de Santo Agostinho de Goa foi fundado em 1572 por doze frades vindos para a Índia sob a liderança de Fr. António da Paixão. A pedra fundamental do convento foi lançada solenemente no mesmo ano. Com o crescente significado do convento na vida de Goa, necessitou logo ser ampliado, sendo reconstruído em 1597. A sua igreja era dedicada a Nossa Senhora da Graça, padroeira da Ordem.


O edifício do convento foi uma das construções maiores de Goa e o maior de seus conventos. Com as suas torres gigantescas, era o mais alto edifício da cidade. A imponência do edifício era acentuada pelo grande terreiro que se abria à sua frente, permitindo grande ajuntamento de fiéis em dias de solenidades, em particular ao término de procissões.


Referências sobre a arquitetura do edifício na História de Goa de Saldanha permitem apenas uma visão sumária da sua antiga magnificência (Saldanha, Manoel José Gabriel, História de Goa: historica e arqueologica, 2a ed. 1925, 85 ss). Criada por arquiteto italiano, a sua fachada era decorada com colunas e ornatos de granito e ladeada por duas grandes torres, com sinos de grandes dimensões e volume.



Uma grande escadaria de granito levava aos dois pavimentos superiores.  Causava impressão a excelência construtiva e a qualidade do acabamento e da ornamentação de claustros, pilares, galerias, salas, celas, do refeitório, da hospedaria e da enfermaria. A sua nave, única, criando amplo espaço, era coberta por abóbada de ousada construção, cuja edificação, como mencionado, entrou na história anedótica pelo fato do arquiteto ter colocado em risco a própria vida, sob ela colocando-se no momento da retirada dos andaimes. O seu coro apresentava inspiração gótica, sendo a sua abóbada caracterizada por estrutura entrelaçada e dourada.


O centro das atenções era o majestoso altar principal, com uma repositório para o SS. Sacramento em filigrana de ouro. Possuia um grande coro ocidental, usado pelos cantores e instrumentistas em dias festivos, e um coro de galeria ao fundo, utilizado pelos cantores nos atos quotidianos. Possuia nada menos do que 11 altares, 8 na nave. Destacavam-se aqueles de dedicação mariana, entre êles Nossa Sra. da Graça, Nossa Sra. do Bom Sucesso, Nossa Sra. dos Passos, Nossa Sra. das Angústias, Senhor Jesus, e santos particularmente venerados pelos Agostinhos, como São João de Sahagun e São Tomás de Vila Nova. Nos anderes superiores, salientavam-se quatro capelas, a dos Provinciais, a dos Priores, a de Nossa Sra. do Rosário e de N. Sra. da Assunção.




O edifício possuia pinturas murais com representações de santos, sobretudo dos mártires da Ordem de Santo Agostinho. Os elos com a história da Ordem eram assim estabelecidos através dos santos venerados em imagens e pinturas. Já à entrada do convento, junto à portaria, havia uma capela de Santa Clara de Montefalco.


Dos edifícios contínguos, salientava-se o do noviciado, com uma capela própria, dedicada a Nossa Senhora das Neves. Possuia claustros de dois andares, com pátio interior ajardinado.


Admissão de mestiços e conversos


No convento viviam em média ca. de 50 religiosos, além de grande número de noviços. Vivenciou um aumento de seus membros após 1619, quando aboliu-se a lei que vedava a admissão de mestiços e conversos. Essa determinação havia procurado evitar que cristãos que ainda possuissem familiares próximos não cristãos fossem atraídos e retornassem à religião de seus ancestrais. Havia sido um resultado de situações de meados do século XVI e já não correspondia àquela do século XVII.


Com a sua supressão, entraram para o convento de Santo Agostinho filhos de famílias de posses de Goa de antiga ascendência indiana. Esse fato indica a prestígio dos Agostinhos na sociedade local, sendo associado com esferas elitárias e, assim, procurado por aqueles que desejavam ascensão e integração social. O convento de Santo Agostinho desempenhou aqui um papel que poderia ser analisado sob o aspecto teórico-cultural de processos de transformação cultural posto em vigência em Goa.


Significado como centro cultural: botânica, erudição e de formação


O convento dos Agostinhos não assumiu apenas um papel relevante na sociedade de Goa pela representatividade de suas instalações e que sugeriam poder econômico e distinção, tornando-se a ordem mais opulenta da cidade. Tornou-se também um centro de excelência sob o aspecto do cultivo e da cultura.


A atenção emprestada pelos religiosos à Botânica aplicada, dando prosseguimento assim a antiga tradição conventual, levou a que criassem jardim, pomar e horta que adquiriram renome pela riqueza e qualidade das plantas cultivadas. Para a sua implantação, trouxeram plantas de diferentes regiões, tornando-se o seu jardim conhecido pela variedade de espécimes exóticas e o seu pomar pela excelência dos frutos, considerados os melhores da Índia.


A dedicação aos estudos dos Agostinhos levaram também à formação de uma biblioteca que adquiriu renome pela riqueza do seu acervo e pelas obras raras que possuia. Visitantes estrangeiros chegaram a compará-la com a biblioteca de Cambridge e o convento com a universidade de Edinburgo. Dos Agostinhos de Goa que entraram na história pela sua erudição tem-se o nome de um frade do século XVII, o Fr. José das Dores. (Saldanha, op.cit.)


Para a formação dos noviços, ergueu-se à sua frente, o Colégio de Nossa Sra. do Populo. O edifício, de grandes dimensões, possuia igreja própria, com cinco altares e duas capelas, uma delas de Santo Antonio e outra da Biblioteca do estabelecimento. Nessa instituição, promovida pelo Provincial Fr. Pedro da Cruz, ensinava-se latim, filosofia e teologia; desenvolviam-se também estudos de diferentes áreas das ciências humanas. Possuia um considerável corpo docente, com um reitor, vice-reitor e seis professores. Ali estudavam ca. de 30 religiosos, sendo que muitos dos ali formados atuaram posteriormente como missionários em várias partes da Índia.


Os Agostinhos dedicaram-se à formação de clero nativo em institutos criados em outras regiões. Assim, estabeleceram, em 1622, o seminário de São João Evangelista em Neura, posteriormente extinto, sendo os seus alunos transferidos para o colégio de Goa ou para o Seminário de São Guilherme, fundado ao redor de 1623 pelo Provincial Fr. João da Rocha. Também aqui ensinava-se latim, filosofia e teologia, além de canto para aqueles indianos que pretendiam ser párocos.


Os Agostinhos de Goa integravam uma ampla rêde de conventos da Ordem fora da Europa e à qual pertenciam casas em outras regiões da Índia - Bassaim, Taná, Bombaim, Damão e Diu -, em Macau, na Pérsia e no Congo. Entre as suas mais promissoras missões salientava-se a de Bengala, onde chegaram a fundar, além do convento, 24 igrejas. Desenvolveram, em particular, intensa atividade missionária na costa do Coromandel.


Agostinhos espanhóis e portugueses atuaram intensamente nas atividades missionárias desde o início da era das Descobertas, inclusive no continente americano, no Mexico desde 1533. Em 1564 chegaram às Filiipinas. O grande nome da Ordem em Goa foi o Arcebispo Alexius de Menezes (1559-1617), responsável pelo Sínodo de Diamper (1597). Alexius de Menezes enviou Agostinhos como missionários à Pérsia, Armenia e Georgia (Veja artigo relativo ao Sínodo de Diamper, nesta edição).


Tradição religioso-cultural dos Agostinhos

O papel desempenhado pelos Agostinhos em Goa apenas pode ser compreendido a partir da tradição a que se prendiam. A Ordem - Ordo Sancti Augustini - , como o seu próprio nome manifesta, referencia-se explicitamente a Sto. Agostinho (354-430), o grande doutor da Igreja que, com os seus escritos, marcou fundamentalmente a história do pensamento teológico e da própria Igreja.


O vir-a-ser da ordem dos eremitas agostinhos dirige a atenção a movimentos ascéticos na região da Toscana do século XIII. Por determinação papal, alguns grupos eremitas uniram-se em uma ordem religiosa única em 1243. Em 1256, por bula pontifícia (Licet Ecclesiae catholicae), esse e outros grupos, unidos, levaram aos Eremitas Agostinhos. Constituiram, assim, ao lado dos Franciscanos, Dominicanos e Carmelitas, uma das grandes ordens constituídas naqueles séculos.


Com a transferência dos frades para as cidades, os ideais baseados na tradição do pensamento de Santo Agostinho passaram a desenvolver a sua ação em meios urbanos, através da pregação e de confissões. Ideais agostinhos da vida caritativa-social passaram a marcar a ação da Ordem, salientando-se em atividades de assistência e de educação.




Clara de Montefalco ou Clara da Cruz (1268-1308) e a Paixão


Um dos principais caminhos para a compreensão do papel dos Agostinhos de Goa segundo a tradição de sua Ordem é o da veneração intensa que dedicavam a Clara de Montefalco ou Clara da Cruz. Como mencionado, uma capela a ela dedicada encontrava-se à entrada do convento de Goa, junto à portaria. A localização do convento no Monte Santo sugere comparações com Montefalco, local de sepultura de Clara e da igreja a ela dedicada. Assim como o monte em Goa, que possibilita amplo panorama, de Montefalco pode-se contemplar vasta região, sendo por isso até mesmo cognominado de "balcão da Úmbria". Por esse motivo, o de proporcionar ampla visão, foi também denominado, pelo Imperador Frederico II, segundo o falcão, ave que possui grande capacidade de discernimento das alturas. Razões simbólicas, portanto, relacionam-se com as históricas, tento tido provavelmente influência na percepção do local em Goa.


A veneração de Clara de Montefalco no convento de Goa oferece caminhos para a compreensão da significado central concedido à Paixão na vida religiosa marcada pela ação dos Agostinhos. A história de Clara é, de forma singular, marcada pela experiência da reclusão, da penitência e do sofrimento. Foi destinada a essa vida desde a sua infância, com seis outras mulheres, sob a direção de sua irmã, Joana de Montefalco (+1291). Essa comunidade levou, em 1290, à formação de um convento de Agostinhas, do qual Clara tornou-se Abadessa, em sucessão à sua irmã. Essa comunidade foi transformada, em 1290, em convento das Agostinhas de Santa Cruz.


A sua vida religiosa, em  espírito de penitência foi marcada por êxtases e vivências místicas. Em visão,  Cristo surgiu-lhe, sofrendo na Sua paixão. A compaixão pelo sofrimento na cruz, a própria cruz, tornaram-se elementos essenciais na espiritualidade representada por Clara. Por essa razão, passou até mesmo a ser designada com o cognome de Clara da Cruz. Em complexa relação com essa orientação mística explicava-se o dom que a tradição diz ter possuido, o do discernir espíritos.


Em 1303, deu início à construção de uma igreja para a urbe de Montefalco. Ao falecer, abrindo-se o seu peito, encontrou-se o seu coração estigmatizado, o que deu origem à festa Impressio Crucifixi in corde s. Clarae. a 30 de outubro. A imagem do coração estigmatizado, em ave que abrangia, nos seus pés, sol e lua, encontram-se em armas representadas numa das mais significativas obras plásticas que restaram do convento de Goa.



A veneração de Clara da Cruz na Ordem - e que se expressa nos nomes de Paixão, Cruz e termos afins escolhidos pelos frades vindos a Goa - assumiu intensidade crescente com a inserção da Ordem nos intuitos contra-reformatórios, sobretudo por ter a ela pertencido Martinho Lutero. Essa afirmação de Catolicidade levou até mesmo à mudança de hábitos, readotando-se o mais antigo, medieval, caracterizado pelo seu capuz ponteaguado e pelas suas grandes mangas largas. A sua veneração nesse espírito de restauração da Ordem segundo as suas raízes medievais foi acompanhado por uma reintensificação da sua tradição mística. Em 1737, Clara da Cruz foi beatificada pelo Papa Clemente XII.


A procissão e os motetes dos Passos do Senhor

O convento dos Agostinhos em Goa apresenta especial significado para os estudos de tradições culturais e musicais pelo fato de terem sido os principais promotores da procissão dos Passos, uma das mais solenes e concorridas da Índia. A procissão saía em geral da igreja velha de São Paulo, dos jesuitas (Veja artigo sobre os colégios, nesta edição), percorrendo as ruas principais da cidade, terminando à frente da igreja dos Agostinhos.

Os altares nas ruas, representando os passos, eram ornamentados às sextas-feiras da quaresma e visitados pelo povo. Tem-se notícias de viajantes estrangeiros dessa prática, que salientariam a sua importância religiosa e mesmo social do chamado "correr os Passos", acompanhado ao mesmo tempo de espírito devocional e de passatempo. (Saldanha, loc. cit)

A principal imagem da procissão dos Passos era uma imagem de Cristo carregando a cruz. A procissão era acompanhada por penitentes que, vestidos com túnicas brancos, flagelavam-se. Nos passos, onde a procissão parava perante os altares, entoavam-se motetes. Ao mesmo tempo, oferecia-se a imagem do Cristo sofredor ao povo, incitando a exclamações e atos de compunção. Uma das estações dava-se no terreiro do convento de Santa Mônica, próximo à igreja dos Agostinhos. No coro, encobertas por detrás de cortinas, as freiras cantavam o motete "Supra dorsum meum fabricaverunt peccatores". Ponto alto da solenidade dava-se ao término da procissão, no ádrio perante o convento, quando se mostrava à multidão o pano com a efígie de Cristo: o "Santo Rosto".

Os Agostinhos, ao incentivar e promover essa prática, puderam basear-se em tradições religiosas já há muito implantadas na Índia. A veneração da Cruz havia marcado já os primeiros anos da chegada dos portugueses (Veja artigos a respeito nesta edição). A mística e uma compreensão mística da religião e da realidade eram inerentes ao Franciscanismo, em particular na veneração de Santo Antonio, tão cara aos portugueses (Veja artigo nesta edição).

O canto de motetes em procissões de Semana Santa já era comum antes da chegada dos Agostinhos a Goa. Também a introdução da penitência e da flagelação era de longa data. A ação dos Agostinhos no fomento dessas tradições pode ser visto no intento de missionar um povo já batizado mas ainda preso a modos de vida que surgiam como por demais mundanos.

A ação dos Agostinhos parece ter decorrido paralelamente a mudança de referenciação histórico-cultural na prática de expressões religioso-culturais de Quaresma e Semana Santa. Devido à própria história da Ordem, o vínculo com a história religioso-cultural da Itália tornou-se preponderante, e o modêlo do coração estigmatizado de Clara da Cruz parece poder explicar a intensificação das emoções passionais e a dramaticidade das procissões dos Passos. Entretanto, sob a perspectiva dos eruditos da própria Ordem, a tradição dos eremitas teria uma origem muito mais antiga, remontando ao monaquismo fundado por Agostinho no Norte da África e introduzido na Península Ibérica.

Na atualidade, como se pode observar em Nova Goa, mantém-se a tradição dos Passos, sem porém o aparato dos séculos passados.



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Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. "Montefalco (Umbria) e Monte Santo de Goa: Eremitas Agostinhos no Oriente
De procissões e motetos dos Passos no mundo colonial português." Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 131/19 (2011:3). http://www.revista.brasil-europa.eu/131/Goa-Ruinas_de_Santo_Agostinho.html



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  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.