Bispo, A.A..Estudos jesuítas e Estudos Culturais: Brasil/India. Rev. BRASIL-EUROPA 131/15. Academia Brasil-Europa e ISMPS




Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 131/15 (2011:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2754



Estudos jesuítas e Estudos Culturais em relações Brasil-Índia: aspectos de um debate


Trabalhos da A.B.E. na Índia pelos 500 anos da "reconquista" de Goa por Afonso de Albuquerque.
30 anos do Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira" e 20 anos de sessão acadêmica na Universidade Urbaniana em Roma. Igreja do Bom Jesus, Goa.

 











Bom Jesus, Goa. Foto A.A.Bispo

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 
Bom Jesus, Goa. Foto A.A.Bispo


Deu-se prosseguimento, na Igreja do Bom Jesus de Goa e no seu adjacente museu, aos trabalhos da A.B.E. relativos à ação dos jesuítas na história das relações entre a Europa e as regiões extra-européias.


Foram realizados no âmbito das atividades pelos 500 anos da "reconquista" de Goa por Afonso de Albuquerque (1510) e motivados pela passagem dos 30 anos do I Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira" da Secretaria de Cultura do Govêrno do Estado de São Paulo e dos 25 anos de Simpósio Internacional Músico-Etnológico realizado em Roma, por instituições pontifícias.


Ambos os eventos representaram marcos no desenvolvimento do debate relativo a questão das relações interdisciplinares entre estudos históricos, missiológicos e antropológico-culturais na pesquisa e da orientação teórico-cultural dos estudos relativos à ação dos jesuítas na história cultural.


Colóquio Pátio do Colégio, A.B.E.. Foto A.A.Bispo
Os trabalhos deram sequência, em particular, a temas tratados na sessão dedicada à atualização de perspectivas e métodos à luz de novas tendências do estudo de processos culturais em contextos globais, levada a efeito no âmbito do Colóquio Internacional de Estudos Interculturais pelos 450 anos da fundação de São Paulo no Museu José de Anchieta, no Pátio do Colégio de São Paulo.


Local de reflexões: igreja do Bom Jesus, Goa


A Igreja do Bom Jesus é um dos principais e mais visitados monumentos do patrimônio histórico-cultural de velha Goa e da própria Índia. É privilegiadamente procurada por aqueles que procuram legados da antiga Índia Portuguesa e é seu principal memorial para todos que se confrontam com o mundo indiano nas suas relações com o Ocidente.


A transcendência do seu significado, para além de esferas regionais e nacionais, é reconhecida internacionalmente. Sempre lembrada na atualidade é a sua inclusão entre as "sete maravilhas" de origem portuguesa no mundo em listagem baseada em questionamento de opiniões recentemente realizado.


Se considerada sob o aspecto da história da arquitetura e das artes, essa valoração pode surpreender, tendo-se em vista a magnitude de outras obras legadas pelos portugueses em diferentes regiões. Pode justificar-se, porém, se as suas qualidades arquitetônicas e artísticas forem consideradas como expressões e resultados de contextos e processos histórico-culturais em dimensões mundiais.


A igreja do Bom Jesus de Goa possui, sobretudo, um significado para a história eclesiástica, missionária e, naturalmente, para a história dos jesuitas. Abriga o mausoléu de Francisco Xavier S.J., cognominado de "Apóstolo do Oriente" pelo papel que desempenhou na história da propagação do Cristianismo à época da expansão européia da era moderna. Tendo sido construída sobretudo como relicário para os seus restos mortais, foi centro de um culto que adquiriu e ainda apresenta particular intensidade na vida religiosa da Índia e de outras regiões do Oriente cristão. As suas relíquias fazem com que o templo ainda surja, hoje, como centro de peregrinação.


Por muitas razões, portanto, a Igreja do Bom Jesus apresenta-se como local altamente adequado para reflexões relativas à ação dos jesuítas na história de processos culturais globais. Ao mesmo tempo, a sua localização na área monumental da velha Goa, que evoca um passado findo, demonstra a necessidade de reorientações de perspectivas, de atualizações e diferenciações dos estudos para que possam corresponder às novas situações e ao desenvolvimento das reflexões.


Leitura da igreja do Bom Jesus


Bom Jesus, Goa. Foto A.A.Bispo

Ao entrar na área histórico-monumental de velha Goa pela porta que o conduz ao Bom Jesus, o observador sente-se em espaço que apresenta similaridades com aquele que conhece de outras regiões marcadas pelo passado e pela presença dos jesuitas. Essa sensação é resultado do perceber determinados sinais identificáveis com a cultura religiosa jesuítica, entre êles cruzeiros, emblemas, aspectos estilísticos e o oratório dedicado à veneração de S. Francisco Xavier, denotativo da sua devoção popular.


O popular que se manifesta neste oratório e a austera simplicidade dos edifícios interagem-se na percepção do espaço, conferindo-lhe qualidades próprias, de difícil análise. Sente-se que é marcado por uma atmosfera de interiorização e procura-se explicá-la pela prática oracional de uma cultura religiosa caracterizada pelo exercício espiritual e pelo ímpeto à formação interior do próximo em militância missionária.


Nesse espaço, preparado por grande terreiro pavimentado de pedras, ergue-se o severo edifício da igreja do Bom Jesus, contrastando, como construção em pedras aparentes, em basalto e laterite, no seu tom avermelhado, com brancas paredes revestidas do edificio contíguo e das demais igrejas da área monumental.


Apesar de ser considerada como uma das maravilhas do mundo de origem portuguesa, o observador sente a situação paradoxal de ver-se confrontado com uma arquitetura que difere da imagem que possui do passado construtivo colonial português.


Sente-se transportado, perante o rigor emanado do material e da forma, da disciplina e a severidade que percebe nas linhas estruturais e na reserva ornamental do seu exterior, a uma outra paisagem e a outro tempo. Essa sensação não é tanto devida a vagas associações que desperta com construções religiosas de regiões da Península Ibérica, da Bretanha ou da Itália, mas antes a um apelo de retorno às bases, à reforma interior em espírito de concentração.



Na configuração paisagistísca da área ajardinada em que se transformou a velha Goa, a igreja do Bom Jesus surge, vista de lado com os seus contrafortes, como corpo de sugestões remotas e mesmo arcaicas. Ela dificilmente se insere no ameno parque criado, nem de todo adequado para abrigar os monumentos que restaram da história religiosa da capital da antiga Índia Portuguesa e que surgem forma desintegrada de um todo urbano desaparecido.



Assim a olhando, a igreja do Bom Jesus surge, no seu externo, como testemunho, manifestação e sinal ainda atuante de determinada corrente de cultura religiosa, de impulsos devocionais e de ação originados de uma situação religioso-cultural e de ímpetos de reforma da Europa remontantes, nos seus fundamentos, a décadas anteriores à sua construção.


Bom Jesus e Il Gesù: similaridades e diferenças


Uma observação atenta da fachada da igreja revela que, para além dessas questões de percepção estética do espaço, a sua leitura pode ser aprofundada através de comparações com a igreja-mãe da Companhia de Jesus, em Roma.


Obra, entre outros, de Domingos Fernandes S.J. e do engenheiro local Júlio Simão, o seu projeto orientou-se segundo o modêlo do Il Gesù, a Chiesa del Santissimo Nome di Gesù. No cotejo entre as duas igrejas, pode-se constatar similaridades e diferenças. Percebe-se, no Bom Jesus, uma estruturação ternária vertical e horizontal. Às três portas no térreo correspondem três grandes janelas no primeiro pavimento e três janelas redondas no segundo. O corpo central, mais elevado com relação às partes laterais, é constituído pela  parede que encobre grande parte do cume do telhado de duas águas da construção. Ela serve de moldura ornada ao emblema da Companhia, o nome de Jesus. Para encobrir as partes do telhado que avançam sobre as laterais encontrou-se, similarmente às volutas de Il Gesù, uma solução que possibilita também, na elegância ondulante de sua forma, a ligação das laterais mais baixas com a parte central da igreja, acentuando a unidade. O papel desempenhado por colunas e pilastras demonstra uma concepção arquitetônica orientada fundamentalmente por um pensamento marcado por ordens arquitetônicas, sobretudo definidas pelos capitéis, refletindo, na Índia, preocupações teóricas que marcaram a história da arquitetura na Europa.


Devido a esses elos com o prototipo romano, - como muitas outras igrejas jesuitas da Europa e de outros países - a Igreja do Bom Jesus surge como significativa para estudos de processos receptivos.


Nas suas concepções básicas, a sua fachada exige a consideração do arquiteto Giacomo Barozzi da Vignola (1507-1573), o autor de Regola delli cinque ordini d'architettura (Roma 1562), autor do projeto do Il Gesù, em 1568, ou seja, mais de um quarto de século do início da construção do Bom Jesus, ocorrido em 1594. Deu-se após dez anos da consagração da igreja romana.


Assim como a construção da igreja romana foi possibilitada pelo apoio e financiamento do Cardeal Alessandro Farnese (15201589), cujo nome foi perenizado no edifício, onde foi sepultado, também a de Goa pôde apenas ser construída com meios particulares, no caso de D. Jerônimo Mascarenhas, capitão de Cochim e Ormuz, ato registrado em bronze na parede junto à porta do lado norte, encontrando-se a sua sepultura na parede norte da nave.



A fachada do Il Gesù, que sugeriu a de Goa, e que foi completada por Giacomo della Porta (ca. 1532-1602), apresenta qualidades plásticas que a diferem da de Goa. No seu impulso principal, porém, a do direcionamento dos elementos expressivos à parte central, continuou vigente na sua versão luso-indiana. Também demonstra ser o modêlo no uso de casais de colunas e pilastras emoldurando portas e janelas.


A principal diferença das duas fachadas reside no fato de que a de Roma apresenta uma divisão externa de cinco eixos e a de Goa apenas três. Com isso, os elementos em forma de voluta entre as laterais e o corpo principal surgem, no modêlo, entre as laterais externas e o corpo central, trino, enquanto que, em Goa, são nele integradas. O Bom Jesus de Goa revela-se como uma solução mais concentrada e de economia expressiva, determinada pela supressão das naves laterais.


Essa diferença na configuração da fachada do Bom Jesus com relação ao do Il Gesù corresponde àquela relativa à organização do espaço interno. Uma certa perplexidade que causa o contraste entre o exterior e o interior da igreja pode ser assim superada. Aquele que observa a igreja poderia ter a expectativa de encontrar no seu interior três naves que correspondessem aos três portais. Depara-se, porém, com o vasto espaço de uma nave única, um verdadeiro salão.



Também o prototipo romano apresenta uma unidade espacial por detrás do ternário constituído pelas portas de entrada. O eixo com as capelas laterais - que faltam em Goa - correspondem, no Il Gesù, aos eixos mais externos da fachada, economizados no Bom Jesus.


Por essa razão, também, a igreja em Goa difere do modêlo romano e de outras que o seguiram por não apresentar a profusão de capelas, impressionando aquele que a observa pela simplicidade construtiva e pela luminosidade possibilitada pelas janelas laterais.


As suas paredes são estruturadas por três séries de janelas, sobrepostas, das quais, as da segunda linha, dividindo as pares ao meio, apresentam tribunas. Similarmente ao Il Gesù, a parte central do interior da igreja é coberta com um teto encurvado a tipo de tonel, em Goa, porém, constituido por forro de madeira, sustentado por arcos. A capela-mór é elevada com relação ao nível do transepto e abobadada. Toda a atenção é dirigida à fronte constituída pelos altares exuberantemente ornados em talha dourada.


O programa teológico do interior da igreja pode ser lido das imagens veneradas. O altar principal apresenta um retábulo de fins do século XVII, com o menino Jesus. Acima, vê-se a imagem do fundador da Companhia, S. Inácio de Loyola (1491-1556). O altar principal é flanqueado por altares de Nossa Senhora da Esperança e de São Miguel. À direita, apresenta um altar de Santo Antonio e, à esquerda, um de S. Francisco de Borja SJ (1510-1572).


O transepto ostenta a capela do Santíssimo Sacramento à esquerda, coroado com a representação das três pessoas da Santíssima Trindade, e, defronte a êle, o mausoléu de S. Francisco Xavier (Veja artigo a respeito nesta edição). O corredor lateral da capela com o mausoléu leva à sacristia. Esta, abobadada, uma das maiores e mais belas das igrejas de Goa, também foi possibilitada por meios particulares.


A igreja foi consagrada pelo Arcebispo D. Fr. Aleixo de Menezes (1559-1617) a 15 de Maio de 1605. O nome desse Arcebispo, de particular significado para a história cultural encontra-se registrado em placa à entrada do templo (Veja artigo sobre o Sínodo de Diamper, nesta edição).


Ausência de coro na capela-mór: Jesuita non cantat


Uma característica importante da concepção do Il Gesù e consequentemente do Bom Jesus, nem sempre considerada à altura do seu significado nos estudos arquitetônicos, é a da ausência do coro como espaço destinado ao canto em comum dos religiosos.


Essa singularidade da vida religiosa da Companhia, que a diferiu de outras ordens, exigiu concessões pontifícias e foi guardada com grande atenção pelos seus fundadores. Representou uma das expressões fundamentais derivadas do seu escopo, o do emprêgo do tempo destinado ao canto dos ofícios à militância. (Veja artigo a respeito do Colégio de São Paulo, nesta edição)



Tem-se, aqui, um testemunho da interação entre concepções religiosas, arquitetônicas e de cultura musical. Se uma concepção baseada na militância levou a uma especial configuração do espaço, este, por sua vez, testemunha uma outra concepção do sentido e da função do canto no culto. Com a expulsão dos jesuítas, mas mantendo-se as festas de S. Francisco Xavier, o Cabido da Sé, para poder cultivar o canto em coro, para ali mandou trazer o coro do convento abandonado dos Agostinhos (veja artigo sobre o antigo convento dos Agostinhos nesta edição).

Na constituição da Sociedade, o Papa Paulo III concedeu que "socios non adhibere organa aut musicos canendi ritus in missis aut reliquis officis, ne impediantur alia ministeria" (Const. I, 19). Correspondentemente, determinou-se o mesmo nas Constituições, P. VI, c. 3,4. Para o desenvolvimento da prática musical dos jesuítas - não apenas na Índia - a primeira década da sua existência - a de Francisco Xavier - foi decisiva. Nessa época, no conflito entre prescrições e exigências situacionais foram lançadas as bases para práticas musicais e os fundamentos para o desenvolvimento posterior da vida musical nos colégios. O estudo do papel exercido pela música nas atividades dos jesuítas, não recente, (veja, p.ex. Thomas Culley SJ e Clement McNaspy SJ., "Music and the Early Jesuits 1540-1565", Archivum Historicum Sociatatis Iesu 40, 1971, 213-245), tem sido aprofundado no decorrer dos trabalhos do I.S.M.P.S. realizados nas últimas décadas.



Estudos jesuíticos sob perspectivas teórico-culturais: histórico dos debates


Os trabalhos do I.S.M.P.S. e da A.B.E. relativos à ação dos jesuítas na história das relações entre a Europa e as regiões extra-européias tiveram a sua origem na necessidade sentida, no início da década de 70, de ampliação e diferenciação de perspectivas e de reconsideração refletida de procedimentos teóricos nos estudos culturais.


A constatação dessa necessidade deu-se a partir de debates a respeito de origens de tradições culturais católicas do Brasil, levados a efeito com pesquisadores do Museu de Folclore da Associação Brasileira de Folclore. Com a crescente consideração de expressões culturais existentes em outros países da América e na Europa reconheceu-se que hipóteses de supostas origens jesuíticas de algumas dessas tradições não poderiam ser confirmadas, exigindo pelo menos uma diferenciação quanto à questão de origens das expressões em si e a da sua implantação no âmbito das atividades missionárias.


Mesmo sob este último aspecto, porém, tornava-se necessário uma maior consideração da ação de outras ordens, em particular dos Franciscanos. Sobretudo reconhecia-se a necessidade de atentar à transplantação de usos e costumes ocorrida de forma não-dirigida, por assim dizer de forma espontânea através dos próprios colonos que deram continuidade, no Novo Mundo, até mesmo de forma mais intensa, às suas práticas festivas consuetudinárias.


A interação de caminhos de transmissão de expressões culturais, e sobretudo o fato de os próprios jesuítas, pelas características militantes do seu procedimento, lançarem mão de diferentes meios para atingir a seus fins, evidenciaram a complexidade de processos de difusão cultural e a conveniência de tratá-los em amplo programa de pesquisas dedicado ao complexo temático da cecepção cultural (1977-1980). (Bispo, A.A., "Zur Rezeptionsgeschichte der Kirchenmusik in Brasilien", Collectanea Musicae Sacrae Brasiliensis, Roma: Urbaniana Press 1981, 11-28)


Essas preocupações despertadas na área dos estudos de expressões culturais tradicionais foram acompanhadas pela constatação de que também os estudos histórico-musicais sofriam sob uma certa indiferenciação de perspectivas, o que levava a unilateralidades na compreensão de desenvolvimentos músico-culturais e a uma visão da prática sacro-musical do passado colonial marcada de forma por demais abrangente por um papel quase que hegemônico emprestado à ação jesuítica.


Tendo sido de fato extraordináriamente importante, essa ação deixou, porém, de ser analisada adequadamente, em detrimento ao papel exercido por outros fatores no complexo processo histórico-musical brasileiro.


Essa situação da pesquisa pode ser compreendida pela abundância da documentação histórica disponível, incomparavelmente mais rica do que aquela relativa às outras ordens religiosas. A prática da correspondência na Companhia legou à posteridade textos de incalculável valor histórico-cultural, registrando fatos, desenvolvimentos e dando testemunho da própria experiência pessoal, de impressões e pontos de vista dos seus autores.


Justamente essa riqueza de documentação possibilitou o surgimento de uma literatura de estudos jesuíticos vasta e de grande significado para os estudos históricos, resultado em grande parte de autores jesuítas, inseridos eles próprios na história da Companhia, com mais fácil acesso a acervos e familiarizados com nomes e ocorrências.


Como comparável abundância de fontes não pode ser constatada em outras ordens, pela própria natureza de suas constituições e procedimentos, a apreciação justa e diferenciada das diferentes contribuições ao processo histórico necessita seguir outros caminhos, dando atenção, para além das fontes escritas existentes, às características das várias correntes monacais e missionárias, de suas orientações teológicas, de modos de vida e expressões de culto, assim como da respectiva inserção em determinados contextos histórico-culturais.


A cooperação com estudiosos representantes de outras ordens e do clero secular para a diferenciação de perspectivas tornou-se possível a partir de 1977 no âmbito do instituto de pesquisas de Maria Laach, na Alemanha, local marcado pela presença beneditina de séculos, um centro de orientação internacional vinculado estreitamente com instituições romanas.


Somente esse trabalho cooperativo possibilitou a abertura de caminhos para o tratamento apropriado de aspectos do complexo cultural brasileiro que até então não haviam sido considerados adequadamente. Assim, em simpósio internacional realizado na Universidade Católica de Washington, em 1983, pôde-se considerar a necessidade de um maior desenvolvimento da pesquisa do Canto Gregoriano no Brasil, à qual pertence a da prática das orações cantadas em coro das Horas, não previstas na Companhia de Jesus. (e.o. "Gregorian Chant in Brazil", Gregorian Chant in Liturgy and Education, Washington D.C.: Catholic university of America/Ward Center, 1983)


Essa característica das constituições jesuítas, que a diferenciou das outras ordens, manifesta um entendimento outro da função da música no culto, o que dá margens a considerações teológicas relativas a um vínculo menos indissolúvel com a própria oração e com a ação sacra em si. A importância dada à música pelos jesuítas, sempre tão salientada por pesquisadores brasileiros, necessita, assim, ser considerada sob aspectos apropriados, no seu escopo e na sua decorrência histórico-contextual para não ser expressão de fundamentais mal-entendidos quanto à própria natureza da Companhia.


Também e sobretudo os estudos relativos à mística e o seu significado no Brasil apenas puderam ser desenvolvidos através da cooperação com representantes ou estudiosos de outras ordens. A aproximação a essas questões a partir da literatura jesuíta não pode ser considerada como adequada, tendo sido talvez a orientação quase exclusiva segundo essa literatura um dos fatores que explicam a insuficiente consideração das expressões místicas no complexo cultural brasileiro.


Assim, procedeu-se a seu debate em conferências e simpósios realizados sobretudo com Franciscanos, tendo como marco as sessões levadas a efeito em Petrópolis, em 1981. Ponto alto dessa atenção concedida à mística deu-se com a recepção de delegação de pesquisadores culturais brasileiros pelo mosteiro alemão das beneditinas de Eibingen, em 1988, centro histórico marcado pelo nome de Hildegard von Eibingen, vulto da mística medieval.


Também nesse encontro a atenção foi dedicada às relações entre a mística e a linguagem, uma preocupação que representa uma das áreas de pesquisas próprias da A.B.E.. Foi acompanhado, de forma pioneira, por sessões dedicadas a fundamentos filosóficos sob a perspectiva dos estudos culturais, em particular do neoplatonismo, da antiga Gnosis e de suas expressões posteriores, realizadas em Bonn, então capital da Alemanha, e apoiadas por institutos de filosofia de universidades alemãs e por instituições eclesiásticas.


Estudo das características próprias da Companhia e de mudanças na praxis


A consideração adequada da ação jesuítica no Brasil exige o estudo de seus pressupostos, de suas origens, de suas características próprias e das transformações por que passou a partir das experiências e das exigências em regiões de missão.


Diferentemente de outras instituições missionárias mais antigas, a Companhia de Jesus foi uma fundação da época dos Descobrimentos. As atividades em regiões extra-européias na fase de sua consolidação tiveram repercussões no seu próprio desenvolvimento, oferecendo um quadro de complexas influências recíprocas de grande significado para estudos culturais em dimensões globais.


Condições e situações locais, culturais, sociais, religiosas e outras levaram à procura de caminhos pragmáticos que exigiram adaptações e refletiram, através da intensa correspondência, na Companhia no seu todo e em outras regiões. Soluções encontradas no Brasil, na Índia ou em outros contextos geográfico-culturais foram discutidas na Europa e levaram a decisões que influenciaram as atividades no seu todo.


O estudo da ação jesuíta no Brasil exclusivamente de uma perspectiva que considere fontes apenas explicitamente pertinentes ao país não pode conduzir a resultados plenamente satisfatórios. A consideração de contextos globais, da dinâmica de influências entre o Brasil e a Europa, assim como entre o Brasil e outras regiões do mundo surge como uma exigência imprescindível aos estudos culturais. Processos de transformação cultural postos em vigência ou influenciados pela missão jesuítica nas respectivas regiões relacionaram-se de forma complexa entre si.


O reconhecimento dessa situação e da necessidade de uma condução das pesquisas de processos culturais nessa perspectiva ampla constitui escopo próprio da A.B.E.. O levantamento de fontes históricas das várias regiões missionárias e o exame do seu relacionamento entre si, na procura de reconhecimento de vias e direções de contatos, influências e interações, para além das distâncias do espaço geográfico, foi desenvolvido no decorrer da década de 80, discutido em simpósios em Roma e em outros países.


Nesses estudos, evidenciou-se sobretudo os estreitos elos entre a história da ação jesuíta no Brasil e na Índia. A partir dos mesmos impulsos que levaram à Companhia e fundamentavam os seus objetivos, a sua concretização nos contextos tão diversos do Brasil e da esfera indiana possibilitam estudos quanto à similaridade e às diferenças dos processos de transformação cultural desencadeados. (Bispo, A.A. Grundlagen christlicher Musikkultur der außereuropäischen Welt der Neuzeit II, Musices Aptatio 1987-88, Roma 1989, 581 ss.)


O estudo da ação jesuíta na Índia deve partir da consideração de que antes do seu início em 1542, em Goa, já há décadas ali viviam europeus e atuavam os Franciscanos. A atenção pode ser aqui dirigida às singularidades de procedimento, de métodos, das práticas religiosas e das expressões religioso-culturais e, assim, às diferenças da cultura de cunho jesuitico desenvolvida. Uma consideração especial deve ser dada naturalmente ao principal vulto da história jesuítica do Oriente: Francisco Xavier (Veja artigo a respeito nesta edição).


A ação dos jesuítas, dirigidas sobretudo à formação cristã das crianças, teve a sua expressão maior no Colégio de São Paulo ou de São Roque. Esse colégio, hoje não mais existente, destruído no século XIX, foi um dos principais da rêde de colégios da Companhia nas diversas regiões do mundo. O próprio estudo dos colégios da Companhia no Brasil não pode ser feito adequadamente sem a consideração do Colégio de São Paulo de Goa. O papel por êle exercido na propagação do Catolicismo e da própria cultura ocidental na Índia não pode ser suficientemente salientado. Possuiu grande biblioteca e imprensa e as fontes históricas documentam o significado das práticas teatrais e musicais na formação cristã-européia dos escolares (Veja artigo nesta edição).



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Indicação bibliográfica para citações e referências:


Bispo, A.A. "Estudos jesuítas e Estudos Culturais em relações Brasil-Índia: aspectos de um debate". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 131/15 (2011:3). http://www.revista.brasil-europa.eu/131/Goa-Bom_Jesus.html





  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.






 

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