Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Praça do Comércio, Lisboa. Foto A.A.Bispo©

Praça do Comércio, Lisboa. Foto A.A.Bispo©

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Praça do Comércio, Lisboa. Foto A.A.Bispo©

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Praça do Comércio, Lisboa. Foto A.A.Bispo©

Praça do Comércio, Lisboa. Foto A.A.Bispo©

Praça do Comércio, Lisboa. Foto A.A.Bispo©

Praça do Comércio, Lisboa
No texto: Teatro D. Maria II (4 e 5), mosaico  de calçada  (6) e sessão inaugural do Centro de Estudos Brasil-Europa
Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 138/1 (2012:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2904


A.B.E.


A perspectiva científica nos Estudos Culturais a serviço do Esclarecimento
Dos fundamentos sistêmicos de processos culturais euro-mediterrâneo-atlânticos
e suas extensões transoceânicas

Ciclos de estudos na Itália, França, Espanha e Portugal pelos 500 anos da morte de Amerigo Vespucci (1451-1512)
15 anos de abertura do Centro de Estudos Brasil-Europa da A.B.E. na Alemanha

 
A.A.Bispo
Os textos publicados nesta edição da Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira oferecem relatos de ciclos de estudos realizados em maio e junho do corrente ano em vários países europeus e que decorreram sob o signo da necessidade da perspectiva científica no tratamento de questões culturais.

Esses estudos realizaram-se no ano da passagem dos 500 anos da morte de Amerigo Vespucci (1451-1512), o navegador, comerciante e perito explorador da história dos Descobrimentos que deu o seu nome ao Novo Mundo e que forneceu, a partir de suas viagens, entre elas sob Gonçalo Coelho (1501/2), bases para a consideração científica da América nos estudos cosmográficos.

Praça do Comércio, Lisboa. Foto A.A.Bispo©
Atualidade da atenção a processos esclarecedores

Uma retomada de consciência acerca do inestimável valor para a Humanidade representado pela gradual e difícil conquista da perspectiva científica na consideração da cultura e suas expressões no decorrer dos séculos, repleta de obstáculos e retrocessos, surge como necessária em época marcada por crescente obscurantismo de fundamentação religiosa na Europa e em outras regiões do globo.

A passagem dos 300 anos de Friedrich II da Prússia, cognominado de "O Grande" (1712-1786), deu ensejo a publicações, exposições e debates que - sem esquecer aspectos problemáticos de suas ações e do seu tempo - consideram o seu papel como vulto exponente da Aufklärung, ou seja a uma época que ficou associada ao iluminar, ao procurar e irradiar luz e ao esclarecer.

O interesse despertado assim pela Aufklärung traz à consciência que, mais do que a uma época encerrada, com as suas expressões históricas, delimitações e mesmo consequências negativas condicionadas por contextos e circunstâncias, a atenção deve ser dirigida a um processo transepocal voltado ao esclarecimento de mentes, à libertação do pensamento, do espírito e da alma das trevas do desconhecimento, da escuridão decorrente de edifícios de concepções e imagens não compreendidos, de tradições, narrativas nebulosas, costumes e normas aceitas cegamente.

Em época na qual tanto se salienta o patrimônio intangível representado por expressões culturais transmitidas pela tradição em vários contextos, de remotas e desconhecidas origens, de sentido muitas vezes enigmático, em grande parte de função religiosa, cumpre trazer á consciência o valor patrimonial para a Humanidade representado pelos esforços em procurar esclarecer edifícios de visões do mundo e do homem dos quais são manifestações e que, não mais entendidos, se transformaram em prisões nas quais o homem vive.

A conservação e a promoção de expressões culturais tradicionais como patrimônio imaterial na política cultural e na educação, objeto de preocupações e iniciativas de instituições, de políticos e mesmo de pesquisadores culturais, devem ser acompanhadas por esforços de compreensão de seus significados, de sua razão de ser, de suas funções e implicações. Devem ser estudadas e fomentadas à distância possibilitada por reflexões baseadas em análises de estruturas, sentidos e mecanismos inerentes à linguagem visual, capazes de detectar conteúdos, avaliá-los e, se necessário, resignificá-los.

Inauguraçao do Centro de Estudos Brasil-Europa. A.B.E. Arquivo A.B.E.©
Necessária função esclarecedora da pesquisa e suas aplicações

Não pode ser tarefa de instituições culturais, científicas, universidades e órgãos de Estado promover expressões que, pela sua natureza performativa, fundamentaram no passado processos de identidade e que mantém vigentes mecanismos inerentes a configurações imagológicas transmissores de normas e valores, sem que se conheça o sentido e o escopo de tais atos.

Não pode ser objetivo de pesquisadores, educadores e agentes político-culturais agir de modo que, em nome da tradição, grupos populacionais e novas gerações conservem e revitalizem de forma não esclarecida expressões que intensificam inserções em sistemas de concepções, imagens e normas, com todas as suas implicações para o indivíduo e suas relações na sociedade.

Sendo folguedos, danças, cortejos e outras expressões tradicionais, de forma muitas vezes não imediatamente reconhecível, elementos de um repertório de representações de fundamentação religiosa, veículos da prática religiosa do passado, a ação de pesquisadores, agentes político-culturais e educadores significa contribuir ao fortalecimento subreptício de elos com formas históricas de religiosidade e de visões do mundo e do homem.

Não poucos são os casos de pesquisadores que, dedicando-se ao estudo dessas expressões e empenhando-se no seu fomento na prática, converteram-se ou reaproximaram-se da vida religiosa, passando a atuar quase que missionariamente segundo expressões históricas, o que não pode constituir objetivo em si do procedimento científico-cultural, da metodologia do trabalho de campo e da participação ativa, e, em geral, da Educação e da Política Cultural em Estado civil.

A condução refletida dos trabalhos culturais, políticos e educativos deve ir mais longe do que o reconhecimento que essas expressões foram instrumentalizadas pela política nacionalista em vários países no decorrer do século XX. A consciência da artificialidade desse aproveitamento político de expressões apresentadas como entidades resultantes de processos de formação nacional já se encontra praticamente generalizada e amplia-se cada vez mais com a crescente constatação que as mesmas expressões consideradas como nacionais se encontram em muitos outros países e que foram recebidas, na sua maioria, da Europa no decorrer da colonização e cristianização.

Atualidade de reconscientizações dos fundamentos helênicos da cultura européia

Os ciclos de estudos desenvolvidos em 2012 decorreram sob o impacto da crise político-econômica vivenciada por várias nações da Europa, em particular Portugal, Espanha, Itália e sobretudo da Grécia, o que fomentou discussões sôbre o futuro das relações deste último país com a União Européia e as suas consequências.

Nos debates, levantou-se sob diferentes aspectos a questão das possibilidades da existência da Europa e da "idéia Europa" sem a Grécia. Na sua intensidade e ressonância, a discussão ultrapassou a esfera mais precisamente econômica e política dos problemas atuais, trazendo à consciência os vínculos indissolúveis que unem histórico-culturalmente os países europeus com a Grécia.

Uma atenção dirigida aos fundamentos culturais e filosóficos do Ocidente não pode deixar de sempre considerar a Antiguidade helênica, cujos principais monumentos materiais se encontram na atual Grécia, mas cujo patrimônio imaterial, sobretudo aquele transmitido em processos postos em vigência, supera de muito os seus limites.

Aquele que mais profundamente reflete reconhece que aqui não se trata de ruínas de um passado encerrado, de restos arqueológicos de uma cultura morta e delimitada geograficamente, mas sim de marcos e memoriais de desenvolvimentos de grandes extensões e consequências, de processos que ultrapassaram fronteiras e épocas.

Como indicadores de bases de processos culturais, esses memoriais gregos trazem à consciência as dimensões da expansão do mundo grego através da colonização do Mediterrâneo e de outras regiões, da helenização de culturas como um sempre surpreendente fenômeno inter-e transcultural em ampla região do globo, da revitalização de bases comuns de remotas origens em diferentes contextos, de harmonizações de concepções e imagens, de cosmopolitismo e internacionalidade.

Esses fundamentos mantiveram-se vigentes na cultura greco-romana, expandiram-se com a ação imperial e colonial de Roma, determinando as bases históricas de várias nações da Europa central e ocidental. Foi nesse contexto marcado por interações culturais e internacionais que a cristianização se processou, resultado e co-determinante de uma mudança de referenciação de edifícios de concepções e imagens segundo a história transmitida pela narrativa bíblica, com consequente transformação de geografias mentais e de consciências de identidade através da inserção em determinado contexto do vir-a-ser histórico.

O vigor das bases helênicas na história do Ocidente assim cristianizado manifestou-se em constantes reconscientizações, revitalizações, reflorescimentos e renascimentos no decorrer dos séculos, em épocas que representaram pontos altos do desenvolvimento da cultura ocidental. A sua maior expressão - a Renascença - coincidiu com o período marcado pela expansão européia através dos grandes Descobrimentos e, assim, com o início da história de colonização e cristianização de várias regiões do mundo extra-europeu. Estas, entre elas o Brasil, receberam com o edifício cultural marcado por determinada referenciação histórica fundamentada na narrativa bíblica, também um sistema de imagens e concepções da visão do mundo e do homem a êle inerente.

Considerar os fundamentos de processos culturais europeus não pode ser vista para essas nações, em particular aqui para o Brasil, apenas como uma questão de erudição, de instrução, de cultura geral ou de especialização em estudos clássicos. Representa uma exigência para o reconhecimento e a análise de uma dinâmica sistêmica que determinou a própria formação, dando prosseguimento e desencadeando processos que continuam atuantes.

Não apenas os riscos acima mencionados, mas também grande riqueza e possibilidades se encerram nas expressões culturais transmitidas ao Brasil desde o início da chegada dos europeus.

Se a sua promoção cega em atitude de mero tradicionalismo pode, apesar das boas intenções de conservação de um patrimônio, levar a fortalecimento irrefletido de funções a que serviram no passado colonial, o seu estudo a partir de uma perspectiva científica pode revelar o sistema de imagens de visão do mundo e do homem que se encontra subjacente, abrindo portas para a superação de instrumentalizações por que passou no decorrer dos séculos. Oferece, assim, possibilidades de contribuir ao esclarecimento de mentes a partir de bases, de servir à Educação e merecer realmente o fomento de uma Política Cultural.

Significado recíproco do estudo de fundamentos culturais no contexto Brasil/Europa

Praça do Comércio, Lisboa.Foto A.A.Bispo©
A necessidade e as perspectivas de estudos de fundamentos de processos foram salientadas por ocasião da inauguração do Centro de Estudos Brasil-Europa da A.B.E. há 15 anos, em sessão realizada sob o patrocínio da Embaixada do Brasil na Alemanha, quando os representantes diplomáticos do Brasil reconfirmaram à A.B.E. todo o apoio à instituição e a seus trabalhos.
Lembrou-se, nessa sessão, que o estudo de fundamentos culturais e de processos culturais a serviço do
Esclarecimento representa uma tarefa marcada por reciprocidade, pois é de significado tanto para o Brasil como para a Europa.
Para o Brasil, constitui uma exigência reconhecer os fundamentos de sistemas de visão do mundo e do homem intrínsecos a expressões culturais transmitidas pelos europeus, uma vez que precisa estar consciente de suas inserções em configurações culturais sistêmicas para seguir  o seu caminho de forma esclarecida, consciente e em auto-
determinação.

Para a Europa, constitui também uma necessidade, pois esta perdeu grande parte das expressões vivas que abrem caminhos para o reconhecimento e a análise de um sistema de concepções e imagens de remotas origens.

Com a perda de possibilidades oferecidas pela observação empírica de um amplo repertório de festas, cortejos e
representações vinculadas ao ciclo do ano, o pesquisador que se dedica à reconstrução de edifício da visão do mundo e do homem sente-se obrigado a partir quase que exclusivamente do estudo de fontes, sejam estas escritas, da literatura ou de suas interpretações e recriações em obras de arte das diferentes épocas.
Talvez tenha sido a maior vitória das tendências obscurantistas no decorrer dos séculos ter levado à extinção dessas expressões mantidas através dos séculos na cultura popular em nome de um pretenso combate a restos de
paganismo. Esse combate vem marcando a história cristã desde os seus primórdios nos diversos países, conhecendo fases iniciais de reinterpretação, refuncionalização e instrumentalizações de formas de expressão e linguagens, para, a seguir, procurar extingui-las.

Apesar desse combate ter durado séculos e experimentado épocas de particular intensidade, muitas dessas expressões tradicionais puderam alcançar a época dos Descobrimentos e ser transmitidas às colonias extra-européias, onde também puderam sobreviver.

Na Europa, porém, em países menores e mais sujeitos à ação da Reforma protestante e da Restauração católica nas suas diversas fases e formas, a morte dessas expressões tradicionais vivas representou um ocultamento, uma perda de possibilidades de reconhecimento de um edifício cultural, uma deficiência de conhecimentos relativamente ao Sistemático a favor de um Historismo em diferentes acepções e formas de expressão.

Campo de tensões Sistema/Narratividade e os paradoxos da de-mitologização

A incapacidade de entendimento da estrutura, dos mecanismos e de sentidos do edifício cultural manifesta-se nos estudos mitográficos da antigas concepções e imagens da Antiguidade Clássica e que, na forma de estudos mitológicos, levou a um conjunto de conhecimentos incoerentes, incompreensíveis, marcado por divindades que surgem como abstrusas e irrisíveis nos seus atos, indignas para culturas que, como a da antiga Grécia, alcançaram tão alto nível na Filosofia e nas artes.

Essas ruínas do edifício que se manifestam na cacofonia mitográfica não devem, porém, ser consideradas como indicadoras de um complexo cultural em si confuso, marcado pela falta de lógica, mas sim como resultados de uma inadequabilidade da perspectiva e dos procedimentos da própria pesquisa.

O historização ou a compreensão superficial de narrativas nos seus diversos aspectos fechou os olhos do Homem a um complexo de natureza sistêmica que possui, como uma de suas principais características, permitir atualizações em diversas circunstâncias, contextos e no tempo, tanto na história de fatos verídicos como em construções históricas.

Fechando as portas para a compreensão do sistemático subjacente, o Homem subjuga-se a essas atualizações, absolutiza o historico ou historiado, e que, na verdade, apenas devia servir a exemplificar e a elucidar a vigência da ordem sistêmica, fornecendo também critérios para a interpretação do percurso humano no passado e no presente. Cria-se, assim, uma história mitologizada, com inversão de perspectivas: narrativas que deviam ser lidas à luz do sistema inerente de concepções passam a ser as condutoras na compreensão do mundo e da vida do homem.

A de-mitologização mal-compreendida, que pretende retirar aquilo que se percebe mais evidentemente como incrível em narrativas e nas Escrituras, remetendo-as à veracidade histórica, não só é inalcançável devido às próprias características de um sistema que possibilita atualizações no tempo, mas representa, neste contexto, a verdadeira mitologização.

O fato de que no Brasil, assim como em outros países de formação colonial do início da era moderna, conservaram-se, apesar das transformações, expressões desaparecidas na Europa e cuja análise permite o reconhecimentos e mesmo a reconstrução de edifícios de concepções e imagens, fundamenta o significado da consideração de processos culturais referentes ao Brasil para os estudos europeus.

Os estudos de contextos brasileiros favorecem a análise dos próprios fundamentos culturais da Europa, contribuindo ao esclarecimento e auxiliando que este não seja posto em perigo com uma intensificação das tendências obscurantistas em ação há séculos e resultante sobretudo da compreensão literal de textos.

Para o Brasil, coloca-se como principal tarefa para a conservação do patrimônio cultural que guarda impedir que este seja destruído por correntes que fundamentalizam o histórico em compreensão literal de narrativas, também das Escrituras, o que apenas pode ser alcançado através do fomento de uma perspectiva científica na análise do edifício cultural.

Mudança de discursos: de transplantações culturais ao sistêmico e suas dimensões

Essas posições apresentadas e discutidas por ocasião da abertura do Centro de Estudos da A.B.E. em 1997 foram resultados de um longo desenvolvimento de reflexões e estudos. Um dos momentos do desenvolvimento dos debates foi o Encontro Regional para a América Latina e o Caribe da UNESCO/IMC realizado em São Paulo, em 1987, e no qual tomaram parte representantes de universidades de vários países da América Latina e dos EUA.

Essa conferência, inserida no contexto de um congresso internacional sob o patrocínio do Ministro da Cultura do Brasil e sob os auspícios do Govêrno do Estado de São Paulo, foi iniciado e organizado pelo editor desta revista em nome do I.S.M.P.S./A.B.E. juntamente com o Prof. Dr. Samuel Claro-Valdés, Decano da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica de Santiago do Chile, tendo sido preparado em reuniões realizadas em Colonia (1984), assim como em Roma (1985).

Para o projeto, preparou-se um estudo sobre a questão colocada acerca da transplantação da cultura européia ao continente americano no decorrer da colonização, da cristianização e de correntes imigratórias. Esse complexo temático e a reconsideração das bases conceituais de seu tratamento representava uma preocupação já de há muitos anos, tendo constituído, sob o aspecto de estudos de processos receptivos, objeto do primeiro empreendimento de pesquisadores de assuntos culturais brasileiros levado a efeito na Europa, em 1979, sendo que alguns de seus estudos serviram de base para discussões do Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira", realizado em São Paulo, em 1981.

Essas preocupações foram a seguir retomadas pelo editor desta revista na série de simpósios realizados em Bruxelas pela Comissão das Comunidades Européias, de 1983 a 1985, quando as atenções foram dirigidas à reciprocidade de influências culturais entre a Europa e a América Latina.

Para o Encontro Regional da América Latina e Caribe de São Paulo de 1987, procedeu-se a uma discussão teórica de termos relacionados com a acepção de transplantes culturais e similares, chamando-se a atenção a problemas derivados de imagens subjacentes a concepções e que co-determinam análises e estudos.

Procurou-se demonstrar a necessidade de um direcionamento das atenções sobretudo a processos inter-e transculturais em contextos globais, tal como preconizado pela entidade fundada em 1968 em São Paulo e que hoje constitui a Organização Brasil-Europa.

Uma pesquisa de base deveria ser dirigida a questões de fundamentos desses processos, ou seja, à análise de sistemas de imagens do mundo e do homem e de mecanismos a elas inerentes. Em consequência a essas reflexões, decidiu-se que o Congresso Internacional a ser realizado no Rio de Janeiro, em 1992, pelos 500 anos do Descobrimento da América, devia tratar explicitamente dos fundamentos de processos culturais e de bases epistemológicas dos estudos respectivos. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Australia-Melanesia-Brasil.html)

Projeto: fundamentos de expressões culturais tradicionais no Brasil

Nesse evento, realizado no ano que relembrava a chegada dos europeus no continente americano, elaboraram-se dois projetos que deviam marcar os trabalhos posteriores: um dedicado a processos culturais relativos aos povos indígenas do continente que foram confrontados com os europeus (http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Aborigenes-Blue-Mountains.html) e outro à cultura dos próprios europeus, ou seja, de colonizadores e missionários.

Correspondentemente ao tema e à orientação do congresso, também neste último projeto a atenção devia ser dirigida a questões de fundamentos da cultura e a processos nos quais os próprios europeus se encontravam inseridos.

Em diálogos com pesquisadores culturais, em particular com membros da Associação Brasileira de Folclore e do Museu de Folclore Rossini Tavares de Lima de São Paulo, discutiu-se a situação dos estudos relativos a fundamentos daquelas expressões culturais presentes na tradição brasileira e que, apesar de todas as transformações, remontam de forma inquestionável ao patrimônio cultural trazido pelos europeus. Essa situação de deficiência surge como insustentável para a ciência, a educação e uma política cultural consciente e esclarecida.

Considerou-se, nessa ocasião, que questões relativas a fundamentos de expressões culturais tradicionais têm sido em geral tratadas sob o aspecto histórico concernente às origens de danças, cortejos, folguedos, expressões de culto e instrumentos. Esse intento dirigido a gêneses ou origens, ainda que importante para estudos de diferenciações e caminhos de difusão, não pode desviar a atenção à necessidade da consideração de uma arqueologia da cultura e, sobretudo, da análise sistêmica e de significado das expressões culturais,

As dificuldades que os pesquisadores têm encontrado para a solução de questões relativas às origens de expressões culturais tradicionais surgem, na perspectiva convencional, como resultantes da uma insuficiência de fontes. Cumpre indagar, porém, se as dificuldades encontradas não residem antes em problemas da própria metodologia e dos enfoques da pesquisa. Pode-se ter perdido a forma adequada de aproximação aos complexos culturais estudados, uma vez que os pesquisadores encontram-se sujeitos aos condicionamentos criados pela própria cultura e pelo desenvolvimento disciplinar em que se inserem.


Natureza muso-antropológica do edifício de concepções e imagens

Um importante momento no desenvolvimento das reflexões deu-se com o a consideração mais específica da expansão ao mundo extra-europeu de expressões culturais de antigos fundamentos vigentes em Portugal à época dos Descobrimentos no Simpósio Internacional de Antropologia Simbólica realizado, em São Paulo, em 1998, motivado pela passagem dos 500 anos da viagem de Vasco da Gama.

Nesse evento, considerou-se em particular a imagem do guia-músico, muso-guia ou guia das musas como paradigma emblemático da cultura, das ciências e das artes, executante da lira ou de instrumentos afins, central no conjunto das imagens de remoto passado e que foi transmitida através dos séculos na cultura brasileira da forma mais evidente no culto e na dança de São Gonçalo do Amarante. (http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/Internet-Corres2/CM54-10.html)

Esses trabalhos levaram a uma retomada de estudos simbólico-organológicos relativos à lira e suas transformações no decorrer da história sob a perspectiva de transformações culturais. (A.A.Bispo, Grundlagen christlicher Musikkultur in der außereuropäischen Welt der Neuzeit: der Raum des früheren Portugiesischen Patronatsrechts, Musices Aptatio  1987/88, Roma 1988,Christliche Musikanthropologie; Eine Einführung, Musices Aptatio 1992/93, Roma 1999).

O papel de instrumentos que mantém vivos complexos de sentidos remontantes à imagem da lira em processos inter-e transculturais no Brasil no passado e no presente foi especificamente tematizado em sessão especial destinada a encontros de culturas indígenas com aquele da cultura tradicional brasileira no âmbito do congresso internacional de encerramento do triênio científico-cultural pelos 500 anos do Brasil. Nesse evento, tratou-se dos encontros, interações e metamorfoses de imagems de antigas proveniências em processos culturais no exemplo da maraca e da viola.(http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/Internet-Corres3/CM85-01-p.html)

Os debates tiveram continuidade, na Europa, em seminários dedicados à Simbólica Musical na Musicologia (2003) de orientação teórico-cultural (2003) e aos estudos de concepções teórico-musicais da Antiguidade sob a perspectiva de novas tendências da Filosofia contemporânea (2005).

O objetivo do colóquio que encerrou este último seminário teve como objetivo refletir sobre os problemas da análise do edifício de concepções do mundo e do homem de antigas raízes à luz de tendências do pensamento contemporâneo baseado na crítica ao logocentrismo, discutindo-se questões de coerência entre procedimentos de análise e propostas filosóficas de natureza antes político-cultural conduzidas sob o signo da diferença. (http://www.brasil-europa.eu/Anais/Anais_Coloquios.html)

Superação do obscurantismo de compreensões literais como escopo primordial

Os ciclos de estudos desenvolvidos em 2012, agora conduzidos à luz das preocupações pelo Esclarecimento perante a intensificação do obscurantismo de fundamentação religiosa na Europa e em vários outros países do globo, procuraram discutir o significado do resguardo e mesmo de uma reconquista da perspectiva científica nos estudos culturais em diferentes contextos.

Esta parece apenas poder ser garantida ou recuperada com o direcionamento das atenções ao estrutural e a seus mecanismos intrínsecos, ou melhor ao sistêmico do edifício de visão do mundo e do homem de remotas origens, assim como às bases sistemáticas de narratividades, historizações e construções de decorrências supostamente históricas.

Os debates salientaram e salientam, assim, que apenas a consideração dos fundamentos do edifício imagológico pode contribuir de forma esclarecedora ao fundamentalismo obscurantista baseado na compreensão literal de narrativas e das Escrituras. Estudo esclarecedor de fundamentos e o fundamentalismo obscurantista relacionam-se, aqui, com a questão da leitura.

Ponto de partida: Ciudad de las Ciencias y Artes

Os ciclos partiram da vigência no presente da linguagem visual de remota proveniência em configuração do espaço arquitetônico e urbano destinado a fomentar o exercício das ciências e do processo criador no exemplo da Ciudad de las Ciencias e das Artes de Valencia.

Já tratada anteriormente in loco e em seminário destinado às relações entre Arquitetura, Urbanismo e Música (2004, 2006), esses trabalhos deram continuidade, sob novos aspectos, a debates desenvolvidos no início da década de 70 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo em cooperação com o então Museu de Artes e Técnicas Populares da Associação Brasileira de Folclore. (A.A.Bispo, "Tempo, Espaço, Matéria: Uma Introdução ao Estudo da Estética", Brasil/Europa & Musicologia, Colonia: A.B.E./I.S.M.P.S./I.B.E.M. 1999,17-24; "O Problema Ético-Estético na Arquitetura e na Música", ibidem 39-45; "Urbanismo, Música e Fundamentos da Expressão e Comunicações Humanas", ibidem 57-74).

Exercícios contextualizados segundo o binômio Navegação/Comércio

Passando-se a estudos do passado de processos culturais, considerou-se na série dos ciclos de estudos a manutenção de antigas orientações segundo sinais do mundo visível e seus sentidos na vida comercial no Mediterrâneo no decorrer da Idade Média, o papel dos judeus na sua interpretação como processo histórico-narrativos e as relações entre o comércio e a escrita de normas, regulamentos e codificações de Direito de navegação.

Procurou-se, nas análises, considerar as imagens referentes ao comércio e à navegação subjacentes ao modo de pensar em narrativas e aos desenvolvimentos históricos, assim como o seu ressurgimento na Renascença. As reflexões foram encetadas na Lonja de los Mercaderes e Consulado del Mar em Valencia, templo do comércio e edifício mais representativo da arquitetura civil do Gótico tardio europeu.

Ainda em Valencia, considerou-se os fundamentos imagológicos em narrativas de natureza religiosa no culto ao Santo Cálice. A atenção foi aqui dirigida aos elos da imagem subjacente a esse culto com concepções do Santo Graal nas gestas medievais e suas expressões em romances e outras tradições narrativas sob especial consideração de suas sobrevivências no Brasil.

A consideração dos elos entre o culto do Santo Cálice no mundo ibérico mediterrâneo com a tradição das gestas do Norte da França - e portanto de interações mediterrâneo-atlânticas - preparou a realização dos trabalhos desenvolvidos em Marselha.

O ciclo de estudos realizado nessa maior cidade do Mediterrâneo francês foi dedicado a seus remotos fundamentos grego como assentamento e colonia de fócios e, portanto, como expressão de um processo colonizador e de expansão comercial-marítima do mundo colonial grego em direção ao Ocidente. Essa fundação colonial tem a sua expressão na imagem de amor e de união entre a mulher nativa e o navegante vindo de fora, de chegada em atmosfera de festa e sensualidade, de entusiasmo e êxtase, uma imagem simbólica de cunho carnavalesco que pode ser encontrada em outros contextos coloniais da Antiguidade e, muito mais tarde, à época dos Descobrimentos e mesmo no Brasil. Também aqui procurou-se estudar o modêlo paradigmático dessa imagem de fundação colonial de conotações dionisíacas.

A partir da análise do programa da Bourse et Chambre de Commerce de Marseille, edifício emblemático do patrimônio arquitetônico e cultural marselhês, considerou-se as bases imagológicas do processo colonial que uniu o Mediterrâneo ao Oceano Atlântico sob o signo dos conceitos de Navegação e Comércio e à luz de sua vigência na auto-consciência e identidade da principal cidade de comércio portuário francês.

Sob o primeiro, considerou-se o vulto de Euthymenes como o primeiro dos grandes nomes de Marselha e que entrou na história por ter retornado a salvo de uma longa e riscante viagem pelo Oceano, vindo de longínquas regiões da costa da África Ocidental. Procurou-se, aqui, considerar o Atlântico e a África atlântica na narrativa referente a Euthymenes sob a perspectiva da geografia simbólica da Antiguidade e a imagem emblemática da Navegação no modêlo grego e na sua vigência subjacente na tradição bíblica.

Sob o segundo conceito, o do Comércio, considerou-se o vulto histórico do comerciante Pytheas, celebrado por ter atravessado o oceano na sua viagem em direção ao Norte da Europa à procura da terra de riquezas e no intuito da libertação de algemas ao livre-comércio. Também aqui a atenção foi dirigida à análisse de imagens subjacentes à narrativa histórica, intuito facilitado pela análise do programa iconográfico da Bolsa e Câmara de Comércio de Marselha, onde Pytheas surge à luz de Hermes como emblema do Comércio.

Leitura de sinais celestes e imagens de exemplaridade nas concepções do homem

A constatação do significado da expansão colonial de gregos insulares, das suas causas, seus motivos e suas bases sistêmico-culturais para a compreensão de processos que unem o Mediterrâneo ao Atlântico dirigiu a atenção de forma particular às expressões religiosas vinculadas à vida do mar.

Partiu-se, aqui, em continuidade de procedimentos que vêm sendo seguidos na pesquisa (A.A.Bispo, Typus und Anti-Typus: Analyse symbolischer Konfigurationen und Mechanismen (...), Colonia: A.B.E./I.S.M.P.S./I.B.E.M. 2003), da  importância dos céus para a orientação daqueles que navegam. Considerou-se, particularmente, a leitura de significados dos grandes luminares da noite e do dia: a lua e o sol.

Sendo o caminho para o Ocidente dos gregos insulares um caminho em direção ao poente, à noite, às trevas no sentido figurado, compreende-se o significado do culto a personificações de sentidos sinalizados pelo sol durante o dia e pelas constelações na noite.

As bases imagológicas helênicas do Marianismo de Marseille que remetem ao culto a Artemis foram tratadas a partir da igreja de Notre-Dame de la Garde, importante centro de peregrinação que marca a paisagem de Marselha e a sua vida religiosa há séculos, guardiã de grande patrimônio de testemunhos do culto mariano pelos viajantes no mar, também em sentido figurado.

As bases imagológicas representadas por Apolo no culto de mártires foram tratadas no exemplo da antiga abadia de St. Victor, grande centro do Beneditismo e da vida cultural do Ocidente cristão do passado. Retomou-se, aqui, em outro contexto cultural, o tratamento de uma imagem-modêlo de central significado emblemático para a cultura, as ciências e as artes tratado em vários eventos anteriores, em particular nos mencionados colóquios de Antropologia Simbólica realizado no Brasil, em 1998, e na sessão dedicada a mecanismos de transformação cultural, em 2002.

Fundação de Lisboa sob o signo da Navegação segundo o paradigma de Ulisses

Os estudos realizados em Lisboa puderam fundamentar-se naqueles iniciados em Valencia e desenvolvidos em Marselha.

Se na cidade marítimo-comercial francesa o posicionamento do observador é primordialmente mediterrâneo, em Portugal é atlantico. Entretanto, retomando trabalhos já anteriormente realizados, lembrou-se que as tradições narrativas  relativas a origens da povoação e da fundação de cidades de Portugal também descrevem vindas de longínquas regiões ao Ocidente, sugerindo que aqui foram alcançados portos após difíceis e riscantes navegações a poente e ao Atlântico, com todas as suas associações negativas.

As reflexões encetadas em Marselha a partir do conceito de Navegação puderam abrir perspectivas para a compreensão mais diferenciada da imagem de Ulisses, fundador de Lisboa, corrigindo interpretações da literatura, algumas delas que até mesmo serviram a teorias culturais que se demonstram, assim, infundadas, como aquelas do "luso-tropicalismo".

Essa consideração de Ulisses e da Odisséia no contexto geral do edifício da visão do mundo e do homem permite também compreender os elos que se estabeleceram com a narrativa bíblica, o que marcou panoramas históricos de pensadores portugueses e que surgiram até hoje como incompreensíveis ou fantasiosos, merecendo ser relidos sob novos critérios.

Também aqui constatou-se, na contextualização portuguesa, de mesmas imagens vigentes em outras situações de fundação de cidades, de colonização ou de introdução da civilização ou cultura, indicando a coerência do edifício de imagens e concepções do mundo e do homem e a sua capacidade adaptativa.

Os estudos realizados em Marselha relativos a expressões culturais da vida do mar da colonização grega forneceram também pontos de partida para releituras de monumentos portugueses.  Uma particular atenção foi dada aqui à interpretação do Manuelino e às transformações ocorridas com o Renascimento na linguagem visual mariana no exemplo da Igreja da Conceição Velha de Lisboa. Esse monumento da história da arquitetura e da plástica em Portugal - e da Europa em geral -, foi agora considerado no seu significado para os Estudos Culturais e para a análise de sistemas de imagens.


O Comércio na imagem de Hermes e a análise cultural do fenômeno compostelano

Se o ciclo de estudos realizado em Portugal revelou o papel primordial representado pela Navegação no âmbito do binômio Navegação/Comércio, o segundo conceito, o do Comércio, tornou-se condutor das reflexões encetadas em Santiago de Compostela.

Foram também aqui retomados estudos já realizados nessa cidade da Galícia e em outros contextos referentes ao culto do Apóstolo São Tiago, quando considerou-se o significado da rêde constituídas pelos caminhos a Compostela que marca a estruturação viária da Europa nas suas repercussões no mundo extra-europeu, também no Brasil. (http://www.revista.brasil-europa.eu/105/Caminho-de-Anchieta.htm)

Salientou-se, nesse novo encontro em Santiago de Compostela, a importância da perspectiva dirigida às bases imagológicas do culto de São Tiago Maior não apenas para a compreensão de narrativas e de expressões culturais e de culto, como também sob a perspectiva das preocupações atuais referentes ao Esclarecimento.

O contexto cultural compostelano aguça de forma particularmente intensa a sensibilidade para o problema atual da expansão de tendências obscurantistas de fundamentação religiosa resultantes de compreensões historicizantes a partir de compreensões literais das Escrituras e de narrativas, o que deveria constituir preocupação de todos aqueles que se dedicam a Estudos Culturais a serviço do conhecimento e do esclarecimento.

Antonio Alexandre Bispo

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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "
A perspectiva científica nos Estudos Culturais a serviço do Esclarecimento
Dos fundamentos sistêmicos de processos culturais euro-mediterrâneo-atlânticos
e suas extensões transoceânicas"
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 138/1 (2012:4). http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Estudos-e-Esclarecimento.html