Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________

Templo Lama, Beijing.Fotos A.A.Bispo©

Templo Lama, Beijing.Fotos A.A.Bispo©

Templo Lama, Beijing.Fotos A.A.Bispo©

Templo Lama, Beijing.Fotos A.A.Bispo©

Templo Lama, Beijing.Fotos A.A.Bispo©

Templo Lama, Beijing.Fotos A.A.Bispo©

Templo Lama, Beijing.Fotos A.A.Bispo©

Templo Lama, Beijing.Fotos A.A.Bispo©

Templo Lama, Beijing.Fotos A.A.Bispo©

Templo Lama, Beijing.Fotos A.A.Bispo©

Templo Lama, Beijing.Fotos A.A.Bispo©

Templo Lama, Beijing.Fotos A.A.Bispo©

Templo Lama, Beijing.Fotos A.A.Bispo©

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 137/3 (2012:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2887


A.B.E.


O Budismo aplicado nas relações sino-ocidentais
Possibilidades e problemas de um caminho de aproximação cultural
- Compaixão Divina no Extremo Oriente e Nossa Senhora da Misericórdia -



Ciclo de estudos em Peking/Beijing e Manchester
no ano da participação da China como nação convidada na Feira de Hannover 2012
Pelos 500 anos da presença portuguesa na China
em atualização de trabalhos da A.B.E. em Hong Kong e Macau
à época da transferência de soberanias européias à China (1996). Templo Lama do Palácio da Paz e Harmonia

 
Templo Lama, Beijing.Fotos A.A.Bispo©
A fascinação atual no Ocidente pelo Budismo pode ser constatada de diferentes formas e analisada sob diversos aspectos.

Centros budistas e instituições de estudos e de práticas de meditação e de espiritualidade de orientação budista desenvolvem atividades em vários países europeus. Entre êles, salienta-se o "Instituto Europeu de Budismo Aplicado" (EIAB) que ocupa agora, de forma aparentemente paradoxal, o monumental edifício da antiga Academia Militar Nazista na região de Oberberg, próximo ao Centro de Estudos Brasil-Europa da A.B.E. na Renânia do Norte/Vestfálía.

Em arquitetura marcada por formas, estruturas e gestos de um sistema ditatorial, militarista e de violência, de imagens superdimensionadas de homens e mulheres em posições heróicas, os budistas, contrastando-se pela simplicidade e modéstia de sua aparência e expressões, indicam o caminho da paz e harmonia com que ocuparam o espaço, infiltrando-se em silêncio.

Esse desenvolvimento das últimas décadas representa um fenômeno que merece a atenção de estudos culturais dirigidos ao presente e a processos globais, em particular aqueles que dizem respeito às relações entre o Ocidente e o Oriente.

Uma das razões que podem explicar essa singular fascinação pelo Budismo no Ocidente reside nas perspectivas que abre e nas possibilidades que oferece a aqueles que procuram universos espirituais e práticas de meditação sentidos como próximos e, ao mesmo tempo, sem as delimitações decorrentes de intenções expressamente missionárias e de inserções históricas e formas de expressão, organização e legislação eclesial do Cristianismo, em particular do Catolicismo.

Significativamente, registram-se tendências ao Budismo de forma particularmente evidente em fiéis, religiosos, teólogos e centros voltados a práticas meditativas em abadias e outras instituições marcadas pela tradição do espírito monacal e por um modo de vida de trabalho e oração configurada pelo canto das Horas.

Em espaços e atmosferas conventuais, trajes, gestos, uso de incenso, recitações, entoações budistas e Canto Gregoriano criam pontes e relacionamentos espirituais que são percebidos e vivenciados, embora nem sempre sejam alvo de reflexões quanto a fundamentos teológico-filosóficos e de referenciações histórico-culturais que as justifiquem.

Esse ausência de maior atenção a edifícios de concepções e suas possíveis relações é consciente e por vezes expressamente manifestada, salientando-se o caminho aplicado da experiência íntima da paz e da harmonia da presença budista e o seu intuito não-missionário.

O Dalai Lama é alvo de manifestações de simpatia, admiração e mesmo de veneração na Europa, gozando de popularidade incomum para uma autoridade espiritual de contexto cultural não ocidental.

Essas manifestações são acompanhadas frequentemente por protestos da China, o que traz à consciência dimensões políticas e político-culturais do fenômeno da crescente presença budista no Ocidente.

Alguns, assumindo a perspectiva chinesa, lembram da vitalidade do Budismo na China do presente, dos seus templos, das possibilidades de sua prática e mesmo de ensino, de viagens de monges chineses à Índia e do singular empenho em regulamentação oficial da procura da nova reencarnação de Buda e, assim, do novo guia espiritual dos budistas.

O observador confronta-se com problemas de relações políticas e político-culturais entre o Tibet e a China e de perspectivações na consideração de situações e processos. A posição chinesa, que surge à ótica ocidental como expressão de nacionalismo e predominância do Estado sobre a religião, pode ser vista, a partir de outra perspectiva, como a de uma resistência ou reação a tendências de inversões de situações e estruturas da organização social que se processam de forma subreptícia.

A permanência de fundamentos da tradição confuciana na China atual poderia talvez explicar concepções de estruturação social e de Estado na qual não surge como aceitável desenvolvimentos que levam a que correntes religiosas vindas de fora, que se infiltraram-se silenciosamente e que foram mesmo assimiladas graças às próprias características do edifício confuciano passem a constituir corpos paralelos ou mesmo competitivos. Sob essa perspectiva, percebe-se uma certa similaridade com a situação do Catolicismo na China, onde existe hoje uma igreja nacional, com hierarquia chinesa.

A atual emergência da China como potência tecnológica no cenário internacional - manifestada na sua participação como nação convidada na Feira de Hannover 2012 - é também acompanhada por questões que salientam a necessidade de compreensão mútua e de entendimento de diferentes modos de pensar e de agir. Essas questões, de natureza cultural, exigem a realização de análises de processos históricos que possam explicar situações e tendências atuais. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/China-Brasil.html)

Também no concernente às questões referentes ao Budismo impõe-se a necessidade de análises mais diferenciadas e que devem ser acompanhadas por reflexões quanto às perspectivas e os métodos adequados na sua condução.

Templo Lama, Beijing.Fotos A.A.Bispo©

Local de reflexões: Templo Lama da Eterna Harmonia no Palácio da Paz e Harmonia

Não distante do Templo de Confúcio em Peking/Beijing, o segundo da China em importância (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Confucionismo.html), levanta-se o Templo Yonghe ou da Eterna Harmonia no Palácio da Paz e da Harmonia, monumento histórico-cultural e arquitetônico considerado por muitos como o mais belo das construções religiosas, sendo um dos maiores do Lamaismo fora do Tibet.

Fechado durante a Revolução Cultural (1966-76), salvo pela intervenção do ministro Zhou Enlai, apresenta-se hoje como vital centro de vida religiosa e de cultura espiritual, local de peregrinações, frequentado por grande número de monges e budistas, sobretudo nas grandes festas, como no Ano Novo Chinês.


O Templo constitui um exemplo singular de transformação de construção palacial em mosteiro, ocorrido em 1744. Remontando a fins do século XVII (1694), foi residência do príncipe Yong da Dinastia Qing, quarto filho do Imperador Kangxi (1654-1722), a partir de 1722 Imperador Yongzheng (1678-1735), que o promoveu a palácio chamado Yonghegong, significando palácio da harmonia e da paz.

Em 1744, o seu filho e sucessor, o Imperador Qianlong (1711-1799), transformou o complexo em mosteiro em homenagem a seu pai Kangxi. Qianlong, procedeu a ampliações do complexo e trouxe considerável número de monges budistas tibetanos e discípulos da Mandschuria. O desenvolvimento do templo foi considerável sob a Dinastia Qing, chegando a ter mil monges.

O complexo arquitetônico é constituido por vários pátios e espaços edificados, cuja entrada é marcada por um grande portão de madeira, profusamente ornamentado. O complexo apresenta cinco grandes edifícios e cinco pátios, além de portais, ordenados segundo um eixo central em direção norte.

Os principais edifícios são, além da sala do Portão Yonghe, os saguões Yonghegong, Yongyou, Falun, o pavilhão Wanfuge e o edifício Suicheng. De 1744 é a torre do sino, contando com instrumentos de particular relevância histórico-organológica.


Os edifícios laterais são o Jietai, Panchen, a Sala do Lado Ocidental, a do Lado Oriental, o Shilun, o edifício da Medicina, o do Exoterismo e do Esoterismo. Antes desses espaços há três arcos memoriais. As configurações ornamentais constituem expressões magnificentes com características das culturas Manschu, Han, do Tibet e da Mongolia.


Os edifícios contém imagens de Buda, rolos pintados Tang-ga e objetos de valor histórico. As relíquias mais importantes são o nicho de Buda, esculpido de nanmu, com filigranas, a Montanha de 500 Arhat de madeira de sândalo vermelho e o Buda de 18 metros de altura esculpido num só tronco de sândalo branco.

O primeiro espaço é dedicado aos Reis Celestiais, com o Buda Mile, seguindo-se a Sala da Grande Harmonia, antiga sala de audiências, a da Proteção Eterna, residência do príncipe, e a da Roda da Lei, principal edifício.

Culminando a sequência, levanta-se o Pavilhão da Felicidade Infinita (das dez mil vezes Felicidade), onde se encontra a imagem dourada do Buda do Futuro (Maitreya), esculpida num tronco único de gigantesca árvore de sândalo. Essa escultura, de extraordinário significado artístico e histórico-cultural representou um presente do sétimo Dalai Lama ao Imperador Quianlong.


Nicho de Avaiokitesvara com Guanyin, a divindade da Compaixão Universal

Na parte posterior desse edifício encontra-se a gruta ou o nicho de Avaiokitesvara contendo no no seu centro Guanyin, a divindade da Misericórdia, salientando-se expressamente ser ela venerada sobretudo no Mar do Leste Chinês.


O acesso a esse local de veneração que se apresenta de forma discreta na parte recôndita do último edifício não é salientado e facilitado, o que pode ser considerado como uma expressão de ser antes uma forma de veneração antes tolerada do que fomentada. Mesmo assim, é visitada por grande número de fiéis, que ali depositam oferendas.

O termo sânscrito Avalokiteshvara, expressamente utilizado, indica a sua inserção no conjunto das concepções do Budismo Mahayana, representado na parte anterior do edifício sobretudo na imagem do Buda Maitreya, o único Bodhisattva do Budismo Theravada.

Avalokiteshvara corresponde ao Bodhisattva da Compaixão Universal, em sânscrito karuna, sendo Tara uma de suas emanações. É, dos locais de culto do complexo do templo talvez aquele mais sensível do ponto de vista político-cultural, uma vez que é protetor do Tibet (Chenrezig, Chenrezi). Como encarnação da compaixão de todos os Budas, os guias - em particular o Dalai Lama - surgem como suas emanações.

A placa informativa junto ao nicho, porém, salienta o seu elo com práticas religiosas populares do Mar da China, onde é conhecida na forma da deusa do mar e rainha dos céus Guanyin, um culto que, sob diferentes denominações, é difundido em várias regiões do Extremo Oriente e do Sudeste da Ásia, tais como no Japão e no Vietnam (Quán Thé Am), na Mongólia (Nibubarusheckchi, Janraisag) além de regiões de imigração chinesa na Malásia e nas Américas (http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Kuan-Yin-em-Penang.html).

A concepção da divina percepção do sofrimento das criaturas

A veneração de Avalokiteshvara no Templo Lamaista de Peking assume sob diversos aspectos particular relevância para os estudos culturais. Um deles diz respeito ao conteúdo de significados contidos no seu nome e que tem relações com a contemplação e percepção do mundo, assim como com o som.

Trata-se de uma compreensão da divindade como aquela que percebe ou capta os sons, isto no sentido daquele que escuta os lamentos dos seres viventes.

Tem-se, assim, na virgem de luz, deusa das águas e rainha dos céus da tradição chinesa das zonas marítimas expressa nos próprios dizeres do templo um acento dado à sua compreensão como aquela manifestação divina que escuta os choros, lamentos e expressões de sofrimento e angústia não só de homens, mas também de animais.

Com a sua denominação, Guanyin ou Guanshiyin, é aquela que tem percepção para os sons do mundo. Similar significado tem a sua denominação em coreano (Kwan Um, Gwan-eum, Gwanse-eum), em japonês (Sho Kannon, Kanzeon, Kanjizai, Kozeon).

Outro aspecto que merece particular consideração é que, apesar da forma feminina da Divindade na religiosidade popular da China e de muitas outras regiões, a concepção fundamental é a da não-existência de oposições na divindade da Compaixão e, portanto, do feminino-masculino.

É a partir dela que se pode alcançar assim a dimensão fundamental da unidade que engloba todas as possibilidades de relações e intensidades na dinâmica do masculino e do feminino, uma concepção que adquire, hoje, extraordinária relevância para reflexões sôbre Direitos Humanos referentes a questões de Gênero.

Guanyin e Nossa Senhora da Misericórdia de Macerata: Mattheo Ricci (1552-1610)

O jesuita italiano Matteo Ricci surge como o principal nome a ser considerado na análise cultural de procedimentos empregados por europeus que procuraram introduzir-se no universo chinês com o objetivo conscientemente refletido de modificá-lo segundo as suas próprias convicções e os seus próprios referenciais.

A literatura a seu respeito é considerávl; todavia, a sua vida e obra podem ser reconsideradas de forma mais diferenciada à luz dos processos por êle empregados a partir de um posicionamento que se preocupe em considerar a visão do receptor.

No contexto de Assembléia Internacional realizada na Abadia Beneditina de Montecassino, em 1995, quando o editor desta revista expôs a situação da pesquisa etnomusicológica (A.A.Bispo, "Situação de projeto de levantamento dos conhecimentos etnomusicológicos...", Musicae Sacrae Ministerium XXXIII/1&2, 92-106), considerou-se que os estudos de Matteo Ricci não podem deixar de dar especial atenção ao local em que nasceu e se formou, ou seja, Macerata, não distante de Montecassino. 

A partir da história e do patrimônio cultural e religioso dessa cidade medieval, compreende-se a intensa veneração mariana e o interesse pelo saber e pelos estudos que caracterizam o passado e o presente de Macerata.

Macerata era marcada, na época de Ricci, pela ressonância de um milagre que teria ocorrido com a intervenção de Maria em período de epidemia. Em apenas um dia - no 4 de agosto de 1447, ter-se-ia construido a capela de Santa Maria della Misericordia, posteriormente Basílica e hoje monumento histórico e cultural.

Ao mesmo tempo, pouco antes do nascimento de Mattheo Ricci, em 1540, fundou-se em Macerata uma Universidade. Nesse mesmo ano constiituiu-se a Companhia de Jesus, na qual Ricci entrou como noviço em Roma, onde realizou estudos.

A sua preparação para a ação missionária no Extremo Oriente foi marcada pela experiência portuguesa, uma vez que estudou em Coimbra. Tomou aqui certamente conhecimento do desenvolvimento das ações missionárias no Brasil e que foram acompanhadas por discussões a respeito de métodos acomodativos para a atração e conquista de indígenas.

Os seus estudos tiveram prosseguimento em Goa, principal centro de irradiação cristã-européia do Oriente. Em 1582, chegou a Macau, onde passou a estudar o chinês e a cultura chinesa. Ricci tomouaqui certamente conhecimento das experiências passadas pelos portugueses vindos de Niangpo, com a sua intensa tradição mariana de antigas raízes e com a veneração chinesa da virgem do mar e da rainha dos céus, a divindade da Misericórdia (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Comercio-Cultura-China-Brasil.html).

Assim como na sua terra natal, Ricci encontrou, em contexto cultural do Extremo Oriente veneração que se assemelhava àquela de Nossa Senhora da Misericórdia.

A entrada na China através do Budismo

Em Macau, Ricci foi obrigado a constatar que a entrada no Império Chinês não era possível, nem mesmo oportuna. Assim como o seu companheiro Michelle Ruggieri escreveu ao Geral da Sociedade de Jesus, tiveram que "se fazer de chineses para ganhar chineses".

Esse método exigiu primeiramente integração exterior no universo chinês para que pudessem alcançar uma posição que possibilitasse, a partir de dentro, agir no sentido de desencadear um processo de mudança.

O primeiro caminho era o de fazer-se passar por monges budistas, uma vez que eram religiosos e, sobretudo, estrangeiros que ainda não dominavam suficientemente o idioma chinês. Respeito e autoridade podiam ser esperados a partir de um modo de vida exemplar e de espiritualidade demonstrada por orações.

Esse caminho baseava-se antes em similaridades externas no modo de vida e do proceder no quotidiano e na oração. Tratava-se, assim, de mostrar e viver semelhanças em ações religiosas dos cristãos e dos monges budistas. Como os budistas valorizavam o celibato, a vida conventual, a contemplatividade e a meditação, e conheciam também um culto diversificado e rico, com veneração de imagens, os missionários cristãos puderam integrar-se exteriormente. Tomaram o hábito de monges budistas e, assim vestidos, puderam infiltrar-se no mundo chinês.

Zahoqing em Guangzhou: região de águas e de religiosidade feminina

Se os antigos assentamentos portugueses haviam sido em Fujian, Ricci e Ruggieri entraram na China por região a cuja esfera cultural pertencia também Macau. Em 1583, estabeleceram-se em Zhaoqing, cidade localizada ca. de 90 km de Guangzouh, Província Guangdong, centro do idioma cantonês (Yue).

A região é marcada pelas águas de um rio que rodeia a cidade por três lados, o rio Ocidental, levantando-se ao norte uma colina. Esse rio desemboca no Rio das Pérolas. Trata-se, assim de uma paisagem de grande carga simbólica, marcada por regiões baixas aquosas e a montanha ao Norte, apropriada às imagens relacionadas com o culto da mãe das águas e da rainha dos céus. Zahoqing possui um dos mais tradicionais templos budistas do Sul da China, o Templo Mei'an de monjas, fundadono ano 996, o que indica o significado da mulher no universo religioso local.

Os religiosos ocidentais vestidos de budistas passaram a ser visitados por piedosos chineses que viam na imagem que possuiam de Nossa Senhora da Misericórdia uma forma de expressão de Guanyin (Kuan Yin), a divindade da Misericórdia. A aparência jovem, bela e serena de Mattheo Ricci e os seus gestos, caracterizados como suaves e meigos, vieram de encontro a expectativas budistas de expressões de paz e harmonia em pessoas de profunda espiritualidade.

A aceitação dos religiosos estrangeiros deu-se, assim, através de interações da tradição da divindade do mar cultuada sobretudo no Sul da China, entre pescadores e navegantes, com aquela de Maria, em particular na forma da Misericórdia que havia ouvido as súplicas do habitantes de Macerata em época de perigo de morte.

O reconhecimento dessas similaridades apenas tornou-se possível através de expressões e práticas populares relacionadas com Maria na Europa, sobretudo aquelas do mistério da Imaculada Conceição e da Assunção, assim como a de Nossa Senhora da Luz ou das Candeias, marcadas por festividades em praias, no mar e nos rios, com luzes e flores.

Assim interpretados como monges vindos de longe que se dedicavam sobretudo ao culto de Guanyin/Kuan Yin, os missionários jesuitas, para quem os fins justificavam os meios, tiveram tempo para adaptarem-se aos costumes chineses e para o aprendizado da lingua. Vivendo como monges fora dos muros da cidade, não perturbavam a ordem social, sendo, assim, tolerados pelas autoridades chinesas, acostumadas a ver monges estrangeiros em círculos budistas.

Recitações Budistas e Canto Gregoriano no caminho "aplicado"

Um fator que favorecia essa reinterpretação do culto mariano pelos chineses a partir de uma imagem-tipo percebida como comum era o Canto Gregoriano. Como Matteo Ricci salientou, os cristãos se assemelhavam aos budistas no canto, uma vez que também os monges budistas cultivavam uma recitação entoada que, singularmente, muito se parecia com a salmodia. Ricci via similaridades até mesmo na prática de execução, dizendo que os budistas cultivavam o canto antifônico, em dois grupos, "alla Gregoriana".

Essa semelhança entre o Gregoriano e o canto budista foi entendida por Ricci como um testemunho da difusão do Cristianismo na China em tempos apostólicos e expressão de um parentesco fundamentado nas origens do Budismo chinês, ou seja, do Mahayana ou do "Grande Veículo".

Segundo Ricci, quando os chineses souberam que o Evangelho havia sido trazido para o Industão pelo apóstolo Bartolomeu, enviaram uma embaixada à Índia para trazer esse conhecimento à China. Ricci refere-se aqui, provavelmente a uma embaixada da época Han tardia, enviada pelo Imperador Ming-ti (58-71) à Índia, de onde trouxe livros budistas e monges. Esses livros estariam segundo Ricci ainda influenciados por tradição do pensamento da Antiguidade, sobretudo de Demócrito (460 A.C.).

A concepção, segundo a qual os órgãos dos sentidos apenas possibilitam um conhecimento incompleto, relacionar-se-ia com uma atitude negativa com relação ao mundo perceptível pelo sentidos, com uma tendência à reclusão do mundo exterior e uma vida ascética. Segundo Ricci, a tradição budista estava marcada pelo pitagoreísmo, o que explicava a crença na migração de almas  até a superação final do ciclo de reencarnações.

Essa explicação de Ricci, correspondente à idéia generalizada na Europa de que o Cristianismo havia sido levado a todos os povos pelos apóstolos, o canto budista não apenas remontaria ao cantochão, mas este já teria existido à época apostóilica, ou seja, tinha raízes na Antiguidade bíblica.

O reconhecimento do significado do Gregoriano por Ricci nesse caminho acomodativo não pode ser suficientemente avaliado. Para êle, como jesuíta, esse reconhecimento representou uma revisão de posições distanciadaas relativas ao canto, o que era uma das características da Sociedade de Jesus.

Esta, diferentemente de outras ordens, diferenciava-se justamente por dar menor importância ao canto na vida religiosa, distinguindo-se pelo fato de ter procurado e alcançado a dispensa do canto das horas do ofício. Não apenas o fator pragmático do uso do tempo assim empregado no canto das horas para a militância desempenhou aqui um papel, mas sim a diferente concepção do significado da sacralidade do canto como parte integrante da ação litúrgica e da oração que caracterizava as ordens mais antigas.

Essa dispensa do canto em comunidade e o evitar-se um acento maior do ensino musical nas atividades missionárias foram constantemente pontos de importância na correspondência entre missionários do Brasil, da Índia e as autoridades da Companhia na Europa. O reconhecimento do significado da música para ganhar a simpatia e atrair pessoas de outras culturas teve nas diferentes regiões do globo distintas características, foi, porém, uma constante que levou à mudança, na prática, de uma das principais peculiaridades da militância jesuítica.(Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/131/Goa-Colegio_de_Sao_Paulo.html )

Constatação da inconveniência do caminho aplicado do Budismo

O caminho de ação transformatória a partir do interior da cultura chinesa através do Budismo demonstrou-se, porém, apesar de suas possibilidades, como desfavorável para o alcance dos objetivos.

Esses puderam perceber que se encontravam aqui em círculo da população desprivilegiada, por um lado por atuarem no âmbito de devoção popular de Guanyin/Kuan Yin, por outro pelo fato de serem vistos como monges budistas e, ainda mais, vindos do Exterior.

Havia, assim, marginalizações por diferentes razões: dentro do Budismo pelo acento dado a uma forma popular de culto, e dentro da sociedade chinesa de esferas sociais mais elevadas pelo fato da vida monacal budista ter origens externas.

Os monges budistas, que haviam deixado as suas famílias, não pertenciam no sentido mais estrito à sociedade chinesa, estruturada segundo princípios confucianos nos quais o prolongamento da linha genealógica adquiria particular relevância, sendo a sociedade organizada em eruditos, camponeses, artesãos e comerciantes.

Os missionários viam-se, como os monges, sujeitos às autoridades locais, não podendo agir na vida pública, privilégio dos eruditos confucianos.

Como pode ser observado ainda no presente - como no caso do Instituto Europeu de Budismo Aplicado acima mencionado - também o Budismo expandiu-se através dos séculos na China não tanto por caminhos da missionação declarada, mas antes pelo da vivência da não-pretensão e da irradiação de serenidade, modéstia e inocuidade. Fazendo-se de budistas, os missionários cristãos integravam-se nesse caminho que o Budismo trilhava.

A questão que se levantou a Ricci não foi, porém, de natureza ética que se preocupasse com um procedimento que constituia uma infiltração subreptícia. A decisão crucial de Ricci de mudar de estrategia decorreu do reconhecimento das poucas possibilidades para alcançar poder e força de influência a partir de uma acomodação à esfera cultural budista.

Abandonando o método baseado na similaridade de aparências e imagens, o missionário decidiu seguir o caminho da erudição e da ciência, que era a esfera mais considerada na estrutura social chinesa.

Assim, deixou de usar o hábito de monge e passou a vestir-se como erudito confuciano. Na tradição da Academia, então atual no meio italiano de sua época, passou a procurar o diálogo com os eruditos e cientistas confucianos no espírito de um culto à amizade entre aqueles que procuram o Conhecimento e a Sabedoria. 

Entre 1595 e 1598, escreveu um livro sobre a amizade, no qual salientou o seu significado, podendo aqui basear-se na tradição do pensamento ocidental. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Confucionismo.html)

Antonio Alexandre Bispo


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "O Budismo aplicado nas relações sino-ocidentais. Possibilidades e problemas de um caminho de aproximação cultural. Compaixão Divina no Extremo Oriente e Nossa Senhora da Misericórdia." Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 137/3 (2012:3). http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Budismo-aplicado.html




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.