Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________

Foto A.A.Bispo©

Foto A.A.Bispo©

Foto A.A.Bispo©

Foto A.A.Bispo©

Foto A.A.Bispo©

Foto A.A.Bispo©

Foto A.A.Bispo©

Foto A.A.Bispo©

Foto A.A.Bispo©

Foto A.A.Bispo©

Foto A.A.Bispo©

Foto A.A.Bispo©

Foto A.A.Bispo©

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 137/2 (2012:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2886


A:B.E.




Comércio marítimo em processos culturais sino-ocidentais
Encontros de expressões tradicionais de navegantes chineses e portugueses:
a virgem das águas e rainha dos céus no litoral da China
à cidade de Santos pelos 10 anos de geminação com Ningbo



Ciclo de estudos em Peking/Beijing e Manchester
no ano da participação da China como nação convidada na Feira de Hannover 2012
Pelos 500 anos da presença portuguesa na China
em atualização de trabalhos da A.B.E. em Hong Kong e Macau
à época da transferência de soberanias européias à China (1996)

 

O estudo das relações entre a China e o Ocidente sob a perspectiva dos Estudos Culturais parte, devido a tradições disciplinares, sobretudo de aproximações determinadas pela pesquisa empírica de fatos no presente. A atenção é dirigida privilegiadamente a expressões tradicionais de uma esfera compreendida como popular e tradicional da cultura.

Também o início dos estudos respectivos no Brasil partiu da Etnologia e do Folclore, tendo sido o interesse despertado por temas relacionados com a China em meados da década de 60 pela existência de considerável comunidade de imigração chinesa ou de ascendência chinesa em São Paulo, caracterizando a fisionomia de bairros e contribuindo à diversidade cultural da metrópole.

Essa aproximação a partir de situações imigratórias, de chineses fora da China, marcou as observações e as reflexões através das décadas, fato que levou à consideração de bairros chineses em várias partes do mundo, como relatado em números anteriores desta revista. (Veja, entre outros: http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Mazu-em-Singapura.html; http://www.revista.brasil-europa.eu/126/Japoneses-e-chineses-no-Havai.html; http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Chineses-do-Estreito.html)

O reconhecimento da necessidade de uma renovação dos estudos culturais, que levou, em 1968, à fundação da entidade que hoje constitui a organização Brasil-Europa, pôs em questão definições de áreas disciplinares através de categorizações de esferas culturais e dirigiu a atenção a processualidades. Essa orientação veio de encontro também a exigências de situações marcadas pela imigração, onde se impunham sobretudo estudos de mudanças culturais nas suas relações com a manutenção de tradições com a terra de origem e com os caminhos integrativos na nova sociedade.

O direcionamento teórico a processos e a atenção dirigida a imigrações implicam em considerações de decorrências no tempo e, assim, da história. Compreende-se, assim, que a preocupação por um relacionamento mais estreito e refletido entre a pesquisa empírica e o estudo de fontes documentais nos estudos culturais estivesse às bases do movimento que preconizou a renovação dos estudos culturais. (Veja http://akademiebrasileuropa.de/Chroniken/1966-Geschichte-Volkskunde.html )

Se a consideração adequada de processos históricos é necessária na pesquisa cultural empírica, no caso de situações de imigração e das relações atuais da China com o Ocidente são os conhecimentos obtidos da observação empírica que abrem novas perspectivas para a interpretação de fontes históricas. Esses conhecimentos aguçam a acuidade na leitura de textos, fazendo com que se atente a dados que poderiam permanecer negligenciados, possibilitando a percepção de sentidos subjacentes.

A importância e a necessidade de uma leitura assim preparada pela experiência dos estudos empíricos no concernente a fontes históricas do início da história da presença de portugueses na China foram salientadas no âmbito de estudos voltados à história da recepção cultural em contextos globais e em suas reciprocidades na década de 70, o primeiro grande empreendimento de pesquisadores culturais brasileiros na Europa. (A.A.Bispo et alii, Collectanea Musicae Sacrae Brasiliensis, Roma: Urbaniana University Press 1981)

As preocupações foram primeiramente voltadas sobretudo à leitura adequada de uma das principais fontes para o estudo desses primeiros tempos das relações entre a China e o Ocidente e que por muitos era desvalorizada como fonte de informações históricas fidedignas: a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. (Peregrinação de Fernam Mendez Pinto, Lisboa 1614; ed. Alvar da Costa Pimpal e César Pegado, Porto, 1944-46; estudada em A.A.Bispo, Grundlagen Christlicher Musikkultur in der außereuropäischen Welt der Neuzeit II, Musices Aptatio 1987/88, Rom e Colonia 1989, 588 ss.)

A discussão dessa fonte e a sua leitura adequada foi possibilitada graças à colaboração do Anthropos-Institut e outras instituições da Sociedade Steyler (SVD), mantenedora da Haus Völker und Kulturen in St. Augustin, Bonn, com biblioteca, arquivos, museu especializado e, poucos anos mais tarde, com o China-Zentrum.

Igreja da Madre de Deus/S.Paulo.Macau.Foto A.A.Bispo©
Encontro de culturas de homens do mar do Extremo Oriente e do Ocidente

Ponto de partida para o estudo dos fundamentos de processos desencadeados pela entrada dos portugueses no espaço do Extremo Oriente é, sob a perspectiva dos estudos culturais, a consideração de que se tratou de encontros de homens marcados pela vida do mar.

Do lado português, esses homens eram navegantes que tinham realizado longas viagens marítimas, de muitos meses, e que permaneciam em viagem, dirigindo-se de porto a porto e vivendo em universo geográfico-cultural que passava a ser determinado por rêdes ancoradas em portos das várias regiões do globo.

Eram homens que traziam culturalmente a tradição de direcionamento ao mar de Portugal, a "Terra de Santa Maria", de pescadores e marujos, de comércio pelo mar e de soldados-marinheiros. Os pontos alcançados no Oriente eram litorâneos, portos, e também assim foram os assentamentos, as feitorias e as praças de defesa. Os povos encontrados eram consequentemente aqueles de portos, frequentados por comerciantes de diversas nações, entre êles chineses.

Do lado chinês, eram comerciantes do mar inseridos em multisecular tradição chinesa de navegações, atuando em  rêde ampla e diversificada de contatos comerciais. O comércio chinês alcançava a Índia, o que permitiu a Vasco da Gama levar e oferecer porcelana chinesa à rainha de Portugal, em 1499, e que Pedro Álvares Cabral, em 1500, após ter descoberto o Brasil, pudesse ser acomodado, na Índia, em Chinacota, antigo forte de chineses. (Beatriz Basto da Silva, Cronologia da Historia de Macau, século XVI, Macau: Direcção dos Serviços de Educação 1992, 15)

Alcançar a China surge como um dos principais objetivos, talvez a finalidade por excelência dos empreendimentos portugueses no Oriente. Em 1505, D. Manuel menciona a Malchina ao Rei da Espanha e, em 1508, manda Diogo Lopes de Sequeira não apenas descobrir Malaca, como também obter informações sobre os chineses.

Na rêde comercial dos chineses, Malaca era um dos pontos terminais, elo de vinculação com a rêde de comércio de comerciantes islâmicos e que seriam combatidos pelos portugueses (http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Afonso-de-Albuquerque.html). A ação portuguesa em Malaca relaciona-se sob diferentes aspectos com a navegação comercial chinesa: os portugueses ali encontraram juncos chineses já em 1509, e Ruy d'Araújo a êles referiu-se em carta ao rei português - tinha sido envolvido em ataque contra o primeiro português que estivera nas ilhas Léquias (Liu Kiu), habitadas pelos gores ou gaores. 

Em 1511, quando da conquista de Malaca, chineses de cinco juncos ofereceram-se para auxiliar os portugueses, uma proposta recusada por motivos políticos e porque desejava-se que os chineses testemunhassem o valor militar português, possuidores de armas ocidentais, um ato de significado estratégico fundamental, inaugural do papel de apoio à defesa dos chineses contra piratas que os portugueses desempenhariam no litoral da China e que possibilitaria o seu assentamento para operações comerciais.

A história dos contatos dos portugueses com o antigo Sião a partir de Malaca relaciona-se também com a navegação chinesa, uma vez que chineses que retornavam à China ofereceram-se para conduzi-los. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Sudeste-da-Asia-Brasil.html) Esses chineses transmitiram informações de tal forma favoráveis sôbre os portugueses ao Imperador chines que este não atendeu ao pedido de auxílio feito pelo embaixador em Malaca. Esse fato que indica ter-se já reconhecido a oportunidade da chegada de portugueses em situação difícil ao comércio causada pela ação de piratas nos mares chineses. Afonso de Albuquerque, após a tomada de Malaca, em 1511, enviou mensageiro à China para comunicar o feit (João de Barros, Asia, Década III, II, cap. VI). Joaquim Veríssimo Serrão, que considera pormenorizadamente esse desenvolvimento, salienta que Albuqueruqe, por ter tido a ajuda de chineses, pronto acedeu a estabelecer alianças com o Celeste Império; se em 1512 os juncos de Cantão estiveram ausentes de Malaca, já em 1513 o governador podia escrever ao rei português anunciado que o chineses eram amigos. (Joaquim Verissimo Serrão, Portugal en el mundo: Un itinerario de dimensión universal, Madrid; Mapfre 1992, 286 ss., 292)

Em 1513, Jorge Álvares foi mandado à China a partir de Malaca, levantando padrão real na ilha de Tamão (Tamau, Tamang, Tun-Mun) provavelmente Lin-Tin, nas suas proximidades ou em porto na ilha Sanchoão. (Luís Keil, Jorge Alvares, o primeiro português que foi à China, 1513, Macau: 2a. ed. 1990, 7-9).

Em 1514, Rui de Brito Patalim, capitão de Malaca, enviou, junto com juncos chineses, um barco à China com cinco portugueses; transportava carregamento de pimenta e buscava mercadorias nos portos chineses. ("Carta de Rui de Brito Patalim a Afonso de Albuquerque, 6 de janeiro de 1514", Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente I, 40)

Em 1514, Tomé Pires completou, a partir de informações indiretas, a sua Suma Oriental em Malaca, contento uma descrição da China e dos chineses, identificando a China como Catai e Pequim como Cambaluc, nomes conhecidos no Ocidente. (Armando Cortesão, Primeira Embaixada européía à China: o boticário e embaixador Tomé Pires e a sua Suma Oriental, Lisboa, 1945; A Suma Oriental de Tomé Pires e o livro de Francisco Rodrigues, Coimbra, 1978)

Em 1515, Fernão Peres d'Andrade partiu de Lisboa na esquadra de Lopo Soares de Albergaria com a missão de se dirigir a Cantão com dois navios, comandados por Lopo Falcão e Jorge Mascarenhas e, em 1522, os portugueses estabeleceram por fim uma carreira regular de navios de Cochim para a China. (Beatriz Basto da Silva, op.cit. 21)

Estabelecimento português em Fujian e em Ningbo - cidade parceira de Santos

Segundo Fernão Mendes Pinto, um assentamento português, estabelecido em Liampó (Ningpo, Ningbo) teria sido destruído em 1522. De acordo com outra fonte (Fr. Gaspar da Cruz), o estabelecimento de Chincheo (Foukien, Fujian) foi atacado pelos chineses em 1548/9. Liampó/Ningbo ainda teria existia nessa época, supondo-se porém já estar em declínio; segundo outras indicações foi destruído em 1544. (Beatriz Basto da Silva, op.cit. 29)

Com o ataque a Chincheo, os seus habitantes passaram provavelmente para Lampacau, instalando-se em Hao-King, na baía de Hiang-shang, onde levantou-se assentamente protegido por muralhas. Em 1550, fechou-se um acordo para a realização semestral de feira comercial em Cantão; os portugueses obteram monopólio comercial entre a China e o Japão. (ibidem)

O quadro que se obtém dos dados, ainda que esparsos e levantando dúvidas, é de que já ao redor de 1520 existiam assentamentos portugueses em importantes regiões portuárias da China, sobretudo em regiões que, na desembocadura de rios, eram marcadas pela exportação de produtos vindos do interior.

Devido a expulsões, seguiu-se um recuo, passando as operações comerciais a concentrar-se na região de Cantão, em Lampacau e, posteriormente, em Macau, cidade que se tornou o centro da presença portuguesa no Extremo Oriente por séculos.

Apesar da precariedade de dados documentais, a consideração de Macau nos estudos culturais não pode deixar de considerar processos culturais anteriormente postos em ação em assentamentos anteriores no litoral chinês.

O significado de Liampó/Ningbo baseava-se no fato de no seu porto processar-se o comércio de Hangzhou com outras regiões do mar da China e mesmo com o Exterior, cidade que já havia sido capital à época da dinastia Song (960-1279), mas que entrara em decadência devido à ação de piratas a partir da primeira metade do século XV.

Transformando-se em centro de defesa contra a pirataria, essa cidade conseguiu recuperar-se comercialmente, mantendo transações com as Filipinas e Taiwan. Como haviam demonstrado em Malaca, os portugueses, com as suas armas mais eficientes, vieram de encontro a essa necessidade de combate a piratas, e, como acima mencionado, nesse apoio militar aos chineses teria residido o principal fator que permitiu assentamentos e a condução de operações comerciais. Em 1542, os portugueses puderam inaugurar o comércio com o Japão a partir de Liampó/Ningbo.

Quanzhou foi provavelmente o maior porto do Extremo Oriente. Dele partiram, em 1405, as expedições do admiral Zheng He. O desenvolvimento econômico da cidade levou a que se tornasse um centro manufatureiro, fazendo com que Fujian viesse a ser uma das mais prósperas regiões da China. O já antigo cosmopolitismo da região pode ser avaliado pelo fato da cidade ter chegado a ser destruída em rebelião de estrangeiros; com a a perda de calado do seu porto e com a ação de piratas nas costas, o comércio marítimo foi vedado. Também em Fujian foi a utilidade do poder militar português na defesa contra a pirataria que possibilitou o estabelecimento de vínculos e o desenvolvimento de operações comerciais.

Para o estudo de processos culturais que se desenvolveram nessas regiões do litoral chinês deve-se dar particular atenção ao fato de que as bases de operações comerciais se localizaram sobretudo em portos situados em desembocaduras de rios que possibilitavam elos com o interior e, assim, de conexão entre rêdes fluviais e marítimas.

Nesse sentido, um significado especial cabe ao fato dos portugueses terem entrado no espaço determinado pela desembocadura do Yangtze/Jangtsekiang (Cháng Jiang), o maior rio do Oriente e, em comprimento, um dos maiores do mundo, seguindo ao Nilo e ao Amazonas.

O Yangze, que divide o país em Norte e Sul, desempenha um papel de extraordinária relevância na história e na cultura da China, e o fato de suas águas correrem das alturas do Tibet e se despejarem no mar deve ser considerado com atenção no estudo de expressões religiosas relacionadas com a linguagem de imagens de tanto significado para as regiões litorâneas da China.

Cultura tradicional de comerciantes de mar chineses: o culto à virgem das águas. Uma fonte ainda não considerada

As práticas de culto da divindade das águas dos homens de mar na China foi de tal significado que tornaram-se amplamente conhecidas no Ocidente. Até mesmo na Europa Central de língua alemã o culto à divindade do mar permaneceu através dos séculos conhecido como uma das principais características da cultura popular chinesa.

Um exemplo expressivo da difusão desse conhecimento em amplas esferas da população de língua alemã é um artigo publicado num periódico publicado em alemão em Praga, então pertencente ao Império Austro-Húngaro e que procurava oferecer a leitores interessados um panorama do universo a partir sobretudo de tradições culturais de diferentes países.

Sob o título "Os usos de navio dos chineses", essa revista oferece, ao lado de uma gravura ilustrativa, um texto dedicado à deusa do mar chinesa, salientando de início que os chineses mantinham grande observância a seus usos da vida marítima, tidos como indispensáveis para o bom sucesso das viagens. Eram, assim, mantidos religiosamente através dos séculos ("Die Schiffsgebräuche der Chinesen", Panorama des Universums, Praga, 8/1836, 58).

O texto informa que a deusa do mar chamava-se Ma-tsu-po, podendo ter várias denominações, ou seja a divindade até hoje - e mesmo de forma crescente - venerada em várias regiões da China, da imigração chinesa e de outras regiões do Extremo Oriente (Ma, Mazu, Mazu-po), como estudado em várias regiões da imigração chinesa e relatado nesta revista, em
particular em Singapura e na Malásia (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Mazu-em-Singapura.html; http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Cultura-luso-siamesa.html; http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Kuan-Yin-em-Penang.html).

Para além dessa denominação que indica ser a divindade a mãe magna, o texto indica que era também venerada como Tin-hao, a rainha dos céus. As concepções relacionavam-se assim com um movimento que une o fundo do mar às alturas do céu.

Correspondendo à narração popular, essa divindade salvava os homens do afogar-se nas águas, ouvindo os seus pedidos e as suas implorações.

A fé na proteção da divindade que escuta, que ouve, que tem compaixão daqueles que esperam que tudo corra bem ou que se encontram em atribulações, surgia como fundamental ao bom desenvolvimento das viagens e ao alcance da terra firme para as operações comerciais.

Como os leitores eram informados, ela teria sido uma mortal que vivera em passado remoto em Fujian Sheng (Fukien), província à qual pertence também uma ilha de nome Matsu e onde se encontra um de seus principais templos.

Os navegantes a ela se dirigiam à rainha dos céus no presente, esperando a sua ação protetora no hoje, para explicar a sua posição celestial, porém, tinha sido necessário supor ou projetar a sua existência terrena no passado, contextualizando-a na área da desembocadura do Yangtze.

O texto indica o local histórico de Ma-tsu-po, mencionando Fuzhou, a capital de Fujian e, ao mesmo tempo, a principal cidade portuária do litoral sudeste da China, a porta para o Pacífico.

Nesta interpretação, tratava-se de um edifício de concepções que parte do presente, do qual se constroem então situações que o pressupõem no passado e que implicam em ocorrências futuras. O passado surge como negro, marcado pelo perigo do afogamento nas águas, o que também pode ser compreendido no sentido figurado, ou seja, o do perecimento na viagem pelo mar da existência.

Os marujos chineses observam nos seus barcos um grande número de usos supersticiosos e que são praticados de forma precisa. A deusa do mar chama-se entre os chineses Ma-tsu-po, mas também tem o nome de Tin-hao, rainha dos céus; ela é venerada como virgem, que teria vivido há muitos séculos na cidade Fu-Kien, no distrito Fu-tehao. Com esforço heróico e por uma espécie de milagre salvou o irmão que estava para afogar-se, e desde então é venerada pelos chineses sob todo o tipo de designações. (loc.cit.)

Como as descrições das práticas de culto no texto permitem reconhecer, o navegante chinês compreendia-se, hoje, como aquele "irmão" que fora salvo no passado dos perigos de morte do mar. Uma complexa relação de concepções que partem do presente e suas projeções no passado e que surgem como o seu pressuposto, assim como de interações entre dimensões figurativas do mar e seus perigos com a realidade marcavam as práticas tradicionais dos navegadores chineses.

A imagem da divindade no trono dos céus, que escuta os pedidos e que assim oferece o fundamento da fé necessária às viagens marítimas - e ao comércio - era levada em todas as embarcações, perante à qual acendia-se uma vela. Esse seu elo com a luz expressava-se também na profusão de enfeites brilhantes colocados no seu nicho e com a púrpura, a cor amarela, dourada ou vermelha. Esse brilho também era indicado nos enfeites, jóias e adereços femininos da divindade, assim como nas tiras e barquinhos de papel dourado presentes nas expressões tradicionais.

Em todo barco encontra-se uma imagem dessa deusa protetora, perante a qual uma luz é acesa dia e noite. Outras divindades menores, de aparência horrível, a rodeiam, que é sempre apresentada sentada. Coloca-se a seus pés taças de chá como oferendas, e o seu nicho é ornamentado com todo o tipo de enfeites brilhantes. (loc.cit.)

O ato de levar a imagem da mãe d'água em procissões a um templo e depois ao barco que se preparava para partir é descrito expressivamente, salientando-se as prostrações daqueles que guiavam o navio e as festas, com jogos, música e apresentações de artistas.

Levando-se em consideração que em grandes portos, tais como o citado de Fuzhou, sempre havia barcos que partiam, ganha-se a imagem do ambiente festivo que necessariamente reinava nessas cidades portuárias. Era, assim, um culto marcado por alegria, a alegria na existência de uma divindade que percebia, que ouvia e atendia, de compaixão e misericórdia, que havia sido mortal mas já não se encontrava sujeita à lei da necessidade, às exigências do comer.

Quando um navio está pronto para largar velas, a imagem é levada a um templo próximo; ali, as oferendas são colocadas a seus pés, o pilôto atira-se repetidamente ao chão e o capitão apresenta-se em uniforme completo perante a imagem. Essa solenidade é encerrada com uma festa, consumindo-se a carne que foi ofertada. A boa deusa, que não tem desejos maiores de alimentos terrenos, deixando tudo a seus veneradores, é colocada sobre um palanque para apreciar os folguedos e as artes de cantores de rua e comediantes chineses. Por fim, é levada ao som da música ao barco, e aos júbilos dos marujos, que recebem os restos da refeição, é colocada no seu nicho. (loc.cit.)

Com referência às práticas a bordo, o texto menciona defumações de todo o navio ao nascer do sol e o consumir de alimentos ofertados em obediência aos espíritos da terra e do ar em ocasiões de perigo representados por esses elementos.

O seu serviço é confiado a um serviçal do templo, que jamais ousaria aparecer à frente da deusa sem ter lavado a face. Ao amanhecer, atira algumas pitadas de incenso num turíbulo, que leva por todo o navio, até mesmo à cozinha. Quando o junco passa por um monte ou quando o vento é desfavorável, faz oferendas aos espíritos da montanha e do ar, que consiste então, e somente neste caso, de porcos e aves. Quando a oferenda está pronta, aquele que oferece ajunta um pouco de água e frutas, queima papel dourado, atira-se várias vezes ao chão e exclama aos marujos: obedeçam aos espíritos! Os marujos, que até então estavam de joelhos, levantam-se de repente e comem apressadamente os alimentos oferecidos.

Na descrição, torna-se claro que Ma era invocada como a Senhora da guia, esperando-se a sua proteção para o bom direcionamento da nave, sendo as oferendas feitas nas partes do navio e nos instrumentos mais imediatamente relacionados com o rumo. Para além dos elos de Ma com a luz também se percebe aqueles com o odor ou perfume exalado do incenso e do tabaco fumado pelos marujos.

Um dos perigos maiores para os juncos a vela dos chineses era a calmaria que fazia parar o barco, impedindo-o de alcançar o porto, o que era visto como expressão de um descontentamento de Ma. Esta era não só aquela que se encontrava no fundo do mar, mas também a das águas correntes, a dos rios que nele desembocavam. A certeza que a rainha dos céus tinha misericórdia representava o fundamento de um estado de espírito marcado por segurança, confiança e paciência, mesmo em situações de estagnação e atribulações.

Quando se entra na embocadura de um rio, jogam-se junto ao volante continuamente pedaços de papel na água. A maior parte das oferendas são feitas no compasso, coberto com uma peça vermelha, também presa no remo de condução e na âncora. Além do mais, queima-se ao lado da bússola uma quantidade de incenso e pedacinhos de papel, cortados como juncos; também se acha ao lado do compasso sempre tabaco, um cachimbo e uma lâmpada acesa, dos quais todos da tripulação podem-se servir. Havendo calmaria, os marujos atiram conjuntamente ao mar papel dourado em forma de juncos.
Se o vento não quer soprar, acredita-se que a deusa do mar esteja de mau homor, e chama-se então os demônios do ar; se também isso não tiver sucesso, então os marujos param de fazer oferendas e de rezar, e esperam com paciência o que virá. (loc.cit.)

Culto mariano de portugueses e tradições chinesas na região de Ningbo

Os portugueses tiveram necessariamente contato com expressões tradicionais de marinheiros desde a sua chegada ao Oriente, em particular a partir de seus contatos e conquista em Malaca, quando nos relatos sempre surgem referências a juncos chineses e a viagens de portugueses em barcos ou juntamente com juncos chineses. Os portos que alcançaram e onde estabeleceram pontos de ação eram, sobretudo em Fujian, centros por excelência do culto da divindade do mar.

Os portugueses que ali se assentaram, tendo já pela sua própria cultura costumes relacionados com o mar, experimentaram reintensificações de tendências festivas e intercomunicações de imagens e práticas.

Para os chineses, acostumados com a existência de diferentes formas de expressão e designações da divindade do mar, difundida em todas as regiões marítimas por êles alcançadas, a veneração mariana dos portugueses surgia como uma outra forma de expressão do culto a Ma, havendo, assim, possibilidades de harmonizações.

O discernimento e a análise dos mecanismos desses encontros e relações oferecem-se como tarefa para reflexões, e uma base documental para fundamentá-las é a descrição que Fernão Mendes Pinto faz de festiva recepção oferecida a um capitão português - Antonio de Faria - pela comunidade de portugueses mais longínqua da China, não distante de Liampó/Ningbo. (Veja A.A.Bispo Grundlagen Christlicher Musikkultur in der außereuropäischen Welt der Neuzeit II, loc.cit.)

Essa descrição oferece a imagem de uma comunidade extraordinariamente vital, marcada pela convivência sino-lusa, onde, nas partes profanas, surgem práticas e expressões chinesas ao lado de portuguesas. A estrutura básica dos festejos pode ser facilmente reconhecida como portuguesa, correspondendo também àquela conhecida em muitos casos no Brasil.

Pelo amanhecer de um domingo, ao entrarem no porto, os portugueses que chegavam foram recebidos com uma alvorada com música vocal e instrumental, com cantos de textos apropriados à recepção, acompanhado por instrumentos. Esses, descritos como suaves, teriam sido provavelmente chineses.

A seguir, em contraste e "por desfeita portuguesa", os visitantes foram recebidos por uma folia com tambores, pandeiros e sistros. A descrição sugere que, diferentemente do primeiro conjunto, especialmente preparado e seguindo critérios de excelência, essa folia pertencia já ao repertorio de expressões populares dos portugueses residentes, agradando pela sua autenticidade ou espontaneidade.

Essa menção de folia acompanhada por tambores, pandeiros e sistros surge como sendo a primeira conhecida relativa a uma folia na China, o que indica a transplantação do repertório tradicional de expressões festivas portuguesas já nas primeiras comunidades ali surgidas.

Era formada por pessoas simples do campo que vieram nas naves, e que se acompanhavam segundo a tradição com instrumentos de couro e com o ruido de sistros; estes últimos, lâminas entrechocantes em moldura ou arco de madeira, correspondem ao que hoje no Brasil se conhece como "pandeiros de pastorís". Tratou-se, assim, de folias da terra, própria de folguedos da época de Advento e Natal, ou seja, de elemento do complexo de expressões também designadas significativamente como "cheganças".

"lhe deraõ hua boa alvorada com hua musica de muyto excellentes fallaas, ao som de muytos instrumentos suaves, que dava muyto gosto a quem a ouvia, & no cabo, por desfeita Portuguesa, veyo hua folia dobrada de tambores & pãdeyros & sestros, que por ser natural, pareceo muyto bem. Fernão Mendez Pinto, Peregrinação, ed. J. de Freitas, Aguda, Vila Nova de Gaia 1930 II, LXVIII, 14, estudada em A.A.Bispo, loc. cit.)

"Estrondo" multicultural na chegada ao cais

Segundo a crônica, os europeus, ao chegarem ao cais, foram recebidos com manifestações festivas ruidosas, com instrumentos próprios da música militar e de guarda: trombetas, charamelas, atabales, pífaros e tambores.

Para além dessa banda e de grupos de pífaro e tambor - referência esta de significado para o estudo de práticas musicais militares e de folguedo (ludarii) no mundo extra-europeu -, participaram também grupos de outras nações. (A.A.Bispo, "Divertimento e Descobrimento: O Homem Lúdico na época dos Descobrimentos", Brasil-Europa & Musicologia, Colonia 1999, 367 ss.) O cronista cita música instrumental de chineses, malaios, champaas, siameses, borneos, lequios e de outras nações. Esses grupos de tão diversas proveniências eram de mercadores que viviam no porto sob a proteção que os portugueses ofereciam contra o ataque de piratas.

Essa menção indica e elucida o papel exercido por portugueses na história de comunidades marcadas pela convivência de diferentes povos no litoral da China. Salientando que esse convívio era possibilitado pela superioridade militar e consequentemente pela proteção oferecida pelos portugueses contra corsários, explica também o significado da música militar nessas comunidades.

"... chegando ao caiz com grande estrondo de trombetas, charamellas, ataballes, pifaros, atambores & outros muytos tangeres de Chins, Malayos, Champaas, Siames, Borneos, Lequios & outras nações que aly no porto estavão à sombra dos Portugueses, por medo dos cossayros..." (Op. cit. 17)

Cortejo naval de barcas a remo com instrumentos portugueses e chineses

O relato de Fernão Mendes Pinto inclui a primeira descrição conhecida de uma procissão naval de barcas a remo do Extremo Oriente realizada ao som tanto de instrumentos portugueses como de chineses.

Esse emprêgo de instrumentos de diferentes proveniências surge como de relevância para o estudo de processos músico-culturais em contextos globais, podendo ser apenas compreendido supondo-se um já adiantado estado de convivência e interrelações culturais luso-chinesas.

"(...) acompanhado de muytas barcaças de remo, em que avia muytos instrumentos, assi Portugueses, como Chins; de maneyra q todas as embarcaçoes hiao co suas invençoes differentes, a qual milhor". (op. cit. 15)

A descrição da barca principal, com uma tributa coberta com brocado e uma cadeira de prata, lembra barcas conhecidas do Museu de Barcas Reais de Bangkok, como relatado em número anterior desta revista (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Portugueses-no-Siao.html ).

Um pormenor, porém, merece particular atenção. O cronista menciona que ao redor desse assento de honra vinham seis jovens musicistas de grande beleza, executando instrumentos musicais e cantando. Essa referência traz à memória similares práticas documentadas na Índia em procissões da festa da Imaculada Conceição, quando ninfas musicistas e cantoras participavam de carros alegóricos (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/131/Goa-Catedral_de_Pangim.html).

No caso chinês, porém, essas jovens eram musicistas chinesas de aluguel vindas de Niangbo/Liampó, que ganhavam para atuar em festas e divertimentos. O cronista menciona que ali muitos mercadores tinham-se enriquecido com o aluguel de belas jovens musicistas. Lembrando-se também aqui de práticas documentadas para o Sião (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Musica-na-Tailandia.html), pode-se supor que essas jovens tinham sido adquiridas e recebido especialmente formação musical para tais atividades.

"Encima no toldo desta embarcação vinha armada sobre seis perchas hua rica tribuna forrada de brocado com hua cadeyra de prata, & ao redor della seis moças de doze até quinze annos muyto fermosas tangendo em seus instrumentos musicos, & cantando com muyto boas falas, que por dinheyro se trouxeerão da cidade de Liampoo, que era daly sete legoas, porque isto, & muytas outras cousas se achao alugadas por dinheyro cada vez que se ouverem mister, em tanto que muytos mercadores são ricos só dos alugueres destas cousas, de que elles lá usao muyto para seus passatempos & recreações." (op.cit. LXVIII, 17)

Procissão e missa com música "antiga". Culto à Imaculada e a imagem da Rosa

O relato de Fernão Mendes Pinto oferece também dados de grande relevância para estudos da prática musical paralitúrgica e de culto mariano nas longínquas comunidades portuguesas da China.

Os recém-chegados foram conduzidos à igreja em cortejo acompanhado por vários grupos de dança e folguedos, portugueses e de outras nações, que nele participaram voluntariamente ou - como o cronista sugere - coagidos. Da descrição, percebe-se que houve o uso de todos os instrumentos disponíveis na comunidade, com predomínio de instrumentos de sôpro. Também participaram grupos de musicantes de pífaro e tambor ne tradição medieval. O cronista menciona expressamente as pelas, conhecidas da tradição da Península Ibérica.

"(...) levava diante de sy muytas danças, pellas, folias, jogos, & antremeses de muytas maneyras que a gente da terra que com nosco tratava, hus por rogos, & outros forçados das penas que lhes punhão, tambem fazião com os Portugueses, & tudo isto acompanhado de muytas trombetas, charamellas, frautas, orlos, doçaynas, arpas, violas darco, & juntamente pifaros, & tambores, com hu labarinto de vozes à Charachina de tamanho estrondo que parecia cousa sonhada." (op.cit. LXVIII, 22)

À porta da igreja, o capitão foi recebido por uma procissão de oito padres, que cantavam, alternadamente com um coro, o Te Deum laudamus. Este executava polifonia em qualidade que o cronista compara com aquela de qualquer outra capela de soberano europeu. Como em outras comunidades do espaço europeu de diferentes continentes, também na China a comunidade portuguesa tinha assim em poucos anos alcançado um nível elevado de execução musical, o que indica o papel da excelência da prática musical para a consciência e identidade desses habitantes de longínquas regiões. (Veja a respeito A.A.Bispo, Grundlagen..loc.cit.)

O exagêro de meios expressivos que se observou no cortejo e na procissão manifestou-se de forma evidente na pregação. Esta, pelo excesso retórico e pelas expressões antiquadas do sacerdote - que se encontra já há muito tempo na China -, chegou a despertar hilariedade, uma menção que permite que se reconheça também no caso chinês a tendência a exagerações em situações marcadas por labilidade cultural de comunidades em meio estranho.

O leitor atual sente-se quase que tentado a constatar expressões de kitsch no ato de culto mariano descrito por Fernão Mendes Pinto: seis meninos vestidos de anjos, com instrumentos dourados, ajoelharam-se juntamente com o sacerdote perante o altar de Nossa Sra. da Imaculada Conceição e entoaram um canto de louvor a Maria na imagem da Rosa; enquanto o celebrante exclamava entoando, com voz chorosa, "Vós sois a rosa Senhora", os meninos respondiam, "Senhora, vós sois a rosa", em discante, acompanhando-se suavemente com os instrumentos. O próprio sacerdote tocava uma "viola grande ao modo antigo" com textos adequados à ocasião, intercalando-se com o canto dos meninos.

Essa descrição, para além do seu interesse sob o ponto de vista da prática de execução, testemunha a intensidade e a emocionalidade do culto a Maria Imaculada nessa região marítima de porto da China. Ao mesmo tempo, o texto, fazendo referência à imagem de Maria como Rosa mystica, indica a transplantação de uma linguagem de imagens relacionada com a prática do Rosário e a Nossa Sra. da Assunção. Também aqui, portanto, na tradição cristã, venerava-se a virgem como estrêla do mar e rainha dos céus.

"(...)vierão seis mininos da sacrestia, em trajos de anjos com seus instrumentos de musica todos dourados, & pondose o mesmo padre em joelhos diante do altar de nossa Senhora da Conceição, olhando para a imagem com as mãoos alevantadas, & os olhos cheyos de agoa; disse chorando em voz entoada & sintida, como se fallava com a imagem, vós sois a rosa Senhora, a que os seis mininos respondiao, Senhora, vós sois a rosa, descantando tão suavemente cos instrumentos que tangião, que a gente estava toda pasmada & fora de sy, sem aver quem pudesse ter as lagrimas, nacidas de muyta devaçãoo que isto causou em todos. Apos isto tocando o Vigario hua viola grande ao modo antigo, que tinha nas mãos, disse com a mesma voz entoada alguas voltas a este vilancete, muyto devotas e conformes ao tempo, & no cabo de cada hua dellas respondião os mininos, Senhora vos sois a rosa (...)" (op.cit. LXVIIII, 24)

Sereias no serviço de mesa ao som de instrumentos musicais

Há uma referência na obra de Fernão Mendes Pinto que merece particular particular atenção sob a perspectiva dos estudos culturais, e isso também aqui independentemente de exatidão de fatos históricos. Trata-se do banquete oferecido aos portugueses após a solenidade religiosa.

Antonio de Faria e os seus foram, para a sua admiração, servidos à mesa por moças vestidas de sereias que, movimentando-se a modo de dança, eram acompanhadas ao som de instrumentos musicais, o que proporcionou muita alegria a todos. Os momentos de beber eram acompanhados pela música de um conjunto de instrumentos de sôpro e percussão.

Constata-se, portanto, uma diferença na emolduração musical do banquete: música aliciante e melodiosa com instrumentos mais suaves no servir das refeições e música de levantamento de ânimos - e provavelmente de copos - nos momentos de bebida.

Atenção especial merece, porém, a menção de que as moças que serviam estavam vestidas de sereias e que agiam a modo de dança. Essa movimentação do andar e de gestos devia ter correspondido àquelas dos seres aquáticos que representavam, ou seja, ondulantes quanto aos gestos dos braços e deslizantes quanto à parte inferior do corpo, com passos miúdos mas céleres.

Ter-se-ia, assim, um contraste entre a sensualidade feminina desse servir de sereias e o ânimo viril da música de conotação marcial nos momentos de bebida.

Para além dessas interpretações, cumpre registrar o fato inquestionável que essa referência de Fernão Mendes Pinto testemunha a imagem da sereia no contexto de um dia de festa celebrado sob o signo do culto mariano, em particular relacionado com o mistério da Imaculada Conceição e com a devoção de Maria no trono celestial.

Tem-se, assim um documento de excepcional significado para o estudo de uma linguagem de imagens que pode ser constatada em vários outros contextos europeus e extra-europeus, em particular no Oriente e no Brasil.

As moças vestidas e se movimentando a modo de sereias participaram apenas na parte profana do dia de festa, ou seja, após a celebração mariana. Correspondendo às características que vêm sendo estudadas da linguagem de imagens de tradições cristãs, tem-se aqui uma programação coerente, caracterizada pela contraposição do tipo representado pelas sereias atraentes e sensuais do banquete com o anti-tipo representado por Maria.

Essas jovens sereias não eram portuguesas, mas chinesas que, como aquelas que tinham participado nos barcos da procissão naval, provavelmente podiam ser contratadas. Segundo o texto, os portugueses, embora pasmados, tiveram muito contentamento com esse serviço, o que indica que, ainda que nele vendo uma novidade, as imagens subjacentes não lhes eram estranhas. Os chineses, teriam, assim, reconhecido as similaridades entre as suas próprias concepções relativas á virgem do mar venerada no rol das mulheres d'água com aquelas dos portugueses, possibilitando esse serviço.

"(...) as quais todas vinhãoo vestidas como sereas, que a modo de dança faziãoo o serviço da mesa ao som de instrumentos musicos, que davão muyto contentamento a que os ouvia, de que todos os Portugueses estavãoo assaz pasmados (...) & quando avia de beber, então se tocavão as charamellas, & trombetas, & ataballes (...). Levantadas as mesas (...) se forãoo para outro terreyro (...) no qual se correrãoo dez touros & cinco cavalos bravos, que foy a mais regozijada festa que se pudera ver, acompanhada de muytas trombetas, ataballes, pifaros, tambores, & de muitos antremeses de diversas invenções." op.cit. LXX, 27.

Papel dos dominicanos, culto mariano e prática do Rosário em Macau

Os portuguêses de Niangbo/Liampó que vieram a Macau, em 1557, trouxeram consigo necessariamente a experiência de processos já há muito desencadeados pelo confronto e interações de imagens e práticas festivas e de culto.

Que os próprios cristãos assimilaram práticas da religiosidade popular chinesa isso pode ser deduzido da referência de que o Frei Gaspar da Cruz, visitando os assentamentos do litoral chinês, ali encontrou êrros e idolatrias, contra êles pregando. Essa sua atuação não parece ter sido de missão entre chineses, mas sobretudo de pastoral entre os portuguêses; como Dominicano, o Frei Gaspar da Cruz tinha particular sensibilidade para observar aspectos incomuns em devoções marianas.

"Na cidade de Maccao, chamada dos portuguezes Cidade do Nome de Deos, peninsula do reino de Cantão, hum dos grandes em que se divide o imperio da China, que os portuguezes forão habitar, no anno de 1557, gouvernando o Estado Francisco Barreto, convidado pellos proprios naturaes que de Liampo os havião lançado fora, poucos annos antes, tem a religião dos pregadores huma caza da invocação de Nossa Senhora do Rozario.
Não averiguamos se forão nossos religiozos os primeiros que nesta cidade fundarão, mas he certo // que hum religiozo desta familia foi o primeiro que neste vasto imperio da China entrou e lhe levou as novas do santo evangelho. Porque ainda que quanto aos annos lhe precedeo São Francisco Xavier, não paçou o santo das portas da China, morrendo em Sanchoão no anno de 1552, mas o nosso Frey Gaspar da Cruz (de quem falamos atras e prometemos tratar neste lugar), poucos annos depois, no ano de 1556 não so entrou mas chegou a pregar em muitos portos da China, reprovando seus erros e idolatrias, com não pequeno perigo de sua vida e muito zelo da salvação de suas almas, que neste religiozo foi tão grande (...)"
  "Summaria Relaçam do que obrarão os religiozos da ordem dos pregadores na conversão das almas e pregação do sancto evangelho em todo o Estado da India e mais terras descubertas pellos portugueses na Azia, Ethiopia Oriental, e das missões em que autualmente se exercitão, com todos os conventos, cazas e numero das relligiões que de prezente tem esta sua congregação da India Oriental" Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente: India, coligida e anotada por António da Silva Rego VII, Volume 1559, Liusboa: Fundação Oriente, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Porutugueses 1994, Nr. 72, 367 ss.)

Macau, cujo próprio nome (Ma gao) indica a força da veneração da mãe d'água dos chineses, tornou-se, na sua população portuguesa, um centro da veneração mariana e da devoção do Rosário, como manifesto na denominação do convento dos Dominicanos, uma casa que teria sido fundada por Dominicanos vindos do México.

"Não forão os religiozos da congregação os que derão principio a esta caza de Maccao, porque consta que no anno de 1587, vindo de Mexico para Malina os primeiros religiosos da ordem que a ella vierão fundar com seu vigario geral Frey João de Castro, no mesmo anno se embarcou para Maccao o padre prezentado Frey Antonio Arcediano com dous companheiros, Frey Affonso Delgado e Frey Lopes para dahy abrirem caminho a sua entrada na China, que hera o fim desta jornada. Chegando a Maccao, depois de se perderem na costa da China, forão dos portuguezes e moradores da terra bem recebidos e com sua ajuda e esmolas que liberalmente lhe derão satisfeitos de bom exemplo e vida religioza destes padres, edificarão esta caza na qual começarão a receber noviços." (loc. cit.)

O convento do Rosário de Macau salientou-se pelas muitas festas que ali se celebravam e que eram mantidas pelo concurso dos portugueses, particularmente devotos de Nossa Senhora do Rosário e dedicados ao culto de santos. Em épocas em que ali viveram menor número de religiosos, essa intensa devoção popular possibilitou a manutenção do esplendor festivo das solenidades e festas profanas.

"Forão tantos os religizos que nesta caza assistirão em algum tempo que continuarão todo o choro, as suas horas, como no mais reformado convento; e posto que depois vierão ser menos não perderão de todo este costume, sendo muitas as confições a que assistem e os sermões que pregão em todo o anno, com occazião das muitas festas que nesta caza ha, em que os moradores dispendem liberalmente de sua fazend por serem muito pios e devotos dos santos e de Nossa Senhora do Rozario, que nesta caza he festeiada e servida pellos portuguezes, e a tudo accodem estes poucos religiozos que neste tempo não pação de sinco, com notavel zello e credito, entre os seculares, de quem são grandemente venerados e de seu principio athe o prezente tem esta caza e os religiozos della na mayor reputação, pello grande procedimento de seus moradores e recolhimento com que vivem que parece influe virtude a todos os que a habitão." (op.cit. 513-514)

A Nova Barca e Maria na fachada da Igreja da Madre de Deus (São Paulo) em Macau


O principais documentos visuais que testemunham a extraordinária relevância da veneração mariana para os estudos culturais no âmbito das relações entre a China e a Europa encontram-se na fachada da igreja conhecida como de São Paulo em Macau. Esta, embora em estado arruinado, é reconhecida como um dos mais significativos monumentos do patrimônio arquitetônico europeu e da história missionária cristã no Extremo Oriente, em particular da Companhia de Jesus. O colégio de São Paulo remonta à casa dos Jesuítas, fundada em 1565,

Pouco se tem considerado, porém, a importância dessas plásticas para estudos teórico-culturais de relações entre a China e o Ocidente. A ocorrência de elementos orientais nessas imagens, em particular na representação do mar e do dragão de múltiplas cabeças no contexto mariano não devem ser consideradas apenas como sugestões ornamentais sem maior significado ou precoces exemplos de influências chinesas na arte ocidental. Somente uma perspectiva de orientação teórico-cultural pode reconhecer e valorizar o significado dessas representações. Por esse motivo, essas imagens foram centro de particular atenção durante os trabalhos euro-brasileiros desenvolvidos pelo I.S.M.P.S. em Macau em 1996, em época marcada pela transferência da soberania portuguesa à China. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/China-Brasil.html)


Nessa ocasião, considerou-se sob diferentes aspectos a situação dos conhecimentos relativos à origem de Macau nas suas relações com a Companhia de Jesus. Lembrou-se que o primeiro grupo de missionários da Companhia de Jesus, instituída em 1540 pela bula Regimini Militantis Eclesiae, partiu de Lisboa em 1541, sob Francisco Xavier (1506-1552), que atuou no Oriente até 1552. Seguiram-se missionários que deixaram Portugal  sucessivamente nos anos seguintes, assim em1545, 1546, 1548 e 1551. Em 1552, Francisco Xavier partiu de Goa para a China.


Na época, o centro das operações portuguesas na China era o porto de Sanchoão (San-Choan, Sancian), local onde o „apóstolo do Oriente“ faleceu em dezembro daquele ano em modesta moradia provisória de um português.


Os chineses, que procuravam impedir a fixação dos estrangeiros, levaram à transferência dos comerciantes ao porto de Lampacao, não distante de Sancian, e que se tornou base das operações comerciais até 1557. Em meados da década, viviam em Lampacao ca. de 400 portugueses e padres, decidindo-se construir uma igreja, em 1556.


Já em 1554, acordos com Cantão permite o comércio na região do futuro Macau. Embora não havendo precisão quanto a datas, o assentamento de portugueses em Macau ter-se-ia dado em fins da década de quarenta e início dos anos 50 do século XVI.


Em 1556, alcançou-se a permissão para o estabelecimento na terra, fato consumado em 1557, data que passou a ser considerada como a da fundação de Macau.



A denominação do local até então conhecido como Hoi Kiang, indica o significado da veneração da virgem das águas e protetora dos navegantes dos chineses. A primeira referência documental ao nome de Amaquao ou Ama Cuao é de 1555.


O nome de Macau é explicado como derivado da Neang Ma, venerada por marujos da Fukien que, por terem experimentado a sua proteção, ergueram um nicho em sua honra na praia, designando-o como A-Ma, um diminutivo que parece indicar o cunho terno das concepções e expressões. Esse altar à „menininha“ em rochedo da praia passou a dar o nome ao porto (A-Ma-Kao).

A designação portuguesa de povoação do „Nome de Deus de Amacao“ indica erudição teológica. Trata-se aqui do complexo de concepções e tradições relacionado com a festa de Nossa Senhora do dia primeiro de janeiro, oitava natalina, relacionada com a rememoração da Circuncisão de Jesus. A Festa do Santo Nome de Jesus, no dia 3 de janeiro, havia sido autorizada à Ordem Franciscana poucas décadas antes da fundação de Macau, em 1530. Os Franciscanos tinham fomentado a devoção, os Jesuítas elevaram-na a festa titular da Companhia.

A complementação do nome do porto de Ma da praia, a mãezinha ou menininha, referenciando-a explicitamente com a do Santo Nome, testemunha a preocupação de  cristianização de expressões chinesas que se harmonizavam e intercomunicavam com imagens marianas. Procurou-se tornar explícita a referenciação cristocêntrica - no âmbito das concepções trinitárias -, trazendo à consciência concepções fundamentais para o pensamento teológico relativas à natureza humana e divina de Jesus e à Circuncisão. Esta, sobretudo na esfera popular, relacionava-se com a veneração da relíquia do santo prepúcio, uma vez que, com a Ascensão aos céus, foi essa pele do seu pênis a única parte do seu corpo que teria permanecido.



Esse complexo de questões tratado nos trabalhos realizados em Macau, devia ter marcado o  prosseguimento dos debates relativos à consideração teórico-cultural das relações entre a China e o Ocidente.


Para isso, nos trabalhos preparatórios dirigidos pelo editor desta revista para a instrução da representante da instituição portuguesa que assumiu a concretização, em Portugal, da iniciativa do I.S.M.P.S./A.B.E., propôs-se a consideração da imagem da fachada da igreja de São Paulo de Macau remontante aos trabalhos ali realizados como emblema do simpósio internacional a realizar-se em Lagos e Guimarães.


Infelizmente, as expectativas de um prosseguimento adequado dos trabalhos teórico-culturais inaugurados em Macau não puderam ser cumpridas devido à apropriação da iniciativa e a sua instrumentalização para fins de poder de determinados círculos eclesiásticos e de musicólogos (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/China-Brasil.html). Tornou-se, assim, necessário retomá-lo, sob diferentes aspectos e em diferentes contextos, nos trabalhos realizados pela A.B.E. nos anos seguintes.


Antonio Alexandre Bispo


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Comércio marítimo em processos culturais sino-ocidentais. Encontros de expressões tradicionais de navegantes chineses e portugueses: a virgem das águas e rainha dos céus no litoral da China". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 137/2 (2012:3). http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Comercio-Cultura-China-Brasil.html





  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.