Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________













Vegetais da Melanésia. Foto A.A.Bispo©

Vegetais da Melanésia. Foto A.A.Bispo©

Vegetais da Melanésia. Foto A.A.Bispo©

Vegetais da Melanésia. Foto A.A.Bispo©

Vegetais da Melanésia. Foto A.A.Bispo©

Vegetais da Melanésia. Foto A.A.Bispo©

Vegetais da Melanésia. Foto A.A.Bispo©

Vegetais da Melanésia. Foto A.A.Bispo©

Vegetais da Melanésia. Foto A.A.Bispo©

Vegetais da Melanésia. Foto A.A.Bispo©

Arquitetura e Musica

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 136/21 (2012:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2881


A.B.E.

Instituições em visita



O revelar do sentido oculto dos vegetais na tradição kanak e o processo criador
O homem vegetal na arte da Nova Caledônia à luz do movimento da
união do vegetal no Brasil

Centro Cultural Jean-Marie Tjibaou


Ciclo de estudos Rio 92-Sydney 2012 da A.B.E. no Pacífico Sul. Centro Cultural Jean-Marie Tjibaou, Nouméa, Nova Caledônia

 

A visita ao Centro Cultural Jean-Marie Tjibaou, na Nova Caledônia, foi um dos principais objetivos dos ciclos de estudos desenvolvidos no Pacífico Sul no âmbito da programação Rio 1992-Sydney 2012 pelos 20 anos do congresso internacional levado a efeito no Rio de Janeiro quando dos 500 anos do Descobrimento da América  (Veja Tema em Debate, nesta edição: http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Australia-Melanesia-Brasil.html).

A.A.Bispo
Esse centro já havia sido tratado, no seu significado para a arquitetura contemporânea de orientação cultural e sob o aspecto de relações entre arquitetura e música, em seminários e colóquios orientados pelo editor desta revista na Alemanha, Itália e no Brasil em 2003, 2004 e em 2006, entre êles aqueles motivados pela exposição Renzo Piano Building Workshop (Architettura & Musica/Architecture & Music, Milão: Lybra Immagine, 2002)

Construido entre 1993 e 1998, o Centro Cultural Jean-Marie Tjibaou é um dos principais projetos de Renzo Piano, arquiteto italiano de renome internacional, tendo sido alvo, na época de seu projeto e construção, de amplos debates de natureza político-cultural, etnológica e arquitetônica.

Considerado como um verdadeiro símbolo por Renzo Piano, foi resultado de debates dos arquitetos envolvidos com antropólogos, entre êles Alban Bensa, especialista da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, especialista na cultura kanak e dedicado ao estudo dos fundamentos epistemológicos do que designa como uma "antropologia de ação".

Casa kanak. Arquivo A.A.Bispo
Esse edifício é visto como ponto culminante de um movimento de décadas de valorização patrimonial indígena da Melanésia e como gesto significativo do govêrno francês para com uma cultura que muito sofreu com a colonização da Nova Caledônia.

Esse movimento teve uma de suas primeiras expressões num festival de cultura kanak realizado em 1975 e que representou uma das primeiras grandes manifestações de reconhecimento dos valores de culturas indígenas do globo.

O nome do Centro lembra Jean-Marie Tjibaou (1936-1989), de família de chefe tribal kanak, um sacerdote que, marcado pelos anelos de inculturação despertados pelo Concílio Vaticano II e tendo realizado estudos de Etnologia na Sorbonne, tornou-se líder do movimento de independência kanak da Nova Caledônia.

Foi um dos principais incentivadores da valorização da língua e do patrimônio cultural kanak, idealizando a "Agência para o Desenvolvimento da Cultura Kanak".

O centro tem como escopo não apenas o resgate e a conservação do patrimônio cultural, arqueológico e da língua kanak, mas também o da promoção das artes e do artesanato, do fomento de relações insulares e internacionais, assim como o da pesquisa.

Com a sua mediateca e suas exposições de arte contemporânea, o Centro Cultural Jean-Marie Tjibaou representa, hoje, uma das principais instituições dedicadas às artes nas suas relações com a cultura, em especial a kanak da Oceania. Essas ações são possibilitadas pelo Fonds d'Art Contemporain Kanak et Océanien, criado em 1995.

O contato in loco com o centro e com o trabalho ali realizado à luz dos questionamentos do congresso de 1992 pareceu ser de relevância para a continuidade das reflexões que guiaram os projetos desde então desenvolvidos.

Uma das preocupações centrais do congresso do Rio de 1992, dedicado aos fundamentos de processos culturais e às bases epistemológicas da sua pesquisa,  foi o da perspectivação eurocêntrica da história dos Descobrimentos e a consideração de outras visões dos processos desde então desencadeados, em particular a do ponto de vista indígena.

Em encontros realizados no Brasil e em outros países das Américas, tratou-se, entre outros aspectos, das consequências desses intuitos de consideração da perspectiva indígena para o desenvolvimento de uma museologia adequada e para a concepção de centros culturais (Veja e.o.http://www.revista.brasil-europa.eu/128/Abbe-Museum.html).

Sob esse aspecto, o Centro Cultural Jean-Marie Tjibaou adquire significado transcendente, uma vez que é a obra de arquitetura contemporânea internacionalmente mais renomada que estabelece um diálogo criativo com culturas nativas que experimentaram o contato com os europeus e as profundas mudanças que então se iniciaram.

Com essa visita, procurou-se comparar soluções encontradas no Pacífico Sul com aquelas idealizadas no contexto indígena americano, que infelizmente ainda não possui obra arquitetônico-cultural comparável a esse centro kanak.

Arquitetura de orientação cultural e sua inserção no meio ambiente

O centro é situado na península de Tinu, nas circunvizinhanças de Nouméa, tendo como uma de suas características principais a sua integração ao meio ambiente. O diálogo com a cultura construtiva tradicional kanak manifesta-se no fato de ser o conjunto composto por dez casas cônicas inspiradas nas construções tradicionais dos kanaks.

Disposto no alto de uma colina, em linha ondulada, o centro insere-se em área tratada paisagisticamente com referências à cultura nativa. As dez unidades arquitetônicas inspiradas na arquitetura kanak formam três grupos que sugerem uma aldeia com uma casa maior a modo daquela de chefes da tradição kanak. Dentre os conteúdos simbólicos desse tipo de arquitetura salienta-se aquele relacionado com a concha.

Se as grandes cabanas da cultura kanak eram de estrutura de madeira e com cobertura vegetal, Renzo Piano utilizou-se para a sua construção de estruturas de metal em técnica altamente refinada para para a regulagem eletrônica de ventos, sendo os espaços fechados com com laminados de madeira. Criou-se, assim, um edifício marcado ao mesmo tempo pela solidez e fragilidade das casas tradicionais e por similares relações entre a luminosidade e a penumbra dos interiores.

Considerou-se, aqui, que as construções kanak não eram feitas com intuitos de perenidade; utilzavam-se de recursos existentes na região e apresentavam diferenças nas várias ilhas. Entretanto, se exteriormente o projeto revela o respeito para com a cultura nativa e um diálogo criativo para com os seus princípios e significados, interiormente é marcado singularmente por concepções antes retilíneas de cunho funcionalista-pragmático, criando espaços para exposições, escritórios, lojas e salas várias.

A primeira aldeia ou cluster do conjunto é dedicada sobretudo a exposições, com uma amostra permanente sobre a cultura kanak; o caminho da visita leva à história e ao meio-ambiente, seguindo-se de exposições temporárias e local para apresentações teatrais com um auditório; um anfiteatro ao ar livre possibilita manifestações culturais abertas.

A segunda aldeia contém escritórios de pesquisadores e administradores, assim como uma biblioteca e salas de reunião; o complexo inclui estúdios para atividades artísticas, de dança e música, assim como para atividades infantis.

Entre o material apresentado, salientam-se os objetos históricos emprestados pelo Musée du Quai Branly, de Paris, expostos na "casa Bwenaado", um dos espaços que indicam os vínculos entre os vários grupos populacionais do Pacífico. A "casa Juni" é dedicada ao "espírito da Oceania", onde se trata de tradições referentes à origem do mundo e do povo do Pacífico. O "espaço Mâlep" é dedicado à vida e obra de Jean-Marie Tjibaou.

Sob a perspectiva do programa Cultura/Natureza da A.B.E.

O projeto arquitetônico e paisagístico, manifestando o intuito de percepção sensível e de estabelecimento de relações entre a arquitetura nascida do diálogo com a cultura kanak e o meio ambiente, adquire particular significado para os estudos que vêm sendo desenvolvidos no âmbito do programa Cultura/Natureza da A.B.E. (http://www.akademie-brasil-europa.org/Cultura-Natureza-Musica/index.htm).

No decorrer dos trabalhos realizados desde o Congresso de 1992, sobretudo naqueles levados a efeito no Acre e no Amazonas, foram considerados sob diversos aspectos os estreitos vínculos da cultura indígena com a natureza.

Na centro que então estava sendo criado em São Gabriel da Cachoeira, Rio Negro, Amazonas, com a participação de antropólogos da Universidade de Campinas, discutiu-se, em 1993, a necessidade e as possibilidades de consideração de técnicas construtivas e sobretudo de concepções de espaço indígena nos seus elos com o meio ambiente em edifício e áreas dedicadas ao estudo e a práticas comunitárias.

Uma especial consideração foi dada nos trabalhos decorrentes do projeto às relações entre a natureza, visões e práticas de origem indígena e a criação artística da atualidade em vários círculos no Brasil, no âmbito da "União do Vegetal" e movimentos similares.

O trabalho pioneiro realizado sôbre esse fenômeno religioso-cultural no Brasil sob a perspectiva dos estudos culturais deu-se com a pesquisa de Julieta de Andrade no Acre, na década de 70. (Julieta de Andrade, "Música e miração no Santo Dai-Me", in A.A.Bispo et alii, Collectanea Musicae Sacrae Brasiliensis, Roma: Tip. Vaticano 1981, 279-365). As relações entre "mirações", música e espiritualidade que se evidenciam de forma contextualizada nesse movimento representaram uma das justificativas para a escolha do tema "Música e Visões" para os eventos de abertura do triênio de trabalhos científico-culturais pelos 500 anos do Brasil, sendo discutidas, quanto às suas dimensões religiosas, no IV. Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira, levado a efeito na Abadia Maria Laach, Alemanha, em 1999.

As relações do espaço projetado com o meio circundante baseia-se em Tjiabou na constatação dos estreitos vínculos da cultura kanak com o mundo vegetal. Esses conhecimentos se refletem não apenas na arquitetura do edifício, mas sim também na do tratamento paisagístico da área em que se insere. Assim, as árvores e os arbustos são revelados quanto a seu significado para a visão kanak do mundo e do homem, tanto na vida quotidiana como no cerimonial.

Ao redor de cada edifício foram criadas áreas de "idéias paisagísticas", culminando com o estabelecimento de um contexto interpretativo com avenidas de cobertura vegetal na área circundante que separa o edifício da lagoa. O edifício apenas pode ser alcançado através da paisagem, sendo por ela preparado para aquele que o visita. Já esse tipo de aproximação à casa, atravessando primeiramente uma quase que mata, procura corresponder ao modo de percepção do espaço na vida tradicional kanak. Poder-se-ia dizer que há, no caso, uma inversão do significado em geral concedido à jardinagem e ao paisagismo relativamente à arquitetura; de uma posição em geral secundária, passa à principal, de uma moldura ao construído, a corpo no qual o edificado se insere.

O tratamento paisagístico exigiu a consideração das relações das plantas com o edifício, levando à criação de uma "paisagem indígena plantada". Assim, como resultado de pesquisas do significado dos vegetais na cultura kanak, foram plantados pinheiros de araucária característicos da região (Araucaria columnaris) e coqueiros no caminho à casa grande e, nos jardins, hortas com vegetais de importância para o consumo e a cultura quotidiana e cerimonial indígena, sobretudo de taro e de inhame.

J.Garnier.Arquivo A.A.Bispo

Revelando significados ocultos de plantas e conotações de gênero: taro e inhame

Um aspecto que deve ser particularmente considerado na configuração paisagístico-arquitetônica que se revela no Centro Cultural Jean-Marie Tjibaou é o da atenção dirigida ao significado cultural das plantas. Em muitos casos, em projetos urbanísticos e de jardinagem, a escolha das plantas decorre antes arbitrariamente ou segundo critérios estéticos, dando prioridade à concepção de espaços e a jogo de volumes e, em menor escala, de cores; um direcionamento da atenção ao significados de plantas no universo cultural modifica essa relação, influenciado o processo criador do ambiente.

Pressuposto para esse diferente tipo de aproximação ao tratamento do meio é o conhecimento do sentido cultural da vegetação, o que apenas pode ser obtido pela pesquisa antropológico-cultural devidamente sensibilizada para o tema. Esta deve atentar à leitura de sentidos de plantas no contexto da tradição, o que abre também caminhos para a compreensão das relações mais profundas entre a vida de indivíduos e de comunidades com o meio ambiente, da organização de aldeias e de plantações e, entre inúmeros outros aspectos, para o entendimento do edifício de concepções e das bases culturais da alimentação e da medicina.

O observador assim sensibilizado e formado passa a estar em condições de ler o sentido mais profundo, velado por detrás das aparências do meio ambiente e das aldeias dos nativos. Passa a olhar a natureza com outros olhos, e, consequentemente, o das construções que nela se inserem. O penetrar na mata até atingir as moradias adquire significado, assim como as plantas que rodeiam as cabanas.

A consideração dos conhecimentos assim obtidos pela pesquisa cultural por parte do arquiteto e paisagista tem, naturalmente, consequências profundas para o processo criador. Também aquele que se confronta com a sua obra necessita estar preparado para lê-la adequadamente, ou seja, segundo os sentidos intendidos. Isso pressupõe uma forma de percepção dirigida não às aparências, mas sim a sentidos velados. Esse tipo de leitura hermenêutica da arquitetura e do meio ambiente não é arbitrária, mas deve adequadamente corresponder aos significados intrínsecos. Para isso, torna-se necessário formar adequadamente aquele que passa a ler e fruir o meio configurado.

Compreende-se, neste contexto, que o Centro Cultural Jean-Marie Tjibaou inclua, na sua área tratada ambientologicamente caminhos de cunho  educativo, onde aquele que se aproxima dos edifícios recebe informações sôbre os sentidos dos vegetais na cultura kanak e de suas relações com os mitos, com a ordem social e os modos de vida. Ao mesmo tempo, é confrontado com obras plásticas de artistas contemporâneos que procuram dialogar com esses significados.

Taro - o húmido e sua conotação feminina. No âmbito dos trabalhos do programa Cultura/Natureza da A.B.E. desenvolvidos em várias regiões do Pacífico pôde-se constatar o significado do taro d'água (Colocasia esculenta L. Schott, Araceae)  para o consumo e para a cultura. O taro encontra-se nesta esfera do globo constantemente presente na alimentação, juntamente com o inhame, em cerimoniais e desempenhando papel significativo em narrativas. O taro surge na cultura tradiciopnal como objeto de trocas, marcando os eventos importantes.

Este também é o caso nas ilhas da Melanésia, o que é salientado no Centro Cultural Tjibaou. Uma das áreas reproduz até mesmo terrenos que podem ser encontrados na Nova Caledônia e que denotam traços de antigas roças irrigadas de taro do passado, uma vez que neles pode-se perceber vestígios de regos que cobriam francos de vertentes e mesmo grandes áreas. O ambientólogo pode, assim, ler no meio pegadas da cultura ali desenvolvida no passado.

O sentido velado do taro d'água na cultura do Pacífico relaciona-se com a humidade que necessita e para o qual os nativos tiveram que estabelecer canteiros irrigados por meio de canalizações. Esse vínculo com a humidade relaciona o taro com o húmido em geral e, assim, com a água. Do ponto de vista das conotações de gênero, é associado com o princípio feminino, tendo a sua imagem relacionada mais especificamente com a da mulher.

Inhame - o sêco e sua conotação masculina. O inhame (Dioscorea alate L., Dioscoreaceae), conhecido sob 72 denominações de variedades, também ocupa uma posição de extraordinário significado alimentício e simbólico na cultura do Pacífico, não podendo faltar em cerimônias.

Para além daqueles consumidos no quotidiano, os inhames de melhor qualidade são oferecidos aos chefes durante ritos, sendo objetos de trocas durante casamentos e enterros. Crescendo no seio da terra, é visto como representativo do sêco e, consequentemente, da terra. Sob o ponto de vista de gênero, tem conotação masculina, surgindo como uma espécie de complemento do taro em cerimônias. Taro e inhame correspondem assim à relação entre o húmido e o sêco ou à de princípios e imagens conotadas respectivamente com o feminino com o masculino.

Nas reflexões, salientou-se o estudo de concepções similares no edifício de imagens da Antiguidade européia e na tradição brasileira que vem sendo desenvolvido nas últimas décadas no âmbito da A.B.E..

Com base nos conhecimentos assim alcançados, aguça-se a sensibilidade para a percepção de relações entre o taro e o inhame como representações do húmido e do sêco no contexto geral das imagens nas suas relações com o ciclo do ano e com noções relativas às origens do mundo.

Pode-se, aqui, dar continuidade ao desenvolvimento da colaboração internacional voltada a questões sistemáticas e filosóficas para além de suas contextualizações histórico-culturais específicas, contribuindo à integração de pensadores inseridos em tradições indígenas e kanaks no debate em contextos globais.

Significado velado da cana de açúcar

Para além dos significados básicos dos elementos presentados pelo taro e do inhame no edifício de concepções e imagens do mundo e do homem, vários outros vegetais necessitam ser considerados quanto a seu sentido velado. Como mencionado, somente levando em conta esse sentido oculto das plantas é que o pesquisador pode ler adequadamente a paisagem cultural e a cultura na paisagem.

Uma especial atenção deve ser dada à cana de açúcar (Saccharum officinarum L., Gramineae) pelo fato de possuir um significado relacionado com a força do crescimento. Uma das razões desse significado reside nos seus nós, que criam partes vistas como imagens de fases da vida. A cana tem, assim, relações com os marcos de passagens na vida do homem, sendo oferecida, por exemplo, como primeiro objeto de troca por ocasião de casamentos pelas famílias de futuros cônjuges.

Devido a essa relação com o crescimento e suas etapas, a cana tem conotações religiosas, relacionadas com totens. Assim, pode ser usada medicinalmente para curar doenças provocadas por um totem que não tenha sido respeitado. Por esse motivo, é plantada em arbustos ao lado de moradias.

Nos debates, considerou-se que também na tradição ocidental e em expressões brasileiras conhece-se plantas que, pelo se rápido crescimento, são associadas com a força da terra que se manifesta no crescer vegetal. Considerou-se que, na tradição mitológica européia, essas concepções tiveram também conotações negativas, sendo em geral relacionadas com bebidas embriagantes, o que poderia abrir portas para pesquisas mais aprofundadas no caso da cultura kanak.

A partir da percepção assim aguçada, distingue-se com mais cuidado as concepções relacionadas com o sêco do taro e aquelas associadas com a força de crescimento da terra representada pela cana.

Significados velados de árvores e gênero: araucária e coqueiro, cakori e álamo

Se os exemplos do taro, do inhame e da cana indicam as relações imagológicas de plantas com os fundamentos de um sistema de visão do mundo e de concepções de origens derivado da observação da natureza e do ciclo natural, há plantas, sobretudo árvores, que possuem significados de maior relevância para a configuração do espaço e, portanto, para a arquitetura e o paisagismo.


O pinheiro de coluna ou araucária (Araucaria columnaris Forster. Hook.f. Araucariaceae) adquire importância singular em certas ilhas da Nova Caledônia, onde cresce de preferência às bordas do mar. Pode ser também encontrado em terras do interior, onde foi plantado no passado. Esse cultivo pode ser explicado pela sua simbologia. É visto como imagem do chefe de clã, garantia da linhagem, do seu poder, o que explica ter sido plantada ao redor de moradias de homens de alto prestígio ou em locais de significado numinoso. Assim, com a sua presença no interior de terras, marca locais de antigas habitações, definindo interdições. Quanto à sua conotação de gênero, tem elos com o elemento masculino, sendo por isso plantado em caminhos que levam à casa do chefe.


O coqueiro (Cocos nucifera L., Arecaceae, Palmae) é não apenas uma das plantas mais úteis da vida do quotidiano do Pacífico, uma vez que dele se consome a água, o leite e a polpa, dele se obtém o óleo de copra e de sua fibra se fazem esteiras, cestas e cordas, assim como as suas folhas servem para cobertura de casas; êle possui também significado velado com conotações de gênero. Assim, no tratamento tradicional do meio ambiente, era plantado nas laterais das vias que levavam à casa grande e, juntamente com os pinheiros de araucária, ao redor das moradias, possuindo associações com o feminino.

O cakori (Agathis moorei Lindley Masters, Araucariaceae), árvore que pode atingir grande altura, possui significado que sugere uma certa proximidade àquele do pinheiro de coluna, sendo plantado a seu lado em vias que levam às casas de chefes. Também essa árvore relaciona-se com a chefia, simbolizando a sua sustentação, ou seja, a hierarquia; os pinhões simbolizam aqui a união de clãs ao redor de um chefe. O seu uso medicinal deriva desse significado, servindo as suas folhas para a confecção de purgativos que curam doenças provocadas por violações de interdições.

O álamo kanak (Erythrina indica Lam var. fastigiata, Leguminosae), com as suas flores em vermelho vivo, marca espaços habitados e delimita áreas, sendo plantada ao lado do pinheiro de coluna em vias centrais. Com o seu porte, marca o terreno e surge significativamente como guardião de territórios ou de direitos. Do ponto de vista do gênero, é conotado como feminino.

A triana gigante (Montrouziera cauliflora Planchon; Triana, Guttiferae), encontrada em florestas, onde pode alcançar mais de 1000 anos, de crescimento lento, representa o centro do espaço, sendo usada como pilar central das construções. Como tal, é alvo de particular respeito, sendo venerada como se fosse um grande chefe. A sua madeira é utilizada para as plásticas que emolduram as portas de entrada, os ângulos e o cume do telhado.

Significados ocultos relacionados com ancestrais: pomeiro kanak, croton, cordelina

A figueira banian (Ficus prolixa Forster, Moraceae), pelas suas dimensões gigantescas e suas raízes aéreas, que marca a paisagem e os jardins urbanos de muitas regiões do Índico e do Pacífico, surge como árvore sagrada por excelência, local de moradia de espíritos e de ancestrais, servindo no passado como lugar de sepultura. Neste caso, é cercada por interdições. Também surge como imagem da aliança e união entre os elementos de um clã. Acredita-se, assim, que na Nova Caledônia as suas raízes criem elos entre os grupos populacionais da Grande Terre e aqueles das Ilhas Lealdade.

O pomeiro kanak (Syzygium malaccense L. Merr. & Perry, Myrtaceae) é conhecido como árvore que dá frutos para os ancestrais, a êles ofertadas. O seu sentido medicinal é derivado desse elo, o que se expressa no fato de ser o sumo de sua casca usado em aspersões para a retirada de interdições de um local.

O croton (Codiaeum variegatum L. Adr. Juss. Euphorbiaceae) é um arbusto visto como planta de ancestrais. Por essa razão, as suas folhas são colocadas atrás das orelhas ou amarradas no braço como elemento protetor, pois crê-se que garante a presença benéfica de ancestrais. Também é por essa razão que é plantado junto à moradia e sôbre túmulos. Visto em terrenos abandonados ou capoeiras, é um sinal que ali houve anteriormente uma moradia.

A cordelina (Cordyline fruticosa L.A. Chev., Agavaceae), sobretudo a vermelha, tem relações com o mito das origens e com o sagrado em geral. Assim, moedas destinadas aos ancestrais são envoltas em suas folhas e os dançantes trazem maços dessa planta no decorrer de cerimônias sagradas. Também esse arbusto é plantado junto a moradias e sepulturas.

A falsa mangueira (Cerbera manghas L. Apocynaceae), cuja noz é tóxica, representa a passagem pelo mundo dos mortos. Acredita-se que o consumo de sua seiva leva os vivos a penetrar no mundo dos mortos. Plantada ao lado da casa grande, representa o elo entre os dois mundos. Significativamente, é utilizada medicinalmente em casos de transgressões de interdições.

O arbusto bagaiu dos velhos (Polyscias scutellaria Burm. f. Forsberg, Araliaceae) tem relações com a proteção, sendo cultivado ao lado da entrada da casa, junto às esculturas. As suas folhas são usadas como proteção na manipulação de objetos com potência de crescimento, o que indica as conotações atemorizantes vistas nesta força, como acima citado. Em algumas regiões se cobre a cabeça do recém-nascido com as suas folhas. No passado, os homens tiravam à noite o seu estojo peniano de tapa, trocando-o por folhas desse arbusto. Surge também como sinal de respeito a leis; em cerimônias que acompanham o estabelecimento de normas, a sua folha significa que aquele que a usa tem intenção de segui-las.

O pau-ferro (Casuarina equisetifolia L. , Casuarinaceae) tem o seu significado relacionado com as suas pequenas folhas que, sugerindo na sua aparência penas de um casoar, recebeu o nome de casuarina. Como o vento as fazem sussurrar, é associado com o ar que se respira e com a voz dos ancestrais. Plantado ao lado da araucária, simboliza a Palavra, agente do primeiro respiro à morte. Talvez explique essa associação o fato de relacionar-se com a morte, sendo envolta na sua casca moedas depositadas por ocasião de falecimento de uma pessoa.

O cicas (Cycas seemannii A. Braun, Cycadaceae), com as suas grandes palmas, é visto como suporte de oferendas. Plantadas perto da casa, serve de depósito para maços de plantas medicinais. Nos eventos mais importantes, as suas folhas são utilizadas para acompanhar oferendas aos ancestrais, nelas sendo envoltos objetos sagrados. Pode ser encontrada em locais onde se reza aos espíritos de defuntos e onde se deposita inhames e frutos a êles destinados.

A árvore de tapa (Broussonetia papyrifera L. l'Her., Moraceae) caracteriza-se pelas suas folhas em forma de coração. Representa um bem de especial valor para o grupo, pois da sua casca, quando batida sobre uma madeira dura, obtém-se o tecido de tapa. No passado, servia como moeda de câmbio; era também usada para embrulhar moedas.

A laranjeira selvagem (Cytrus macroptera Montr., Rutaceae) é vista como uma ponte entre o mundo dos vivos e dos mortos. O seu fruto permite a distinção entre o espírito de um vivo daquele de um morto. Nas narrativas, a bebida dela obtida servia para curar os males contraídos durante uma viagem ao país dos mortos.


Significados de vegetais e dos animais e sua importância no processo criador

As representações pictóricas e as obras de escultura dispostas nos jardins que cercam o Centro Cultural demonstram o significado das plantas para a criação artística do presente de inspiração kanak.

Uma delas, por exemplo, trata da visita de Tea-kanaké ao país dos mortos. Este, procurando tudo saber da vida dos homens, decidiu uma vez conhecer a morte. Entrou na figueira gigante, que representa o corpo dos espíritos e, através de suas raízes, penetrou no país subterrâneo, visitou a terra dos mortos e, ali, transformou-se.

Em outrou quadro, relata-se como Tea kanak construiu a sua casa. Os espíritos o fizeram aprender a vida em sociedade, a trocar os primeiros inhames e construir a casa redonda. Plantou a araucária que delimita os lugares sagrados e tabus, e disse a sua primeira Palavra. A Palavra do chefe é o pássaro símbolo das origens, a boca do notou. Também se a chama de Palavra dos clans, pois ela é proclamada pela concha.


O pássaro notou e a concha constituem um par, sendo um imagem da floresta e o outro a do mar. Há outros animais com significados velados; o lagarto surge como mensageiro da morte, por viver em cemitérios, a anguila é símbolo de nascimento. A serpente surge como a imagem do defunto que vem gozar o mundo dos vivos; este, saindo do mar, se descasca na praia, tomando aparência humana.

Também nas concepções centrais relativas Homem Novo, renascido, as plantas desempenham papel simbólico de importância. Esse renascimento é comparado com o de galhos que renascem de um tronco cortado. Na narrativa, Tea Kanaké, como portador da Palavra, atravessa a rocha e sopra a Palavra nos ramos do pau-ferro, que sempre transmite o seu canto. Graças a essa Palavra é que se abre uma nova era.

L'Homme végétal de Yann Conny

Das esculturas expostas nos jardins do Centro Cultural, uma merece uma particular menção por manifestar de forma especialmente expressiva as dimensões antropológicas dos vegetais na cultura kanak. Redescobertas pelos artistas, essas concepções adquirem significado global, extrapolador de seu contexto regional. Trata-se da escultura O homem vegetal de Yann Conny, La Foa, Nova Caledônia, que representa a relação do homem com o mundo das plantas. O artista chama a atenção á idéia de que, desde os tempos mais remotos, o homem representa "um metabolismo natural em constante evolução".

A obra se inspira no conceito da cultura do inhame. A razão dessa escolha foi consciente, baseando-se na idéia de que o inhame, com o seu elo com a terra, tem um valor simbólico para o seu equilíbrio.

Com base no diálogo com as concepções kanak e como resultado de seu trabalho criador, o artista acentua o valor do vegetarianismo para o alcance de um nível mental mais elevado e para o aperfeiçoamento interior, ou seja, para a própria cultura. Pergunta-se, assim, se não seriam os vegetais que levam o homem a se abrir à espiritualidade. Vivendo no interior da ilha, em estreito contato com a natureza, o artista pôde constatar que a cultura do inhame representa uma fonte de espiritualidade e de simbolismo.

O Homem vegetal de Yann Conny e suas colocações indicam, assim, as possibilidades de intercâmbio intelectual e de experiências entre a arte contemporânea de inspiração vegetal no Pacífico Sul e aquela no Brasil, evidenciada em expressões artísticas relacionadas de forma mediata ou imediata ao movimento da União do Vegetal e correntes similares.

Grupo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Revelando o sentido oculto dos vegetais na tradição kanak e o processo criador em contextos globais. O homem vegetal na arte da Nova Caledônia à luz do movimento da união do vegetal no Brasil. Centro Cultural Jean-Marie Tjibaou". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 136/21 (2012:2). http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Tjibaou-Vegetais-e-Cultura.html





  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.