Celebração do patrimônio nativo nos EUA.  Revista BRASIL-EUROPA 128. Bispo, A.A. (Ed.). Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 128/21 (2010:6)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2677


A.B.E.


A serviço da celebração do patrimônio nativo
ciclos, circularidades e o esférico no universo indígena
em reflexões brasileiras e norte-americanas


Ciclo "Indian Summer" preparatório aos 300 anos da ida ao Canadá de Joseph-François Lafitau (1681-1746)
pioneiro dos estudos culturais comparados, da Antropologia Cultural e disciplinas afins
The Abbe Museum, Bar Harbor

 
  1. Abbe Musem. Foto A.A.Bispo©








  2. Fotos A.A.Bispo
    ©Arquivo A.B.E./I.S.M.P.S.e.V.



 
Abbe Musem. Foto A.A.Bispo©

Em preparação à passagem dos 300 anos de chegada ao continente americano do "pai" da Antropologia Cultural e disciplinas afins, Joseph-François Lafitau (1681-1746), valorizador das culturas indígenas, a A.B.E. realizou uma visita a um dos mais significativos museus dedicados a povos nativos da região da Acádia: o The Abbe Museum, situado em Bar Harbor, Maine.

O objetivo dessa visita foi o de conhecer resultados mais recentes dos trabalhos e comparar métodos, orientações, tendências da pesquisa e da ação com aqueles conhecidos de contextos euro-brasileiros. No intuito da A.B.E. de conduzir estudos transatlânticos em estreito relacionamento com estudos interamericanos, a aproximação de pesquisadores e a consideração integrada dos estudos indígenas no continente americano surge como necessário pressuposto, o que corresponde também a tendências atuais do movimento panindigenista.

Significado do The Abbe Museum

O The Abbe Museum dedica-se ao fomento da compreensão e da apreciação das culturas, da história e da arqueologia americanas nativas do Maine. Une, assim, expressamente, em determinado contexto regional,  o estudo da arqueologia com o da história indígena e da etnologia a serviço de um maior entendimento do universo cultural indígena, abrindo perspectivas para a sua valorização e fruição. O seu salienta esse aspecto de celebração do patrimônio: "Celebrating Maine's Native American Heritage".

O museu possui, no seu acervo, mais de 50000 objetos, cobrindo um período de tempo de 10.000 anos. Os objetos, na sua maior parte, foram encontrados durante escavações arqueológicas desenvolvidas por Robert Abbe, o seu fundador. Este foi um cirurgião de New York, renomado na área da terapia paliativa e que, passando parte de sua vida em Bar Harbor, adquiriu uma facinação pelas culturas nativas e sua história.

Além dos achados arqueológicos, o museu possui objetos provenientes dos séculos posteriores à descoberta, dos séculos XVII ao XX. Relacionando fundos arqueológicos e objetos etnológicos e históricos, o museu procura dirigir a atenção tanto à continuidade de tradições como às inovações criativas.

Ao mesmo tempo, o museu faz questão de desenvolver os seus trabalhos em estreito relacionamento com as comunidades indígenas, que muitas vezes neles participam. Procura-se, assim, criar condições para que os resultados das pesquisas venham beneficiar as próprias comunidades, servindo à sua formação e informação. Sobretudo os trabalhos de escavações arqueológicas são desenvolvidos em estreita colaboração com representantes de grupos de ascendência indígena, uma vez que ocorrem, em geral, em terras de comunidades. Também esses trabalhos têm como objetivo o aumento de conhecimentos e da compreensão da cultura nativa do passado e do presente em geral e, em particular, para os próprios indígenas e seus descendentes.

O fator contemplativo: museu na floresta

Nesse seu intuito de valorização do universo de concepções e expressões culturais nativas, tanto para os próprios indígenas e seus descendentes, como para os interessados em geral, o museu dá particular atenção à atitude de interiorização necessária para o aguçamento da sensibilidade perceptiva para valores que, em grande parte, são imateriais. Por essa razão, o fator contemplativo desempenha um papel significativo nos seus dois centros, o do Sieur de Monts Spring e a do Downtoun Bar Harbor.

O primeiro, situado a duas milhas e meia do Sieur de Monts Spring, é concebido como um museu inserido num caminho histórico sobre a colina dos Jardins Silvestres da Acádia, no Acadia National Park.

Esse museu, instalado em casa histórica localizada idilicamente na paisagem, registrado no National Register of Historic Places, possui importantes objetos provenientes das coleções originais de seu fundador. Para abrigar os materiais coletados, Abbe adquiriu uma pequena casa na floresta, conservando os seus objetos tais como preciosidades. Nesse abrigo modesto de madeira, em meio à natureza, o visitante é conduzido a uma atmosfera de silêncio e contemplação.

Espaço para introspecção na celebração do universo interior indígena


O centro do Museu no centro de Bar Harbor encontra-se instalado em casa oito vezes maior do que aquela na floresta, um edifício construído em fins do século XIX e também considerado como de valor patrimonial. Tendo abrigado por vários anos um albergue da YMCA, foi restaurado e ampliado para abrigar o museu no início do século atual.

Nessas instalações, o museu tem a possibilidade de expor e conservar maior número de objetos, de organizar exposições temáticas frequentes, de oferecer espaços para expor empréstimos temporários e, sobretudo, de desenvolver um amplo programa educativo e de informação.

Também aqui, porém, ainda que não na floresta, teve-se o cuidado de criar condições à contemplação, à meditação e à celebração refletida. Um espaço interno, que sugere o interior de uma construção indígena, edificado porém segundo critérios da linguagem arquitetônica contemporânea, possibilita a necessária introspecção para estudos mais profundos do universo cultural indígena.

Aproximações à concepções circulares e esféricas. Paralelos com os estudos brasileiros


O Museu Abbe concretiza, no espaço que oferece à celebração, resultados de pesquisas que vêm de encontro àqueles a que chegaram há muito pesquisadores brasileiros em estudos realizados entre grupos indígenas no Brasil.

Assim, Desiderio Aytai, salientando a frequente ocorrência de formas circulares em expressões culturais indígenas, de sinais corporais a cortes de cabelo, de disposição de aldeias a danças, procurou interpretá-las relativamente a concepções geométricas nas suas mais diversas associações, cosmológicas e antropológicas. ("Zur Idee des Kreisens in der Musik der Xavante", in A.A.Bispo, org., Die Musikkulturen der Indianer Brasiliens, Musices Aptatio 1998/99. Siegburg/Roma, 2000, 156-162). Os impulsos que forneceu com os seus estudos, associados àqueles de outros pesquisadores, possibilitaram reflexões e discussões sob diferentes aspectos, inclusive aqueles relacionados com a história do pensamento filosófico do Ocidente e de suas expressões culturais.

Dessas considerações transepocais abriram-se e abrem-se perspectivas para o estudo de interrelacionamentos de edifícios de concepções e imagens no decorrer dos encontros que marcaram a história das relações euro-americanas nas suas diversas regiões.


Concepções de tempo e necessidade de reflexões teóricas para a historiografia

Nesse complexo de possibilidades de análise de processos inter-e transculturais que se abrem,  o Museu Abbe desperta a atenção para uma questão até hoje insuficientemente considerada em contexto euro-brasileiro: o da concepção de tempo e de suas consequências para a pesquisa.

Os pesquisadores do museu lembram que o tempo é considerado, no consenso geral, como uma decorrência linear. A marcha da história é compreendida como uma linha, de um passado distante ao presente. O passado não mais retorna, e o futuro ainda não foi atingido. Para algumas culturas, porém, a concepção de tempo é circular, do presente ao passado e do passado ao presente.

No exemplo do povo Wabanaki, salienta-se que o círculo surge como um modêlo para a forma de organização do mundo. O círculo representa a totalidade do modo de vida indígena, representando uma forma perfeita e, ao mesmo tempo, movimento. Na arte Wabanaki, ornamentos circulares e a disposição circular de figuras relacionadas com um centro desempenham importante papel.

Os ciclos da natureza - das estações do ano - mas também os dos seres viventes, da vida e da morte - correspondem a ciclos da comunidade e da vida social. Um exemplo da importância do ciclo das estações do ano com as suas múltiplas associações é oferecido no calendário do povo Penobscot.

A arquitetura do espaço de celebração do patrimônio nativo, porém, indica que as reflexões que levaram ao projeto foram ainda mais profundas do que as elucidações oferecidas em textos. Constata-se antes a concretização de um movimento espiral, que leva a um afunilamento ao alto, por uma ordenação ao redor de um eixo, e que pode ser interpretado como um reconhecimento das relações do movimento em ciclos com o processar do tempo em linearidade. Ambos os princípios não surgem como resultados de concepções distintas, mas fatores que se interagem. O centro do círculo das representações bidimensionais não são centros de uma superfície, mas sim base de um eixo ou projeção do seu ponto máximo, onde corta a esfera celeste.

Com base nos estudos já desenvolvidos em contextos euro-brasileiros, porém, sabe-se que essas concepções também podem ser constatadas em expressões culturais tradicionais de fundamentação religiosa trazidas da Europa, transmitidas através dos séculos na coreografia de danças e outras manifestações lúdicas de remotas origens. Os estudos, assim, necessitam aprofundar-se ainda mais, dirigindo a atenção às diferenças entre similares concepções e ao modo com que se relacionaram no decorrer dos processos transformatórios.


Inserção em desenvolvimentos atuais e cultura do quotidiano: "corrida espiritual"

O Museum Abbe, que dá particular atenção à pedagogia museológica, oferece aos visitantes informações de forma criativa quanto à comunicação visual, entendendo-se como instituição viva, envolvida em atividades de comunidades de ascendência indígena, a elas servindo. Um exemplo dessas atividades foi, em 2010, o Waponahki Student Art Show.

A contemporaneidade de suas atividades manifesta-se na exposição Wabanaki Sovereignty in the 21st Century. Os complexos temáticos tratados dizem respeito à questão de delimitações de terras, a direitos no uso de meios naturais, do manejamento ambiental, dos esportes e divertimentos, dos idiomas, dos veteranos indígenas e da identidade.

O museu expõe não apenas objetos históricos, mas dá particular atenção à cultura do quotidiano e de significado para desenvolvimentos recentes de comunidades indígenas. Assim, por exemplo, expõe sapatos utilizados por Barry Dana, governante da nação Penobscot, utilizados na Katahdin 100 Spiritual Run. Tendo primeiramente corrido só, essa "corrida espiritual" tornou-se, hoje evento importante da comunidade.


Pontes entre o passado e o presente, mecanismos de continuidade

Para a criação de pontes entre o passado e o presente, ou para o fomento de mecanismos de continuidade, dá-se particular atenção à história oral, uma vez que os povos nativos utilizam-se mais da transmissão oral do que da palavra escrita para a passagem de conhecimentos de uma geração à outra.

Salientando o caso do povo Wabanaki, mostra-se que a tradição oral inclui concepções relativas às origens, de como o povo respectivo veio ao mundo, incluindo estórias e cantos que definem a sociedade e indicam a seus membros como devem viver.

Várias dessas fontes foram registradas no século XIX e XX, constituindo hoje importante manancial para os contadores de estórias Wabanaki para recriações e ensino. Programas do museu para a perpetuação do idioma Wabanaki utilizam-se desses contos tradicionais como material de pesquisa e de ensino.

Um desses textos, adaptado do livro The Algonquin Legends of New England, de Charles G. Leland, de 1884, oferece um mito do surgimento do povo Wabanaki como „gente da alvorada“, no contexto da criação.

Celebrando cooperação: história indígena recente


Uma particular atenção é dada ao registro de fatos da história recente de povos indígenas. Em quadros informativos, apresenta-se o caminho percorrido nas últimas décadas na reconquista de direitos e na recuperação cultural no contexto da história recente dos EUA no seu todo.

Expõe-se, como exemplo, datas importantes do renascimento Wabanaki a partir de 1950, que constituem comunidades com distintas culturas e tradições.

Lembra-se aqui que somente em 1954 concedeu-se aos povos nativos o direito de voto em eleições federais. Em 1957, Louise Sockabesin encontrou, numa caixa de sapatos, cópia do tratado de 1794 entre a tribo Passamaquoddy e o estado de Massachusetts. Em 1965, Joseph Nicholas, Passamaquoddy, passou a fomentar a auto-estima cultural da juventude Passamaquoddy através da língua e da dança tradicional. Em 1964, cinco mulheres Passamaquoddy foram presas na aldeia indígena por protestarem contra a construção de um motel na área da reserva, Demonstra-se que apenas em 1967 os nativos receberam direito de voto em eleições, mas que, como fotos de jovens Penobscot de 1968 testemunham, participaram ativamente na Guerra do Vietnam. Em 1971, Senebeh Francis, artesão Penobscot, ensinou a arte de esculpir madeira a Stan Neptune, hoje reconhecido como artista, e que a repassou a seu filho, Joe. Em 1972, estabeleceu-se um programa de estudos para estudantes indígenas na University of Maine em Orono, e, em 1974, a nação Penobscot e a tribo Passamaquoddy receberam reconhecimento federal.

Um dos muitos problemas resultantes de procedimentos coloniais e de desenvolvimentos nacionais é ilustrado com a dupla carteira de identidade de uma senhora de ascendência indígena. Ramona Jerome. Devido à demarcação de fronteiras de 1783, o território Wabanaki foi artificialmente dividido, de modo que hoje essa senhora pertence tanto aos Micmacs de Quebec, Canadá, como ao Arrostook Band of Micmacs em Maine, USA.

O museu registra também manifestações de crescente auto-consciência dos Passamaquoddy, que chegam mesmo a formular intenções de alcance de soberania.


Em 1990, o Native American Graves Protection and Repatriation Act (NAGPRA), tornado lei, passou a exigir de agências federais e museus a consulta de comunidades nativas no referente a objetos de significado cultural e humano conservados em instituições públicas. Em 1991, o grupo Aroostook dos Micmacs foi reconhecido pelo Govêrno federal.

Alguns dos fatores desse fenômeno de aumento da consciência cultural relacionam-se com o novo papel desempenhado por mulheres indígenas. Lembra-se, aqui, da concessão do National Heritage Fellow do National Endowment for the Arts a Mary Mitchell Gabriel, cesteira dos Passamaquoddy, em 1994, a eleição de Brenda Commander como primeira chefe feminina do Houlton band dos índios Maliseet, a apresentação de danças por Anne Akins Wood, Penobscot, no Abbe Museum, em 1998, e, também nesse ano, a nomeação de uma esportista de ascendência indígena a „Miss Maine Baskettball“.

Procurando oferecer um panorama não-unilateral do desenvolvimento, o museu registra problemas ambientais em áreas indígenas, questões de conflitos com agências oficiais de proteção ambiental, mudança de nomes de logradouros propostas por representantes Passamaquoddy no Legislativo, assim como de proteção de sítios arqueológicos indígenas.



Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.
Indicação bibliográfica para citações e referências:


Bispo, A.A. (ed.). "A serviço da celebração do patrimônio nativo: ciclos, circularidades e o esférico no universo indígena em reflexões brasileiras e norte-americanas". Revista Brasil-Europa 128/21 (2010:6). www.revista.brasil-europa.eu/128/Abbe-Museum.html




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.



 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________