Trabalho correcional no colonialismo inglês: Singapura. Revista BRASIL-EUROPA 127/12. Bispo, A.A. (Ed.). Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

No âmbito do ciclo de estudos dedicados ao tema „Direitos Humanos, Estudos Culturais e Históría Diploamático-Cultural“, desenvolvido pela Academia Brasil-Europa em março de 2010 em Singapura, procurou-se retomar reflexões de forma contextualizada no Sudeste Asiático por motivo da passagem dos 500 anos das conquistas de Goa e de Málaca pelos portugueses.

Singapura, fundada apenas em 1819, representa um dos mais extraordinários fenômenos de crescimento urbano e econômico da história colonial dos últimos séculos. Pela sua configuração multiétnica, pluricultural, pela diversidade religiosa de sua população e sobretudo pela sua inserção e posição exponente em rêdes da globalização, Singapura assume particular significado para estudos de processos culturais.

A imagem de Singapura no Ocidente é marcada não apenas pelo seu extraordinário desenvolvimento, mas sim também por concepções relacionadas com a ordem. Tornou-se quase que lugar comum lembrar-se da limpeza das ruas de Singapura, do seu contrôle, fiscalização e das severas sanções existentes contra infrações relativas ao asseio público.

Correspondendo ao slogan „cidade limpa é cidade ordeira“, a imagem de Singapura é marcada por noções de um eficiente policiamento, de segurança e de ordem pública. Negativamente, a sua imagem turva-se com constantes referências a insuficiências relativas à liberdade pessoal e a deficiências quanto a Direitos Humanos.

O observador brasileiro tem a impressão, em Singapura, que o lema Ordem e Progresso, gravado nos céus estrelados da bandeira republicana do Brasil, ali corresponde não a um desideratum, mas à realidade de uma concepção concretizada.

Espontâneamente, sente a necessidade de tecer reflexões mais profundas e diferenciadas sobre o real, o irreal e o surreal de ditados e situações.

Essas reflexões, porém, para serem fundamentadas, exigem o conhecimento dos pressupostos históricos e culturais que explicam a ordem e o progresso em Singapura. Nesse intento, o observador é levado a dedicar-se a estudos de uma história das mentalidades relacionadas com o colonialismo inglês e com os seus procedimentos nas circunstâncias particulares dos Estreitos malaios.

Local de reflexões: Catedral de Saint Andrews

No número anterior desta revista considerou-se a Catedral de Saint Andrews, em Honolulu, nos seus significados arquitetônico, histórico-cultural e como centro musical sob a perspectiva do Anglicanismo no Havaí e de tendências britânicas na sua história cultural. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/126/Anglicanismo.html)

Em Singapura, a atenção dirigiu-se a outra catedral dedicada a Saint Andrews, monumento do Anglicanismo no Sudeste da Ásia, outro testemunho da irradiação do neo-gótico inglês no mundo. Como a do Havaí, também essa catedral representa um centro musical de relevância supraregional, cujo coro representa uma das mais antigas instituições dos países asiáticos.

Apesar de seguir tendências do Gothic Revival inglês e estar consequentemente vinculada às mesmas correntes de pensamento e intenções, a catedral de Saint Andrew de Singapura difere sob muitos aspectos daquela de Honolulu.


Embora alguns anos mais antiga, o seu estilo é singularmente mais "moderno" do que a construção havaiana. Isso se explica pelo fato do modêlo a que deve a sua inspiração ser de fase mais tardia do Gótico europeu.

Entretanto, também aqui a intenção foi a de estabelecimento de um vínculo com a Idade Média, no caso com a Netley Abbey, uma igreja do século XIII, apenas existente em ruínas, em Hampshire.Tratou-se, assim, românticamente, de uma reconstrução, na longínqua esfera colonial, de igreja caída em ruínas nas ilhas britânicas.

Se no Havaí os vitrais da catedral perenizam vultos da história local que contribuíram para a Igreja Anglicana havaiana, reis e o primeiro bispo, em Singapura os vitrais são dedicados a Thomas Stamford Raffles (1781-1826), o fundador da cidade, a John Crawfurd, o primeiro Major Resident, ao Major General William Butterworth, Governador dos Straits Settlements, e a Ronald MacPherson (1817-1869), o seu arquiteto e 1° Colonial Secretary quando da passagem dos Straits Settlements a Colônia da Corôa britânica.

Em ambos os casos tornam-se manifestos os estreitos vínculos entre o Estado e a Igreja, característica do Anglicanismo, encabeçado pelo soberano da Inglaterra. Assim como na catedral de Honolulu, os vínculos de união com a Igreja na Grã-Bretanha são também expressos concretamente na de Singapura em vários objetos, entre êles um pilar oferecido pela catedral de Canterbury, símbolo de união com a sé, e uma coluna da catedral de Coventry, do século XIV.


Primeiras aproximações

Nas suas qualidades arquitetônicas e nas suas dimensões, situada no centro de uma vasta área verde, a Catedral de Saint Andrews domina de forma sui-generis grande área da metrópole. Em meio a espaço livre, a catedral de Singapura, assim como outras construídas no espírito neo-gótico do século XIX, difere das catedrais góticas da Idade Média pela sua disposição urbana, pela perspectiva mais ampla com que podem ser observadas.

Ela se levanta não entre vielas estreitas, de pequenos largos e do meio do casario urbano, do escuro da existência das ruas e da negritude das pedras de seus muros em direção às alturas e à luz que entra pelos seus vitrais, mas sim do centro de um parque, como monumento resplandecente em branco. Esse branco do seu exterior é devido ao emprêgo do churam de Madras, da Índia, uma mistura de fibras de côco, proteína e pó de conchas.

A luminosidade da Catedral de Saint Andrews é já externa, não apenas interna. Ela surge não como a maior parte das catedrais góticas em magnitude negra, cuja luz apenas envolve aqueles que as adentram, mas como um faro de luz.

Poder-se-ia encetar diversas reflexões sobre as resignificações que o neo-gótico experimentou no mundo extra-europeu. As mais superficiais diriam respeito, no caso, à impressão menos vertical, mais plana que a catedral causa devido à amplidão do espaço em que se encontra.

Aquele que se aproxima não se defronta, repentinamente, com a magnitude de muros que o faz lembrar da pequenez humana perante o Mysterium Tremendum. A clareza de neve de seus muros despertam associações ternas, suaves, convidativas, chamando à lembrança arte refinada de confeiteiro, como construção monumental de açúcar, em perigo de diluir-se sob o calor de Singapura: „um doce de catedral“.


O historicismo romântico europeu e o sentimentalismo da existência colonial

Essas impressões e sensações não devem desqualificar a obra, extraordinário exemplo artístico e espiritual de uma época e que apenas pôde ser edificada com muitos esforços. Elas devem chamar a atenção para o fato de que o neo-gótico da Catedral de Saint Andrews não deveria ser considerado independentemente do contexto local em que surgiu, de seus pressupostos, ou seja, da situação dos súditos britânicos que ali viviam.

A catedral de Singapura não é apenas um exemplo do historicismo romântico do século XIX, mas sim o de uma reconscientização de valores culturais por parte de residentes britânicos de uma região colonial longínqua, de lembranças idealizadas da terra natal.

Ela não é apenas exemplo significativo do romantismo em contextos globais, mas de um sentimentalismo de situações de vida no estrangeiro. Esse monumento assume, assim, interesse particular para estudos de migrações, no caso daqueles pertencentes ao próprio poder colonial. Possibilita a diferenciação desses estudos, pois a atenção é dirigida a processos de identidade ocorrentes no seio da própria comunidade cultural dominante. Já a necessidade sentida de expressar essa identidade com a ereção de tal monumento sugere instabilidades causadas por transformações culturais, particularmente sentidas em meio marcado por grupos populacionais das mais diversas proveniências e religiões.

O tradicionalismo escocês nas considerações da Catedral

Decorrendo a fundação e o desenvolvimento de Singapura em décadas marcadas na Europa por correntes românticas e historicistas, voltadas ao passado e às raízes culturais e populares, torna-se compreensível que a sociedade britânica local tenha sido marcada singularmente por anelos de reconscientização das próprias tradições dos europeus ali residentes.

Isso disse respeito sobretudo aos escoceses, muitos provenientes das terras altas e das regiões montanhosas da Escócia.

Na consciência de serem Caledônios, termo usado para a designação de povos indígenas da Escócia da idade do ferro e da época romana, os escoceses acentuavam a antiguidade de suas origens.

No estrangeiro, - não apenas em Singapura - o cultivo de antigos costumes e tradições caledônias passou a desempenhar importante papel na manutenção de sua identidade cultural.

O Anglicanismo esteve presente em Singapura desde a sua fundação. O número considerável de escoceses participando do empreendimento colonial e, sobretudo, o seu tradicionalismo e religiosidade explica a dedicação da igreja anglicana ao padroeiro da Escócia.

Significativamente, os escoceses constituiram a maioria dos subscreventes de uma ação destinada a coletar fundos para a construção de uma igreja para a comunidade de Singapura, em 1834.

Essa veneração não teve, de início, a sua expressão arquitetônica neo-gótica. Seguiu, antes, a tradição neo-clássica primeiramente dominante nas colonias inglêsas.

Assim, em 1835/36, construiu-se uma primeira igreja de Saint Andrew, projetada por George Drumgoole Coleman (1795-1844), arquiteto de várias edificações da época que seguiram a tradição do paladianismo. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Franceses-e-Padroado-Portugues.html)

Alguns anos mais tarde, no início da década de 40, essa igreja foi substituída por outra, projetada por John Turnbull Thomson (1821-1884). Atingida por raios, entre 1845 e 1849, e acompanhada por presságios negativos, foi demolida em 1855.

Os anelos de construção de uma nova e mais magnificente catedral corresponderam aos intuitos de revitalização anglicana e de expansão cristã através evangelização ampla. Assim, em 1856, deu-se início à missão anglicana sistematicamente dirigida de Singapura.




Caledônios, os costumes tradicionais e a Sociedade Saint Andrews

Uma das mais significativas expressões do Caledonianismo foi a retomada de costumes festivos relacionados com o padroeiro da Escócia.

A mais antiga notícia de uma comemoração pública do dia de Santo André em Singapura data de 1835. No dia 24 de novembro desse ano, teve lugar um encontro de Caledônios na Sala de Leitura, quando decidiu-se oferecer um jantar público em homenagem a Santo André.  O jantar deveria ser realizando no dia 30 de novembro nos aposentos superiores da Court House, esperando-se a participação de 70 pessoas. Nesse jantar, observou-se cerimonial escocês, com a nomeação de presidentes e stewards. Também do ano seguinte, em 1836, conhecem-se dados relativamente pormenorizados a respeito dos seus principais iniciadores..

Esses jantares incluiam palavras de saudação e toasts. Assim, em 1843, houve nada menos do que 14 toasts, entre êles à rainha, à memória de Santo André, à Marinha, ao Governador de Singapura, ao Presidente dos USA, à Armada, ao rei dos franceses e a memória de Th. S. Raffles.  Em 1844, realizou-se baile e supper nas novas New Public Rooms. Os escoceses em Singapura cultivavam e manifestavam os seus sentimentos patriótico-nacionais também através da música instrumental e de cantos tradicionais.

Elos com a Índia Britânica. Colonel Ronald MacPherson (1817-1869)

Se a história administrativa, religiosa e cultural dos portugueses na região não pode ser estudada sem a consideração de seus elos com a Índia Portuguesa, o mesmo se dá com aquela dos súditos do Reino Unido relativamente à Índia Britânica.

A catedral anglicana de Singapura apenas pode ser construída com o apoio administrativo, do clero, de mão de obra e de materiais da Índia.

O seu projeto e a sua realização foram devidas ao já mencionado Colonel Ronald MacPherson, nascido no Isle of Skye, Escócia, e falecido em Singapura, um militar, engenheiro-arquiteto e administrador que servira na Índia e na China.

Como mencionado, MacPherson tornou-se o primeiro Colonial Secretary quando da transformação dos Straits Settlements em Colonia da Côroa. A êle remonta a inspiração do projeto segundo as ruínas da Netley Abbey, de Hampshire, que o haviam impressionado e cuja imagem guardara na memória.

Os trabalhos foram supervisionados pelo major J. F. A MacNair. A pedra fundamental foi lançada pelo bispo de Calcutá, Daniel Wilson, em 1856. Tendo iniciado os trabalhos, com muito empenho, MacPherson foi obrigado a abandonar Singapura um ano depois. Das soluções que previra para a sua parte ocidental, a de uma torre de base quadricular e a de um pórtico mais leve, o seu sucessor escolheu esse último, considerando a fragilidade dos fundamentos.

Em 1861, ali celebrou-se o primeiro serviço religioso. O sucessor do mencionado bispo de Calcutá, G. E. L. Cotton, consagrou o edifício no dia da conversão de São Paulo, a 25 de janeiro de 1862. Foi, desde então, aclamada como a igreja anglicana de mais refinada arquitetura do Este.

A igreja foi elevada a catedral em 1869, quando passou, de Calcutá, à jurisdição da Diocese de Labuan e Sarawak. Em 1870, o Arquidiácono John Alleyne Beckles consagrou-a como catedral da Diocese então unificada. O primeiro bispo anglicano, J. Ferguson-Davie, foi nomeado em 1909.

Questão sensível: construção da catedral por convicts da Índia

A dignidade, o requinte nobre, a delicadeza e sentimental doçura que emanam da Catedral St. Andrews recebem conotações amargas quando se considera ter sido ela construída com mão-de-obra prisioneira.

Como considerado em números anteriores desta revista, referentes sobretudo a Maurício (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/123/Indentured_immigrants.html), a Grã-Bretanha, - que se empenhou de forma particularmente intensa no movimento de combate ao trabalho escravo -, utilizou-se intensamente do trabalho forçado de setenciados nas suas colonias.

A atenção dada à escravidão em si, ao tráfico de escravos e às condições de vida de escravos, sobretudo nos estudos culturais relativos ao Brasil e a outros países das Américas ofuscou até hoje considerações mais diferenciadas de problemas de Direitos Humanos relacionados com o trabalho penitenciário e sua ação no Colonialismo.

O uso de trabalho de prisioneiros e sua justificação correcional não foram prerrogativas da Inglaterra. Setenciados foram usados pela França, tendo sido empregados, entre outros, na Guiana Francesa e na Nova Caledônia. Os russos os enviavam à Sibéria.

A história colonial britânica, porém, foi particularmente marcada pelo uso de convicts como mão-de-obra barata. Foram empregados nas colonias americanas no século XVIII, sendo enviados sobretudo à Georgia, a partir de 1733. Com a independência dos Estados Unidos, os cumpridores de penas passaram a ser transportados para regiões recentemente alcançadas ou descobertas. A partir de 1788, a Austrália tornou-se colonia penal, sendo o transporte apenas interrompido em 1868. Como salientado em números anteriores desta revista, os prisioneiros deram ali início ao povoamento europeu, foram usados como trabalhadores em cinco das maiores colonias e contribuiram decididamente ao desenvolvimento colonial. 

A Inglaterra enviou também prisioneiros ao Canadá e à Índia. Foram convicts indianos que, em grande número, contribuíram ao estabelecimento de Singapura.

Tratado Anglo-Holandês de 1824 e a perda da colonia penal de Bencoolen

A necessidade do seu emprêgo em Singapura foi uma decorrência da modificação de esferas de influência no Sudeste Asiático fixadas pelo Tratado Anglo-Holandês, de 1824: a das Índias Orientais Britânicas e a das Índias Orientais Holandesas. Se esse tratado levou a que Málaca, Penang e Singapura passassem definitivamente à esfera de influência inglêsa, causou também a perda de uma colonia penal britânica que existia desde 1685 em Bencoolen, no Sudoeste de Sumatra.

Necessitando-se de mão-de-obra para o estabelecimento de Singapura, foram então, a partir de 1826, trazidos convicts da Índia. Esses prisioneiros foram instalados provisoriamente na aldeia Temenggong, nas proximidades do rio Singapura, sendo mais tarde transferidos para acomodações permanentes.

Foram empregados na derrubada de florestas, na drenagem de terras pantanosas, na preparação de terrenos para a abertura de logradouros (Raffles Place), na construção de vias e de edifícios, entre êles o do farol de Horsbugh, e da Istana, palácio do sultão (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Afonso-de-Albuquerque.html), das primeiras obras militares de defesa, de prédios governamentais e, sobretudo, da Catedral St. Andrews.

Engenharia e superintendência de penitenciários em espírito esclarecido de benevolência correcional

O emprêgo de convicts na construção da Catedral relaciona-se estreitamente com as atividades do citado Colonel Ronald MacPherson, o arquiteto da igreja. MacPherson, de formação militar, unia, em si, atividades de engenharia civil a serviço da administração e de superintendência de prisioneiros. Tornara-se, em 1849, Engenheiro Executivo de obras de Penang e Superintendente dos convicts e, em 1855, passou a exercer as mesmas atividades em Singapura. O Motim Indiano de 1857, que causou distúrbios em Singapura, foi por êle controlado.

MacPherson deixou a imagem de um superintendente que manteve uma atitude esclarecida para com os cumpridores de pena, então mais de 2000. Possibilitava-lhes um considerável grau de liberdade, assim como treinamento profissional, tendo em vista tanto o progresso das obras públicas como a resocialização dos setenciados.

O sistema implantado, que procurava combinar trabalho árduo com bom tratamento, caracterizava-se pelo fato de serem os prisioneiros supervisionados por um deles próprios. Mantinha-se, assim, uma eficiente situação de auto-contrôle. Esse sistema mantenedor de disciplina correspondia, sob certos aspectos, a princípios vigentes na administração colonial, onde determinados cargos eram entregues a nativos de confiança, fomentando também sentimentos de lealdade.

Singapura pertencia à jurisdição do Inspetor Geral de Prisões de Bengala e passou a gozar de renome pela ordem e disciplina que ali reinavam.

Quando, em 1867, os Straits Settlements passaram do India Office para o Colonial Office, os convicts indianos foram transferidos para Andaman e a Ilha Nicobar, no Oceano Índico.

Como em outras regiões coloniais onde prisioneiros foram empregados, o destino individual dependia muito do acaso, ou seja, das qualidades humanas do supervisor. Esse fator da sorte foi intensificado com a adoção do sistema de indicação, onde os convicts passaram a ser entregues a colonos individuais para servirem como serviçais, pastores de gado, empregados domésticos e trabalhadores rurais.

Inserção na história do trabalho penal no Sudeste asiático: Klings

Os problemas relacionados com o trabalho forçado em Singapura exigem a consideração mais ampla da história penal no Sudeste asiático.

Os convicts da Índia eram popularmente denominados de klings. Essa denominação tem sido explicada pelo ruído que faziam as correntes atadas aos pés dos prisioneiros e que eram arrastadas nas ruas. Ela sugere o constante som de metal que preenchia as cidades em construção do mundo colonial britânico.

Entretanto, a palavra surge em outros contextos, por exemplo para determinar locais na Índia (Kalinga) e, sobretudo, em Málaca (Kampong Kling).

O termo era empregado pelos portugueses já no século XVI para designar pejorativamente tamilos em Málaca. Essa menção, ainda não adequadamente estudada, faz supor elos com indianos muçulmanos em trabalhos forçados. Nesse caso, o termo poderia ser uma onomatopéia usada por portuguêses, passando a expressão imitativa do ruído das correntes atadas aos pés à designação do seu portador e mesmo de um grupo populacional, independentemente de serem os seus membros cumpridores ou não de uma pena. Deveria, então, ser escrito „cling“.


Influência na vida social, cultural e esportiva da sociedade colonial

A polícia interna de Singapura relativamente aos convicts indianos, autoritária mas benevolente, imbuída de intenções corretivas e dirigida à manutenção de ordem e ao fomento do progresso, marcou a imagem da colonia no seu todo. Teve, também, influência na vida social e cultural da comunidade. Singapura passou a ser conhecida supraregionalmente como colonia particularmente ordeira e disciplinada.

Significativo é o papel que a prática de esportes desempenhou na vida comunitária da colonia. O primeiro clube de ginastica, o Turn Club, foi fundado em 1842.Os elos entre a prática desportiva, a cultura, as artes e o policiamento se manifestam na personalidade do escocês Charles Andrew Dyce (1816-1853). (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Franceses-e-Padroado-Portugues.html)

Nascido em Aberdeen, irmão mais novo de William Dyce (1806-1864), renomado artista escocês, chegou a Singapura em 1842, vindo da Índia. Ali se casou em 1845. A partir de 1847, tornou-se xerife das colonias.

Foi Primeiro Secretário do Singapore Sporting Club, dedicando-se também ao teatro amador na tradição „thespiana“ das colonias inglêsas e dos Estados Unidos. No campo das artes, produziu pinturas em sepia e aquarelas de paisagens e de costumes, obras que hoje fazem parte da The Charles Dyce Collection na Galeria da Ásia do Sul e Sudeste do Museu da Universidade Nacional de Singapura. No campo da arquitetura, foi responsável pela fachada da catedral católica do Bom Pastor. (Irene Lim, Sketches in the Straits: a compilation of the lecture series of Charles Dyce collection, Singapura: NUS Museums, National University of Singapore, 2004,63–67.

O principal esporte de meados do seculo de Singapura foi o cricket. Após encontro realizado em 1852, fundou-se o Singapore Cricket Club, que na décáda de 70  já contava com mais de 100 membros.

Em 1877, construiu-se um pavilhão, em 1884 uma sede com dois andares, cercada de varandas com gradeado e pilares de ferro, uma construção que tornou-se centro da vida social de Singapura.

Dentre seus muitos eventos, salientavam-se aqueles denominados de Europeans vs. the Rest. Além de cricket, praticou-se boliche a partir da década de 70, rugby football desde os anos 80 e hockey a seguir. Mulheres foram admitidas a partir de 1890.

O cultivo e o aperfeiçoamento das regras sociais tiveram a sua expressão nos bailes de Saint Andrews, que passaram a ser realizados regularmente em Singapura, entre outros no Singapore Club.

A organização da sociedade colonial, em particular fomentada pelos escoceses, levou à fundação da St. Andrews Society, estabelecida a 27 de novembro de 1908, uma época em que tanto o Governador como o Secretário Colonial eram provenientes da Escócia. Nos seus estatutos, previa-se a criação de um corpo de escoceses para a discussão de assuntos nacionais e locais, assim como para o levantamento de fundos.

Espírito de ordem, forma e decoro. Singapura e a prioridade da uniformização

Nesse contexto marcado pela ordem, compreende-se o significado dado a questões formais e de comportamento social, o que se manifestou também na prática musical.

Assim, chama a atenção a importância dada à questão da uniformização de cantores do côro da catedral. Em boletins diocesanos dos anos vinte do século XX, trata-se do problema da diversidade de vestimentas das cantoras como um prejuízo para a boa organização coral.

Se os meninos e os homens sempre haviam usado uniformes, tratava-se, agora, de uniformizar as vestimentas das mulheres. Isso surgia como uma necessidade sobretudo devido ao uso de chapéus segundo o costumes social britânico, alguns extravagantes e altos, que prejudicavam a aparência da unidade coral e o contato entre cantores e dirigente. Com essa medida, procurava-se fomentar a dignidade e a ordem do serviço religioso.

Essa questão da forma e da ordem na apresentação dos cantores parece ter sido de particular significado para as regiões coloniais, muito mais do que na própria Grã-Bretanha. O uso de uniformes para cantoras de coros tornou-se comum na Nova Zelândia. Várias outras catedrais do Império Britânico passaram a adotar a uniformização de trajes femiinos, supunha-se, porém, em Singapura, com orgulho, que ali fora o primeiro local a introduzí-la.

A ordem dizia respeito também à do respeito da tradição da prática musical. A execução de oratórios, representando o ponto alto da vida musical do Anglicanismo inglês, tornou-se a grande preocupação dos músicos da catedral de Singapura. Em particular o Messias de G. Haendel, fazendo parte integrante da tradição britânica, passou a ter um significado simbólico de excepcional relevância, exigindo a união de forças para a sua implantação na vida religioso-cultural da colonia. Trechos desse oratório já haviam sido executados em 1865, na Singapore Institution School, com o auxílio dos membros alemães da Liedertafel de Singapura.

Dos regentes que se empenharam na primeira realização completa dessa obra no século XX, distinguiu-se E. A. Brown, êle próprio cantor, barítono, que chegou a ter, sob a sua direção, um coro de ca. de 60 vozes e orquestra. Entre os nomes de cantores de Singapura de sua época, conhece-se o do Rev. T. Arnold Lee, tenor, e do organista P. A. F. David.

Do intento correcional à ordem e progresso na Educação. Meninos cantores

O ethos de Singapura marcado pela ordem e pelos objetivos correcionais do sistema dos convicts possuia um sentido ao mesmo tempo econômico e educativo. A sua concepção básica era a de unir a pena à resocialização dos setenciados através do trabalho, a caminho do alcance da liberdade. Possuía, assim um cunho re-formador e educativo.

Nesse contexto, a importância dada à disciplina escolar na formação da juventude que se depreende de textos da época surge sob nova luz. Um de seus aspectos foi a atenção dada à instituição de meninos cantores em Singapura. Procurou-se constantemente meninos com boa disposição vocal para o treinamento sistemático. Lamentava-se o pouco conhecimento que possuíam de música e mesmo da língua inglêsa.

Se o canto de hinos era de uso antigo, remontante aos primórdios da fundação de Singapura, gradualmente instituiu-se a prática dirigida do canto comunitário em diferentes confissões. Esse foi o caso da igreja armênia, a partir de 1835. Várias igrejas criaram coros, entre elas a do Bom Pastor (1843), a de São Pedro e São Paulo (1869), a Presbiteriana da Orchard Road (1878).A igreja Metodista destacou-se no canto e no ensino de hinos a escolares.

A preocupação pela formação adequada de meninos cantores foi, porém, sobretudo própria da Igreja Anglicana. A música fêz parte integrante do sistema educativo da St. Andrew‘s School, gozando os seus mestres de elevada consideração. Assim, exemplarmente, pode-se citar uma notícia do Diocesan Magazine, de 1921, onde se descreve a vinda, em navio, do principal da St. Andrew‘s School, lembrando do sucesso dos concertos realizados para a obtenção de fundos para o Bungalow Fund. Audições musicais e apresentações teatrais eram realizadas por ocasião de entrega de prêmios para alunos da escola primária.(The Singapore Diocesan Magazine XI/41 (February 1921).


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Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. (ed.) "Klings na edificação da catedral anglicana de St. Andrews. Ordem e Progresso em Singapura e a disciplina correcional do sistema penitenciário a serviço do Colonialismo britânico". Revista Brasil-Europa 127/12 (2010:5). www.revista.brasil-europa.eu/127/trabalho-correcional-no-Colonialismo.html





  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 127/12 (2010:5)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2645




Klings na edificação da catedral anglicana de St. Andrews
Ordem e Progresso em Singapura
e a disciplina correcional do sistema penitenciário a serviço do Colonialismo britânico


Ciclo „Direitos Humanos, Estudos Culturais e História Diplomático-Cultural“ da A.B.E.
Preparatórias à passagem dos 500 anos da tomada de Goa e de Málaca pelos portugueses
Preparatórias para a passagem dos 500 anos da conquista de Goa e de de Málaca pelos portugueses. Catedral St.Andrews, Singapura
25 anos de fundação alemã do
Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.

 










Singapura
Fotos (em cores):
A.A.Bispo 2010
©Arquivo A.B.E.
Fotos antigas:
detalhes de quadros informativos em logradouros públicos de Singapura

 

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