Indentured immigrants. Revista BRASIL-EUROPA 123. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 
A ilha de Maurício assume particular relevância na história relacionada com a escravidão, com a substituição do trabalho escravo pelo livre e, neste contexto, com os movimentos migratórios no mundo.


Esse significado é internacionalmente reconhecido, como testemunha o fato de ser o antigo abrigo de trabalhadores-imigrantes em Port Louis considerado pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade.


Para o Brasil, estudos da emancipação dos escravos e suas consequências para a antiga Île de France podem levar a cotejos de situações e de contextos nos estudos relativos à substituição do trabalho escravo e à imigração.


Do ponto de vista cultural, a situação de Maurício demonstra o quanto a imigração, fomentada pela procura de mãos de obra, levou a uma mudança da configuração étnica e social da ilha, da sua imagem e da sua própria identidade. Essa transformação, ocorrida a partir de 1835, à época da administração britânica, foi determinada pela vinda de grande quantidade de trabalhadores da Índia. A situação cultural anterior, marcada pela época colonial holandêsa e sobretudo francêsa, caracterizada pela presença de africanos e pelo predomínio de creolos, passou a ser gradualmente substituída por uma nova configuração sócio-cultural.


Comparando esse desenvolvimento histórico com o do Brasil, a atenção é dirigida às regiões de colonização centro-européia, sobretudo alemã, do sul do país. Também aqui, em algumas áreas, uma situação cultural determinada pela formação colonial do Brasil de séculos anteriores, poderia ter sido e o foi, em parte, submersa. Esse processo de transformação cultural não foi tão intenso como o ocorrido em Maurício, fato explicável pelas diferentes dimensões de ambos os países.


O fato de Maurício pertencer a um poder colonial de onde procedia a maior parte dos imigrados criou condições muito mais decisivas para a transformação da configuração cultural dominante. Assim, enquanto o Brasil não se tornou, no seu todo, centro-europeu, mas manteve na maior parte de seu território configurações culturais provenientes da colonização lusa, Maurício modificou-se profundamente, e esse processo transformatório mantém a sua dinâmica.


O estudo da Île de France da época anterior à vinda de grandes contingentes de trabalhadores livres, sobretudo da Índia, - o Maurício dos creolos -, marcado, na sua diversidade cultural, sobretudo por expressões culturais euro-africanas, necessita basear-se muito mais em reconstruções históricas e memoriais do que estudos similares relativos ao Brasil.


O estudo da transformação étnica, cultural e religiosa da antiga Île de France, o seu afastamento de uma situação na qual apresentava mais similaridades com a do Brasil colonial, contribui, para além de cotejos e construções hipotéticas do que poderia ter-se tornado o Brasil se o ocorrido no sul tivesse alcançado todo o país, a um aguçamento da sensibilidade para situações de transformação cultural no país, onde configurações mais antigas foram substituídas ou submersas, como foi o caso de São Paulo.


Cosmopolitismo do empório comercial do mundo


O desenvolvimento da capital da Île de France partiu dos planos de fortalecimento do seu porto, realizados poucos anos antes da chegada de Mahé de La Bourdonnais (1699-1753), em 1735. Este, certo da importância da ilha na esfera do Índico, realizou uma política de desenvolvimento da colonia que levou, em poucos anos, a que Port Louis se transformasse em "empório comercial do mundo". Para a realização dos trabalhos, trouxe construtores, mestres-de-obras e pedreiros de Madras e Madagascar, além de escravos de Moçambique.


À diversidade de proveniência dos escravos das zonas rurais (Veja texto sobre Milbert, nesta edição) somou-se agora a diversidade dos trabalhadores urbanos, transformado a cidade em centro de cosmopolitismo.


No bairro próxima ao porto, o Trou Fanfaron, origionou-se o posterior Eastern Suburb, habitado por trabalhadores de diferentes regiões do globo. Com a emancipação, no século XIX, consideráveis contingentes de ex-escravos aqui se instalaram. A estrutura étnica da população operária passou a refletir-se na configuração espacial da cidade. Os jolofs da África Ocidental, que atuavam sobretudo como marujos, possuíam o seu Camp Yoloff, os pedreiros vindos do sul da Índia reuniam-se no Camp Malabar, os marujos muçulmanos de Bengala no Camp Lascars, os escravos da África, do Madagascar e da Índia, que trabalhavam para o govêrno, reuniam-se em área distinta daquela dos negros livres (Camp des Noirs Libres).


Consciência histórica e cultura comemorativa


Conhece-se, do Brasil, casos em que projetos de criação de monumentos e museus da imigração partiram dos próprios círculos de imigrantes e seus descendentes. Em Maurício, porém, devido às dimensões muito maiores da transformação cultural, uma iniciativa similar assumiu relevância nacional.


O desenvolvimento da consciência histórica de grupos de ascendência indiana intensificou-se a partir da década de 70 do século passado. Bickramsing Ramlallah, jornalista, trabalhador social e editor do jornal Mauritius Times, passou a salientar a necessidade de conservação do Coolie Ghat e considerá-lo como monumento histórico. Com a ajuda de voluntários, em geral jovens, tais como aqueles do 4th Mauritius Hindu Scouts, o local foi preparado. Instituiu-se também uma cerimônia anual em lembrança da chegada dos indianos a Maurício. Conseguiu-se, quando da visita de Indira Gandhi, em 1974, que o local fosse incluído na programação oficial.


Em 1987, designado agora como Aapravasi Ghat (local de chegada de imigrantes"), a área foi elevada a monumento nacional, incluindo um centro cultural, uma casa de oração e um centro de turismo. O dia 2 de novembro passou a ser celebrado como dia da imigração, sendo oficializado como feriado nacional, em 2001. A pesquisa arqueológica local passou a ser dirigida por especialistas da Universidade de Maurício. Em 2002, o Primeiro Ministro do país procurou autoridades da UNESCO para requisitar a nomeação a Patrimônio Mundial da Humanidade. Em 2004, foi visitado pelo Diretor-geral da UNESCO.


O sistema de "indenture" ou engagismo. Índia-Maurício-América


O significado histórico do monumento reside no fato de ser o único do Índico e, ainda mais, o único do mundo relacionado à chegada de trabalhadores contratados pelo sistema de identure. É, assim, um monumento da história de trabalho não-livre da época pós-escravocrata. Esses trabalhadores foram os antecessores da maioria dos atuais mauricianos. Daqui partiram trabalhadores que foram levados não apenas para outras regiões do Índico (La Réunion) e do Sul da África, mas também para o Caribe, sobretudo para Trinidad, e para a Guiana. Assim, estudos culturais euro-brasileiros que se dediquem a relações interamericanas e confrontam-se com a presença de indianos nas Guianas e nas Antilhas, necessitam considerar esses caminhos migratórios que passam por Maurício.


O monumento dirige a atenção dos pesquisadores da história da escravidão, do trabalho e da imigração no Brasil à necessidade de consideração das diferentes possibilidades cogitadas e colocadas em Na Austrália, a Grã-Bretanha procurava promover a exploração econômica e a implantação colonial sobretudo através de penitenciários ("convicts"). Em Maurício, porém, a situação era outra, pois a ilha possuia uma estrutura econômica já secular de trabalho escravo. Com a emancipação dos escravos decidida pelo Parlamento britânico, em 1833, pensou-se num novo sistema de obtenção de trabalhadores para as colonias britânicas. O sistema projetado para Maurício deveria provar que o trabalho livre seria superior ao escravo. Nesse sistema, homens e mulheres podiam, por meio de um contrato, obrigar-se à realização de trabalho não-livre por tempo indeterminado. Essa substituição da mão de obra representou um procedimento distinto daquele empregado na Austrália: foi um "grande experimento", e o seu primeiro laboratório foi Maurício.


Às vésperas da abolição da escravidão, levada a efeito a 1 de fevereiro de 1835, chegou o primeiro navio de contratados com 33 trabalhadores da Índia. Esse fato deu-se no dia 2 de novembro de 1834. Os trabalhadores passaram a ser empregados nas docas, na construção de estradas, ferrovias e em construções. Edificaram-se estações de quarentena e uma rêde de abrigos nos canaviais estatais. O Vagrant Depot, local para encarceramento de trabalhadores com problemas legais, já existia desde 1815. Passou a ser posteriormente prisão, tanto para imigrantes "velhos" como "novos".


As preocupações atuais de conservação histórica e de recuperação da memória dos trabalhadores indianos não se reduzem ao abrigo de chegada. Também incluem pequenas construções onde recebiam ensino (baitkas e madrassas), assim como capelas e casas de orações (kalmayes, mesquitas e templos).

O monumento em Maurício chama a atenção dos estudiosos da imigração no Brasil para a necessidade de uma consideração mais diferenciada das condições sob as quais os imigrantes vieram nas suas relações com a história do trabalho e da emancipação de escravos. Maurício demonstra, de forma particularmente expressiva, de como esses imigrantes-trabalhadores, ainda que nos primeiros anos em situação contratualmente semi-livre, enraizaram-se e expandiram-se a ponto de levar a uma profunda transformação demográfica e cultural.


(...)


T. Krämer e grupo redatorial
sob a direção de A.A.Bispo




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


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  1. Monumento Aapravasi Ghat, Port Louis.
    Fotos H. Hülskath

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 123/17 (2010:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho científico
órgão de
Brasil-Europa: Organização de estudos teóricos de processos interculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
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Doc. N° 2551


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Cultura memorial e mudanças de identidade e imagens

Indentured immigrants em época pós-escravocrata

Do programa da Academia Brasil-Europa Atlântico-Pacífico de atualização dos estudos culturais transatlânticos e interamericanos
Ciclo de estudos nas ilhas Maurício, 2009
sob a direção geral de A.A.Bispo

 

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