Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Santiago de Compostela. Foto A.A.Bispo©

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Santiago de Compostela. Foto A.A.Bispo©

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Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 138/12 (2012:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2915


A.B.E.

Universidades em visita


Da perspectiva teórico-cultural nos estudos de concepções e expressões compostelanas
De fins do Ocidente subindo a Europa pelos seus caminhos
à luz de Hermes como imagem paradigmática

Ciclos de estudos na Itália, França, Espanha e Portugal pelos 500 anos da morte de Amerigo Vespucci (1451-1512)
15 anos de abertura do Centro de Estudos Brasil-Europa da A.B.E. na Alemanha

 

Um dos ciclos de estudos euro-brasileiros realizados em maio e junho do corrente ano teve lugar na cidade galega de Santiago de Compostela, um dos maiores centros religioso-culturais da Europa, comparado nas suas dimensões e significado sob muitos aspectos com Jerusalém e Roma, sede de universidade de renome e projeção em diferentes esferas do saber.

Universidade de Santiago. Foto A.A.Bispo©

Santiago de Compostela. Foto A.A.Bispo©
Procurada por peregrinos de toda a Europa e outros países do globo, Compostela salienta-se pela sua internacionalidade, o que determina a sua vida cultural e mesmo de estudos e pesquisas, sendo sede de congressos e convenções. Toda a parte antiga de Santiago de Compostela foi declarada em 1985 pela UNESCO como Patrimônio da Cultura Mundial.

O culto de Santiago de Compostela tem sido considerado sob diferentes enfoques, teológico, hagiográfico, histórico, cultural e social, havendo uma vasta e diversificada literatura a respeito. Também nos estudos euro-brasileiros já foi alvo de pesquisas e tratado em seminários e colóquios, incluindo visitas e trabalhos em Compostela.

A razão da revisita de Compostela em 2012 residiu no escopo temático dos ciclos de estudos, voltados à necessidade de uma perspectiva científica nos estudos culturais em época de intensificação de tendências obscurantistas de fundamentação religiosa na Europa e em outras regiões do globo.

Como centro marcado pelo culto religioso, levantando muitas questões de história e significado não solucionadas e mesmo enigmáticas, apresentando simbólica caracterizada pela luta contra o Islão, Compostela surge como local particularmente favorável para reflexões acerca de uma perspectiva adequada nos estzudos culturais a serviço de conhecimentos esclarecedores.

A atenção dirigida em especial aos fundamentos de processos atlântico-mediterrâneos nos ciclos traz à consciência o papel de extraordinária importância de Compostela e das expressões do culto, uma vez que diz respeito nada menos do que a um dos doze apóstolos, ao  Apóstolo do Ocidente. As narrativas de sua vida e ação, assim como as justificativas do culto em Compostela são marcadas pela sua vinda de Jerusalem através do Mediterrâneo aos fins da terra então conhecida.

Essa viagem em direção ao extremo ocidental junto ao Oceano, conotado negativamente na visão do mundo e do homem da Antiguidade, sem possuir suficiente documentação histórica, exige análises mais aprofundadas das imagens a ela subjacentes.

A extraordinária importância de Compostela relativamente a outros centros de culto de apóstolos não pode porém ser explicada exclusivamente com base nos dados explicitamente oferecidos sôbre o Apóstolo pelos textos bíblicos e que são, como em outros casos, insuficientes para esclarecer formas de expressão, tradições e narrativas.

Somente uma leitura não superficialmente dos textos, uma atenção dirigida a sentidos não expressos literalmente, mas que podem serem revelados a partir de análises adequadas de sentidos e de ordenações de imagens subjacentes abre caminhos para a sua compreensão.

Esse procedimento hermenêutico de leitura dos textos bíblicos não surge, porém, como suficiente. Dizendo respeito à cristianização do Ocidente, a um processo de transformação cultural, imagens e concepções de edifícios de visões do mundo e do homem da Antiguidade não-bíblica não podem deixar de ser considerados, uma vez que forneceram as bases para a ação transformatória através de sua referenciação bíblica. A aproximação culturológica, portanto, surge como indispensável nos esforços de elucidação do fenômeno representado por Compostela.

Santiago de Compostela. Foto A.A.Bispo©
A necessidade desse enfoque cultural evidencia-se já pela insuficiência de fontes históricas e pelas questões relativas à realidade histórica das ocorrências transmitidas quanto à vinda, a ação e a morte do Apóstolo na região. A existência de narrativas inverossímeis indicam claramente que apenas uma interpretação mais profunda de linguagem visual, - ou seja, não literal de narrativas -, pode fornecer maiores esclarecimentos.

Referências à atuação do apóstolo Tiago Maior e a sua morte na Espanha, já se encontram no enciclopédico Isidoro de Sevilha (ca. 556-636) (De ortu et obitu patrum, PL 83,151). Esse erudito oferece uma explicação também para o fato de Santiago Zebedeu ser considerado como peregrino: o seu sobrenome derivaria daquele de seu pai, a quem abandonou, juntamente com João, para seguir o autêntico Pai, Deus (Etymologiarum VII, 9,13). Essa explicação contribui à compreensão dos vínculos de Santiago com imagens relacionadas com peregrinos da tradição não-bíblica

Já há muito tem-se tentado elucidar aspectos simbólicos de expressões do culto de Santiago de Compostela, inclusive através do estabelecimento de relações com tradições e correntes religiosas heterodoxas, da mística cabalística ou da alquimia. O desenvolvimento desses estudos, inclusive com a correção de possíveis interpretações inadequadas ou mesmo errôneas, exige, porém, o estudo mais diferenciado das inserções das expressões no contexto global de um sistema imagológico de antiga proveniência e que gradualmente, através de estudos contextualizados, passa a ser reconhecido e reconstruído na sua coerência interna.


Monumental marco de pedra sôbre a sepultura do enviado ao Ocidente

Perante a Catedral de Santiago de Compostela, o observador impressiona-se com a sua monumentalidade e a massa do complexo construído no qual se integra, e que tal como uma montanha de pedras se eleva no espaço urbano, constituindo o marco último de caminhos repletos de marcos de pedras que a êle dirigem.

Essa montanha de pedras se situa sôbre a sepultura de S. Tiago Maior, cujas relíquias são conservadas na cripta da catedral. O principal objeto de peregrinações e de culto é o relicário de prata que pode ser contemplado na sua cova a partir de uma pequena abertura por aqueles que descem as estreitas escadas que levam ao subterrâneo por debaixo do altar. As relíquias ali veneradas incluem um crucifixo de ouro, datado do ano de 874, que contém, segundo a tradição, nada menos do que resíduos do madeiro da própria cruz de Cristo.


Aqui se evidencia o elo particularmente estreito que vincula o culto desse primeiro mártir dos apóstolos a Cristo, fato que exige especial atenção no estudo do conjunto imagológico, marcado por grande complexidade.

O primeiro mártirio entre os apóstolos une-se aqui com o sumo sacrifício do Filho, e o sentido de louvor ao Pai que dele se eleva não pode ser representado de forma mais impressionante do que com o grande incensário - o Botafumeiro - , que, movido por seis homens através de cordas, é levado em todas as direções do espaço.


O observador que sobe as escadarias do monte de pedra edificado sob o qual se eleva a catedral, depara-se, na fachada ocidental - a Fachada del Obradoiro - , com uma obra plástico-arquitetônica do Barroco cuja leitura prepara a compreensão de elementos fundamentais da linguagem visual do edifício de concepções.

No alto de sua parte central depara-se com a imagem do apóstolo como enviado peregrino, trazendo os atributos que desde épocas imemorais caracterizam aquele que peregrina, o chapéu e a bolsa do viajante, ambos marcados com o símbolo da concha e, com isso, complexo simbólico relacionado com a água e com a luz que irradia da auréola do apóstolo.

Essa imagem central é ladeada, em posição inferior, por aquelas dos seus dois discípulos Atanásio e Teodoro, também representados como peregrinos.

O conjunto plástico desperta a atenção a um conjunto de imagens marcado por tríades, sugerindo também aqui um paralelo com as três cruzes no Calvário e, portanto, entre o primeiro martírio dos apóstolos e a morte do Filho na cruz, emprestando a todo o conjunto arquitetônico a aparência de um monumental calvário, trazendo à lembrança aqueles que se conhecem na Bretanha.


Essa relação com a morte manifesta-se também sob o aspecto da sinalização sonora, uma vez que uma das torres da catedral, a Torre de las Carracas, situada à esquerda daquele que contempla a catedral, do seu lado norte, é dedicada às matracas que substituem os sinos na Semana Santa. Contrapondo-se à Torre de las Campanas, com os sinos, indica os elos entre a linguagem visual e a sinalização acústica, assim como a abrangência das concepções com todo o ciclo do ano, fornecendo um subsídio de grande  relevância para a leitura mais profunda de sentidos de duplas torres na simetria de fachadas ocidentais de igrejas.

Sob o ponto de vista histórico-artístico e patrimonial, mais significativo do que a fachada barroca é o Pórtico de la Gloria que protege, uma obra plástico-escultural que remonta ao século XII, atribuída a um mestre Mateo e seus discípulos.


Da antiga catedral medieval resta hoje também o portal sul, a Puerta de las Platerías.


Essas obras testemunham a importância do culto de Santiago na Idade Média, cujo florescimento foi marcado pelo início da construção da catedral em 1077, época de soberania de Afonso VI (1040-1109), rei de León e de Castela, um dos principais nomes da Reconquista e do combate aos muçulmanos, conquistador de Toledo (1085).

Aquele que contempla o Pórtico e reflete sobre a época de sua criação, conscientiza-se da existência de complexos elos entre imagens relacionadas com o apóstolo como enviado e peregrino que, de forma não explícita literalmente no texto bíblico, surge como "mata mouros", o que determina atualizações históricas no campo de tensões entre a Cristandade e o Islão.

Nessas dimensões de sentidos que se apresentam à primeira vista como não-fundamentados, até mesmo incompreensíveis, reside não apenas o principal problema dos estudos imagológicos relacionados com o apóstolo como também um complexo de extraordinária importância na análise do edifício de imagens de uma visão do mundo e do homem de remotas origens.

Esse complexo demonstra de forma exemplar a necessidade de procedimentos voltados a sentidos não literais de texto, da leitura de sentidos velados como único fundamento de interpretações adequadas e que, para tal, não podem ser arbitrárias, mas resultado elas próprias de procedimento científico de captação e estudo de imagens e estruturas subjacentes. Manifesta-se, aqui, de forma particularmente evidente, os elos estreitos entre Santiago de Compostela e a Hermenêutica.

Leitura de imagens: espada, "filho do trovão" e concha

Por todo o lado aquele que procure ler a linguagem visual nas plásticas e na arquitetura encontra a Cruz de Santiago que, com os seus goles, sugerem uma espada de antiga forma. Tornou-se símbolo da Ordem Militar de Santiago, sendo também designada como Cruz de los Caballeros de Santiago, surgindo na emblemática de diversas localidades. Interpretada sob diferentes perspectivas, traz à lembrança a arma com a qual o apóstolo foi decapitado e práticas de cavaleiros combatentes na Reconquista e em Cruzadas.

De outros contextos, porém, em particular daqueles da imagologia do Apóstolo Paulo, conhece-se o significado da espada como sinal da Palavra. É nessa imagem que se encontra um ponto de partida significativo para o entendimento das complexas relações entre o enviado e peregrino e o cavaleiro "matador".

Na tentativa de compreensão dos fundamentos da imagem dessa cruz, a atenção dirige à designação de Tiago o Maior, juntamente com o seu irmão João, de "filhos do trovão" (Marcos 3,17; Lucas 9,54).

Essa designação de Boanerges encontra-se interpretada em Isidoro de Sevilha como indiacadora da firmeza e magnitude de sua fé (Etymologiarum, loc.cit.). A imagem do trovão, porém, chama a atenção a um contexto necessariamente derivado da leitura de sinais no mundo natural, no caso o do soar dos trovões das alturas do céu quando impregnado de água e a dos raios. Esse contexto é conhecido também dos estudos concernentes à imagem da concha que tanto significado desempenha na linguagem visual de Santiago.

A idéia de que a origem das pérolas em conchas fechadas remonta a raios que nelas caem em ocasiões de tempestades, conhecida de diferentes contextos da tradição, foi utilizada como elucidação da concepção do Logos em virgindade de Maria (A.A.Bispo, Grundlagen christlicher Musikkultur in der außereuropäischen Welt der Neuzeit: Der Raum des früheren portugiesischen Patronatsrechts, Musices Aptatio 1987-88, Roma 1989).

A figura da pérola fundamenta-se na comparação do reino de Deus com uma pérola procurada por um comerciante (Mateus 13, 45-46).  Essa comparação apresenta uma fundamentação cristã para a elucidação de relações entre o peregrino no modêlo de Tiago Zebedeu com o comércio. O apóstolo, segundo Isidoro de Sevilha, surge, figurativamente, como aquele comerciante a caminho à procura da pérola. Assim como o atributo no chapéu do peregrino indica, é dirigido segundo a concha, mãe da pérola, o que indica as relações marianas do complexo compostelano.

Irradiação de Santiago de Compostela - caminhos e suas dimensões

O fato de ser o apóstolo Tiago Zebedeu modêlo de peregrino, imagem fundamentada segundo Isidoro de Sevilha no seu nome e no fato de ter abandonado o seu pai para seguir o Pai autêntico, pode elucidar também o significado do Caminho de Santiago.

Toda a Europa é cortada por esse Caminho, ou melhor, por uma rêde de caminhos que levam a essa cidade da Galícia, ao longo dos quais desenvolveram-se núcleos urbanos e estabeleceram-se relações e intercâmbios. Esses caminhos apresentam marcos, memoriais, monumentos, capelas e igrejas, albergues para peregrinos e edifícios que têm a sua história determinada pela peregrinação ao longo dos séculos.

Estudos de ocupação territorial, de vias de comunicação e de urbanismo na Europa no seu todo não podem deixar de considerar essa rêde de estradas que cruzam países e interligam regiões, atravessando e superando fronteiras.

Sendo esses caminhos originados ou pelo menos caracterizados pelo escopo da peregrinação e suas expressões culturais, trazem à consciência a necessidade de condução de estudos da configuração viário-territorial e do urbanismo em estreito relacionamento com estudos culturais. 

A existência dessa estrutura viária que transpõe limites de países e regiões, cujos territórios, fisionomias culturais e mesmo identidades foram frequentemente modificados no decorrer da história, assume na atualidade dos esforços de integração européia significado excepcional, pois revela uma estruturação espacial indicadora de unidade nos fundamentos da ocupação e do desenvolvimento da Europa.

Para os países ibéricos, essa rêde assume uma importância particular, pois esse local afastado do extremo Ocidente torna-se ponto de referenciação urbana e cultural, determinando perspectivações de todo um sistema de organização do espaço e da linguagem visual.

Com as viagens marítimas dos povos ibéricos, com os Descobrimentos, colonizações e com as atividades missionárias, essa rêde de vias de comunicação teve uma continuidade para além do continente e do oceano, estabelecendo-se também em regiões da África e das Américas, aqui também referenciadas, pelo menos virtualmente, segundo esse centro de culto na Galícia.

Surge, assim, uma configuração do espaço que ultrapassa continentes e o oceano, determinada por rotas e vias que possuem um direcionamento específico. Para os países europeus, trata-se de elos com o Ocidente mais remoto do continente, para os países americanos não com o seu Ocidente, mas com o Ocidente da Europa e de um edifício de visão do mundo e do homem decorrente de determinadas situações geográfico-culturais e que determinam, por sua vez, uma geografia simbólica.

Nessa rêde de vias e canais culturais marcados por Compostela reside um fundamento estrutural da ocidentalização cultural de países do Novo Mundo. Considerar essa rêde e o fenômeno representado por Santiago de Compostela constitui, assim, tarefa indispensável para estudos de processos culturais que focalizam privilegiadamente países do continente americano nas suas relações com a Europa.

Descendo aos fins da terra e subindo pelo Caminho em norteação real ou figurada

O significado do caminho de Santiago na Europa e suas extensões não se limita à constatação da existência de vasta malha viária, de cidades, capelas, edifícios e marcos por êle determinada.

Já numa primeira aproximação percebe-se que é o Caminho, mas ao mesmo tempo caminhos, ou seja, a pluralidade é subsumida a uma imagem singular. A dimensão cultural dessa unidade na diversidade traz consigo também um aguçamento da sensibilidade para questões de direcionamento e do objetivo pelo qual se percorre o caminho.

Se o apóstolo Tiago Zebedeu dirigiu-se aos fins da terra no extremo Ocidente junto ao oceano, essa sua viagem representa figurativamente uma descida a uma região associada com o poente, onde o sol se põe e as trevas da noite dominam. Os peregrinos recapitulam esse movimento do apóstolo, descendoao Ocidente para visitar a sua sepultura, mas de lá retornando, refortalecidos, pelos caminhos que apenas podem indicar culturalmente um Norte, mesmo que este não corresponda à realidade geográfica.

Há, assim, subjacente ao caminho, um movimento de descida e de subida, um levando a uma região conotada negativamente, outro representando uma saída, agora com uma norteação.

Esse movimento de descida e subida é conhecido da narrativa bíblica, contextualizado na imagem da ida e da saída do Egito de Abrahão e, sobretudo, dos israelitas libertados da servilidade sob a condução de Moisés, superando o Mar Vermelho, assim como do rei David. No Novo Testamento, esse movimento de descida ao Egito e subida está presente na viagem da Sagrada Família para, cumprindo as Escrituras, o Filho de Deus fosse de lá tirado.

Tem-se, assim, um movimento de descendência e ascendência que pode ser examinado sob o aspecto de uma imagem básica subjacente às várias atualizações e contextualizações. (A.A.Bispo, Christliche Musikanthropologie: Eine Einführung, Musices Aptatio 1992, Roma/Colonia 1999)

Assim como já salientado na imagem da pérola e do comerciante que a procura, também aqui, nesse movimento básico de subida e descida, os estudos dirigidos aos fundamentos das imagens devem partir da leitura de sinais no mundo captável pelos sentidos.

O movimento ascensional corresponde à parte do ano no hemisfério norte que vai do inverno ao verão, o movimento descensional àquele que vai do verão ao inverno, com todas as suas implicações, associações e correspondências filosófico-naturais. O complexo de concepções relacionados com Santiago dizem respeito primordialmente ao cume da montanha, época dos mais longos dias e, portanto, marcada por maior luminosidade. É justamente nessa época do ano que se celebra também a sua data (25 de julho), marcado há séculos também na cultura popular.

Fundamentos helênicos de imagens. De Hermes a Santiago de Compostela

Os estudos culturais voltados à linguagem visual e à ordenação de imagens desenvolvidos no âmbito dos trabalhos euro-brasileiros vêm demonstrando similaridades e paralelos entre concepções e expressões do culto de Santiago com as que se conhece de Hermes da Antiguidade.

A coerência entre imagens é tão acentuada que leva à conclusão de ter sido o culto de Santiago de Compostela remontante a um processo de transformação religioso-cultural de culto local numinoso relacionado com Hermes ou com correspondente personificação da Antiguidade tardia, por exemplo no âmbito do Mitraísmo.

Na consideração desses paralelos deve-se atentar ao complexo de concepções relacionadas com Hermes e o seu extraordinário significado no todo, nem sempre adequadamente compreendido e apresentado na mitografia.

Hermes era filho de Zeus e, portanto, "filho do trovão". Era o viajante por excelência, sempre a caminho, sendo esses marcados por montes de pedras que serviam à orientação dos peregrinos ou para sinalizar a sua presença .  Esses eram - e são - caracterizados por montes de pedras, - os "homens de pedra" - aos quais cada peregrino juntava - e junta - uma pedra.

Hermes personalizava o próprio caminho, uma vez que o seu nome remonta a hermax ou hermaion, designações dos marcos de pedra orientadores e dos quais se salientava em geral uma pedra central. Caminho e orientação relacionam-se com a idéia do pilar central ou eixo, levantado também à frente de casas, pelo qual era chamado de Pylaios ou Propylaios.

Os marcos de pedras remontavam provavelmente a sepulturas, e as imagens de Hermes indicam relações com a morte e com mortes. Ele, que era proveniente das alturas, tendo nascido no monte Killene de uma ninfa, não apenas descia às regiões inferiores e da morte, como também conduzia de lá as almas, surgindo como Psychopompos.

Sempre em movimento, Hermes era o protetor dos viajantes e peregrinos, sendo representado com vara, com a bolsa e o chapéu de viagem. Essa vara representava ao mesmo tempo a sua função de condução, a de pastor, evidenciada na sua imagem de "bom pastor" com uma ovelha sobre os ombros, em imagens de cunho arcádico.

A Palavra e Hermes na linguagem visual segundo S. Isidoro de Sevilha

As elucidações de Isidoro de Sevilha possibilitam entender várias imagens que ainda permaneciam vivas na sua época, contribuindo as suas elucidações ao esclarecimento de diferentes relações. (Isidoro de Sevilha, Etymologiarum VIII, 11, 45-49)

Delas deduz-se ser Hermes/Mercúrio antes de tudo compreendido como uma personificação da palavra. Segundo Isidoro, Mercúrio era assim chamado por que corre pelo meio, assim também como a palavra corre pelo meio dos homens, assumindo assim uma função de mediador. A designação grega de Hermes também significaria palavra ou o sentido ao qual a palavra se refere.

Esse elo fundamental com a palavra explicaria também ser Hermes emblema do comércio, presidindo transações comerciais, o que seria compreensível pelo fato da palavra circular entre vendedores e compradores. A palavra explicaria também o atributo das asas, pois palavras correm muito velozes.

Para Isidoro, era chamado de mensageiro pelo fato de que todos os pensamentos se manifestam por meio da palavra. O fato de ser considerado como mestre de roubo e de ladrões era explicado pelo fato da palavra roubar a atenção dos ouvintes. A sua vara, com as duas serpentes, imagens do veneno, demonstraria que é graças às palavras dos mediadores que se serenam os que lutam e porfiam, e, por isso, os legados em missão de paz receberiam o nome de caduceatores.

Linguagem visual nas suas harmonizações com imagens egípcias e constelações

Isidoro explica também a partir da compreensão de Hermes como personificação da palavra o fato de ser representado com cabeça de cão. Essa imagem seria compreensível, uma vez que o cão, entre todos os animais, é o mais sagaz e astuto, correspondendo assim às características de Hermes. (loc.cit.)

Essa elucidação de Isidoro é particularmente significativa, pois permite compreender a harmonização de Hermes com o egípcio Anubis, importante chave para estudos de intercomunicação ou comunicação inter-cultural da Antiguidade tardia. Anubis era estreitamente relacionado com morte e sepultura, com necrópoles, sendo chamado de "primeiro dos ocidentais".

A elucidação dos elos entre Hermes e Anubis permite também análises mais diferenciadas do tipo não-bíblico do homem cujo paradigma é Hermes. O sinal de Anubis nos céus é a constelação do Canis maior, situada no cimo da montanha do ano, no alto do movimento ascendente, abaixo da Eclíptica. Na interpretação grega, esse cão, precedido por um cão menor, é o condutor de Orion, o grande caçador que procurava recuperar a perdida luz dos olhos.

No processo cristianizador, caracterizado pela referenciação dos tipos da antiga cultura grega pelos tipos do Velho Testamento, o Canis maior foi identificado com as correspondentes imagens da narração bíblica, em especial com o rei David, o Salmista, aquele que com a sua lira mitigou o sofrimento espiritual de Saul.

A transformação cristianizadora, caracterizada sobretudo pela sua natureza anti-típica, não se resumiu a essa referenciação bíblica do antigo tipo, mas orientou-se fundamentalmente pelo anti-tipo, existente apenas no edifício das imagens da Antiguidade não-bíblica.

A imagem que aqui representa aquele que, tendo descido às regiões inferiores, ali combatido com astúcia, ascende, assumindo a condução, sendo coroado, é Perseus. O complexo que apresenta Perseus como libertador de Andrômeda, a filha de Kepheus e Cassiopea domina, na linguagem das constelações, a esfera superior da parte ascendente do ano. Esse conjunto imagológico contrapõe-se, assim, na anti-tipologia, àquele representado pelo complexo de Orion na parte inferior do edifício de imagens, ou seja, aos tipos.

O complexo anti-típico denota assim o motivo da morte e subida salvadora das profundezas, marcado pela espada, o complexo típico o de uma troca de funções de condução de natureza musical e que apenas pode ser compreendida a partir de Hermes.

Instrumento musical em Hermes e instrumentos em Santiago de Compostela


Entre as plásticas medievais do complexo da catedral de Santiago destacam-se aquelas de instrumentos, representações que não só possuem alto significado organológico, mas sim também sob o aspecto teórico-cultural do estudo da linguagem visual. Esse significado do instrumento musical no contexto de Santiago não tem sido suficientemente considerado. Revela-se, porém, no seu sentido mais profundo a partir de uma perspectiva voltada aos fundamentos da ordenação de imagens.

Esses instrumentos de corda, ainda que de diferentes formas, remontam à imagem fundamental da "invenção" da lira por Hermes, momento de central importância para a compreensão da sua imagem, daquela da sua mãe Maia, de Apolo e de todo o edifício de concepções.

Como tratado em diversos contextos - e exposto em outros artigos desta revista - (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Estudos-e-Esclarecimento.html)). a transformação do casco de tartaruga em caixa de ressonância e os seus nervos em corda logo após o nascimento de Hermes, criando um instrumento ao som do qual louva o seu pai Zeus, significa que é seu mérito ter tido a sua mãe a natureza privilegiada de tê-lo gerado. 

A transformação do animal de casco em caixa de ressonância é uma imagem que corresponde àquela da concha que, em narrativas de remotas origens, ainda que fechada, tornava-se mãe da pérola através da queda de raios que a penetrava.

Com esse instrumento, Hermes surge como o musicista e o guia de danças das ninfas ou charitas. Em fase seguinte, dá-se a troca da lira com a vara mágica de Apolo, passando este a ser o guia das musas e Hermes o condutor.


Problemática da análise da imagem de Santiago Matamoros

As narrativas que procuram explicar historicamente essa representação de Santiago como "matamoros" relembram que o apóstolo interveio na Batalha de Clavijo do ano de 844, surgindo em sonho ao rei Ramiro I (+850). Os cristãos, invocando no no decorrer da batalha a ajuda de Deus ao Padroeiro da Espanha, venceram os mouros, matando grande número deles. Visões e ações similares ocorreram desde então em outras ocasiões e contextos, inclusive fora da Europa.

Sob o aspecto tipológico de fundamentação bíblica, a luta remete ao conflito entre Isaque e Ismael, refletindo-se na morte dos egípcios por ocasião da saída de Israel sob o comando de Moisés e aos combatidos por David.

Na análise destinada a esclarecer os fundamentos antigos nas suas relações com Hermes,  a atenção se dirige ao episódio nas narrativas de Hermes no qual se relata ter êle roubado bois de Apolo e sacrificado-os em louvor a Zeus. Esse ato na narrativa, que sucede àquele da invenção da lira, leva por fim à troca de atributos e funções entre Hermes e Apolo. Esse ato consistuiu imagem central no Mitraismo, onde Mitras é apresentado como ladrão de reses e representado no ato de matar um boi. Os bois, no caso, representam os homens que não são conduzidos pela Palavra.

Grupo de estudos sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo



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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "
Da perspectiva teórico-cultural nos estudos de concepções e expressões compostelanas
De fins do Ocidente subindo a Europa pelos seus caminhos à luz de Hermes como imagem paradigmática
". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 138/12 (2012:4). http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Compostela.html



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  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.