Veneza do Oriente: Bangkok. Revista BRASIL-EUROPA 135/2. Bispo, A.A. (Ed.). Academia Brasil-Europa e ISMPS





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 135/2 (2012:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2843




Veneza do Oriente I
Partindo de imagens e pensando em Recife:
a Sereníssima no Adriático e a cidade às águas do Menam
Cultura/Natureza, comércio e relações internacionais


Ciclo de estudos Tailândia/Brasil. Programa Cultura/Natureza da A.B.E.. Museu das Barcas Reais, Bangkok

 

Comemorou-se, em 2011, por instituições portuguesas, os 500 anos de relações entre a Tailândia e Portugal, relembradas sob o signo da amizade (Thailand-Portugal 500 Years of Friendschip). Ainda que compreensivelmente comemoradas sobretudo por Portugal, essas relações merecem ser consideradas sob a perspectiva do Brasil por múltiplos motivos. Reconhecendo esse significado, a A.B.E. desenvolveu estudos na Tailândia, nos quais foram tratados vários aspectos dos contextos em que esses contatos se inseriram e os processos históricos que desencadearam.


Ao mesmo tempo, a consideração dessa história de relações é de relevância para os estudos gerais de processos culturais e de estudos culturais nas relações internacionais, escopo da Organização Brasil-Europa. Como permitem ser considerados sob o lema da amizade, adquirem significado especial para estudos político-culturais e do papel da cultura na história diplomática. (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Sudeste-da-Asia-Brasil.html)


Um ponto de partida para reflexões reside na consideração de fatores geográficos e naturais que auxiliem a elucidação dos processos internacionalizadores. O significado do estudo das relações entre o mundo natural e o cultural é salientado pela A.B.E., que desenvolve um programa de pesquisas específico: Cultura/Natureza. No caso da Tailândia, a percepção e a análise dessas relações é facilitada por uma imagem que persistentemente, há séculos, surge na designação de suas metrópoles: a de Veneza. Não apenas Bangkok é conhecida como "Veneza do Oriente", mas também o foi a sua antiga capital, Ayutthaya. Por vezes, a denominação extendeu-se a todo o país, o antigo reino do Sião.


Para o observador brasileiro, essa imagem não é desconhecida, pois também o Brasil possui a sua Veneza, uma comparação utilizada na caracterização de Recife. A metrópole pernambucana situa-se no mundo aquático determinado pelos muitos rios e numerosas ilhas que exigiram a construção de dezenas de pontes e pelo encontro do Beberibe e do Capiberibe na sua desembocadura no Atlântico, o que explica a extraordinária importância do seu porto e do seu significado como centro de trocas comerciais.


A comparação da Veneza no Atlântico com a Veneza adriática, ainda que incompreensível para observadores que apenas atentam à falta de semelhança na fisionomia arquitetônica e cultural das duas cidades, justifica-se através de similaridades de condições naturais que fundamentaram o seu desenvolvimento como centros de relações comerciais. A comparação refere-se naturalmente ao fato de ser Veneza uma cidade marcada pelas águas, situada na Laguna entre as desembocaduras do grande rio Po e do Piave, construída sobre dezenas de ilhas, o que exigiu a construção de canais e numerosas pontes, e que, aberta ao Mar Adriático, e deste ao Mediterrâneo, consistuiu porto por excelência do comércio internacional por muitos séculos da história européia.


A imagem de Veneza ficou marcada pela diversidade dos impulsos recebidos, pelos produtos exóticos e objetos preciosos vindos de diferentes partes do mundo, pelas expressões de brilho e de magnificência ostentativa e extravagante decorrentes de influências culturais diversas. Para além de similaridades de condições naturais, foi essa imagem que levou a paralelos entre a cidade adriática e a siamesa.


São de venezianos os nomes que surgem na história medieval de contatos entre a Europa e o Sudeste Asiático. Antes da chegada dos portugueses no século XVI, houve aqueles que navegaram pelas costas do mar de Andaman e do golfo do Sião. Marco Polo (ca. 1254-1324) referiu-se ao reino de Locão, rico de madeiras, elefantes e mesmo ouro. Consta que o mercador Nicolò de' Conti (1385-1469), também de Veneza, chegou a navegar pelo rio Tenassarim, também impressionando-se com a riqueza em madeiras e o número de elefantes da terra. O seu relato, traduzido para o português, em 1502, é um dos testemunhos que indicam que os europeus sabiam da existência de um centro de riquezas e de trocas em região marcada por intensa navegação de mercadores de diferentes origens.


Local de reflexões: Museu das Barcas Reais, Bangkok

A instituição mais adequada para o desenvolvimento das reflexões sôbre as relações Cultura/Natureza implícitas à imagem da "Veneza do Oriente" é o Museu das Barcas Reais de Bangkok. É situado às margens norte do Khlong Bangkok Noi, consistindo em grande depósito de 51 barcas reais, aberto ao rio, mantém exposições de documentos históricos, fotografias e filmes.


Esses materiais, e sobretudo as próprias barcas, no esplendor de sua extraordinária ornamentação, manifestam o significado que os próprios tailandeses reconhecem na vida marcada pelas águas e na barca, fazendo esta parte do edifício de suas concepções e imagens, constituindo importante fator de sua própria identidade cultural.


Mais do que as gôndolas são para Veneza são essas barcas reais para a Tailândia. São objeto de contínuas renovações, podendo-se observar o trabalho contínuo de artistas e artesãos que a elas se dedicam. O seu significado simbólico manifesta-se no fato de serem dedicadas a uma solene procissão (kathin), na qual o rei, cabeça do Budismo no país, leva vestimentas e presentes aos monges do templo Wat Arun (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Monte-Meru.html).



Nessa solenidade, o rei viaja na maior e na mais representativa das barcas (Sri Supannahong), um veículo de 44 metros de comprimento, que, apresentando como ornamentação a cabeça do cisne sagrado, hong, parece refletir o pairar espiritual do pássaro sôbre as águas. Pelas suas dimensões, pêso e função, a sua condução exige dois pilotos, três oficiais e nada menos do que 54 remadores, sendo o rítmo das remadas determinado por um marcador e acompanhado por um cantor. Também a figura do dragão das águas, que delas se levanta em resplandescência, indica um conteúdo simbólico da barca no conjunto das expressões de um edifício de concepções do mundo e do homem.


O museu expõe gravuras históricas e fotos que documentam as grandes barcas do passado e a continuidade da tradição e das expressões artísticas. Essa continuidade, conscientemente conservada, ainda que apresentando liberdades de composição dentro de um repertório de expressões tradicionais, faz com que o cortejo das barcas reais se tornem uma das mais significativas das procissões fluviais e marítimas do globo.


Os documentos expostos lembram que essa procissão foi realizada por último há 30 anos, quando comemorou-se a passagem dos 200 anos da dinastia Chakri. Essa dinastia, que marca a história do Sião centralizado em Bangkok, procurou manter e mesmo revigorar elos de continuidade
com o passado brilhante de Ayutthaya. Também as barcas remetem a esse já longínquo passado.


Os documentos expostos trazem à consciência que também Ayutthaya foi uma cidade marcada pelas águas. Essa primeira "Veneza do Oriente", localiza-se numa ilha à confluência dos rios Menam Chao Phraya, Pasak e Lopburi, na época da sua fundação não distante do litoral.


Tendo-se distanciado no decorrer dos séculos devido a sedimentos, o pesquisador atual não tem muitas vezes presente a situação natural junto ao golfo da Tailândia que justificou o seu desenvolvimento comercial, fazendo dessa antiga capital siamesa (1350-1767) até a sua destruição no século XVIII um dos principais centros internacionais do Sudeste Asiático. Era cortada por canais, fortalecida com muralhas, sendo circundada por fosso d'água. As representações conservadas testemunham o interesse histórico-urbanístico de Ayutthaya, cuja edificação exigiu consideráveis obras de drenagem.


Terras alagadiças e povos ribeirinhos na Geografia Cultural e na Etnologia do século XIX


A imagem da "Veneza do Oriente" marcou a literatura a respeito do Sião e os quadros transmitidos por obras geográfico-culturais e de difusão de conhecimentos a respeito de países e povos na Europa. Uma dos objetivos do ensino da Geografia era visto na transmissão de quadros característicos de povos e nações, ou seja, de imagens. Este foi, por exemplo, a orientação defendida por A. W. Grube, que criou uma obra que alcançou várias edições e onde ofereceu textos baseados na literatura de natureza etnológica e geográfica. (A. W. Grube (Geographische Charakterbilder in abgerundeten Gemälden aus der Länder-und Völkerkunde... 2. Teil, 17. ed. aum., Leipzig: Friedrich Brandstetter, 1885, 291).


Se no Brasil, tratando-se do Amazonas, fala-se no "rio comanda a vida" (Leandro Tocantins, 1952), a mesma imagem surge como condutora dos argumentos de Grube.


"O país siamês extende-se ao longo do rio até o grau 17 da latitude norte. No Norde, o Menam recebe águas de muitos rios menores das montanhas limítrofes da China; mais ao sul, no Sião propriamente dito, divide-se em vários braços e forma grandes ilhas, o que se perde próximo à capital, Iuthia ou Sião, onde então os braços se juntam novamente numa só corrente principal, que atinge o mar após correr 20 milhas marítimas. Pouco antes, divide-se em dois ramos, dos quais o maior, a Leste, leva o nome Menam. No seu caminho a Juthia, encontram-se várias ilhas, não pequenas, sendo a maior não longe do forte e da cidade de Bangkok, a chave de toda a viagem, do reino e do entreposto do comércio das Índias Orientais, que já é em parte um dos mais importantes centros de comércio da terra ou que o será certamente no futuro" (op.cit. 294)

Esse autor procura explicar o caráter do siamês a partir de circunstâncias históricas que teriam levado emigrados de diferentes origens a viver em terras baixas e alagadiças. Tratar-se-ia assim de uma amálgama de fugidos, banidos, vencidos e marginalizados que, apesar de suas diferenças, teriam vindo a constituir uma nova unidade na diversidade.



"Um vale que permanece inundado por vários meses seguidos dificilmente atrai o homem a ali assentar-se voluntariamente. No máximo é a necessidade que o leva a viver nessa região baixa, húmida, assolada por terríveis exércitos que chupam o sangue. Somente o destino de se ver banido de uma vizinha região mais livre e alta é o que levou a aqui procurar um local de abrigo contra a sua vontade. Encontrando-se o asiático confrontado com constantes lutas nos planaltos e nas alturas montanhosas do Sião, as várzeas siamesas tornaram-se necessariamente um refúcio natural para todos os fugidos, vencidos, exilados, não apenas de uma nação, mas de todas as nações. Assim surgiu um povo, mais jovem, uma mistura de diferentes povos vizinhos, que, apesar de trazer vestígios de suas diversas origens, produziu um todo novo."


O geógrafo fundamenta a sua teoria de povos de várzea a partir dos dados transmitidos pela história oral e escrita. O quadro que oferece é o de uma internacionalidade fundamental resultante da emigração de grupos populacionais vencidos, obrigados a se refugiarem em regiões insalubres, tornando-se povos de várzea. A natureza, aqui, determinou o seu modo de vida e o seu caráter, fomentando a letargia e a forma de ocupação do país ao redor dos rios.

"Com isso concordam as lendas de passado remoto e as fontes escritas mais antigas dos siameses. Elas confirmam que as guerras e os extermínios no Lagos, Cochinchina, Tongkin e China, no Leste e no Nordeste, pelos peguanos e birmaneses no Oeste e, finalmente, pelos selvagens malaios no Sul, o Sião recebeu aos poucos uma considerável massa de pessoas, fugidos daquelas nações, que cultivaram o país tanto quanto a letargia própria do clima o permitiu e a exuberante vegetação exigiu da ação humana. Localidades e cidade surgiram privilegiadamente ao longo das correntes piscosas que, com a sua riqueza oferecem alimento sem esforços, a saber em ambas as margens do grande Menam, enquanto que regiões mais distantes permaneceram sem uso entregues a animais selvagens."

Segundo os argumentos de Grube, essa mescla de grupos populacionais ribeirinhos de diferentes origens, apenas teria alcançado a consciência de pertencimento a um todo nacional através da ação dirigida de autoridades. Estas teriam oprimido o espírito grupal, salientando a unidade, o que poderia ser compreendido também com relação a uma intensa atenção dada ao cultivo de tradições e símbolos. Algumas das nações que compunham a mescla populacional de marginalizados ainda teriam constituído colonias no Sião no século XVII e no início do XVIII, aos poucos, porém, com o empenho de regentes, que tudo fizeram para oprimir o espírito das comunidades, teriam sido incorporadas no todo. Desse processo integrativo e nivelador de diferenças grupais, para Grube só os chineses teriam mantido a sua identidade nacional. Mostravam-se ainda plenamente reconhecíveis não apenas pela sua aparência, mas também pela singularidade de suas atividades, que seriam caracterizadas por grande atividade e destreza no comércio.
Essa situação tinha, segundo Grube, consequências culturais, manifestando-se no modo de vida e mesmo na fisionomia urbana. Aqueles integrados num todo, ainda que provenientes de diferentes origens, tendo sido alvo de medidas que acenturam valores culturais, mostravam um modo de vida mais cultivado, mais disciplinado, caracterizado por asseio e gosto pelas formas, apesar da modéstia. Os chineses, porém, viviam segundo Grube nas áreas mais sujas e degradadas das moradias ribeirinhas.

Segundo a sua teoria, assim, haveria uma diferença no modo de vida e na fisionomia urbana dos bairros alagadiços de Bangkok que poderia ser explicada através de processos sociais e culturais, relacionados com a identidade de grupos.

Nem
todas as casas de madeira sôbre palafitas seriam, segundo êle, mal-construídas e sujas; muito pelo contrário, essas casas contribuiam até mesmo a uma configuração estético-urbana singular mas digna da cidade; havia, porém, construções mal edificadas, feias e pouco asseadas, que seriam encontradas, segundo Grube, sobretudo entre chineses. Esses, assim como os maometanos e os europeus, utilizavam-se antes de tijolos como material de construção. Assim, segundo a argumentação de Grube, não seriam as casas de madeira que deteriorariam a fisionomia urbana de Bangkok, mas sim casas mal edificadas de alvenaria, que seriam aquelas também que não corresponderiam a critérios mínimos de higiene.
"(...) Em Bangkok encontra-se, nomeadamente onde moram os chineses, ruas muito sujas e casas miseráveis, entretanto, as moradias junto ao rio são asseadas, e os siameses banham-se frequentemente, até mesmo várias vezes ao dia. Às vezes entram na água, às vezes lavam-se jogando água no corpo. Também usam óleos, usando no corpo produtos odoríficos, ambra, bisão e similares, sobretudo nos lábios, de modo que se tornam ainda mais pálidos do que já o são pela natureza.
As inundações anuais do seu rio fazem necessário que as moradias sejam elevadas do chão. As suas
casas descansam assim sobre pilares fortes de bambu, de 4 metros de altura; tão alto colocam os rios que inundam a terra sob a água. Uma escada, parecida com a dos nosso moinhos de vento, leva à casa. Nos estábulos para os cavalos e outros animais domésticos, que também são elevados, a escada é com esteiras, para permitir o uso pelos animais.
As moradias em si são simples, como as vestimentas. As casas têm apenas um andar, telhados e paredes são de esteiras e trançados de bambus. As mulheres possuem os seus próprios aposentos. No interior predomina, assim como no
corpo, grande limpeza. Nos quartos de pessoas de maior posse o chão é coberto de finas esteiras, sobre as quais se colocam tapedes, e as paredes são forradas de musselina.

Os móveis corresponden às moradias: essas possuem apenas cadeiras de vime, entre os ricos almofadas, a mesa é uma grande tábua, no lugar de cama uma tábua com travesseiros; apenas entre os mais previlegiados encontra-se maior comodiade. Os palácios dos reis e os pagodes apenas se distinguem pelo seu tamanho; encontram-se em nível primitivo quanto à sua construção. Os europeus que vivem no Sião, os moametanos e os chineses constroem as suas casas com tijolos." (loc.cit.)

Comparação do Menam com o Nilo e Ganges

Para além de comparações de Bangkok (e Ayutthaya) com Veneza, encontra-se na literatura repetidamente paralelos entre o Menam e outros grandes rios do globo, sobretudo o Nilo e o Ganges. Essa comparação pode ser documentada também de forma expressiva pelo texto de Grube. O fundamento desses paralelos reside compreensivelmente na fecundidade das terras inundadas pelas águas. Quando o rio recua, deixando que as terras surjam, cobrem-se estas de pujante vegetação, sobretudo, no caso do Sião, de arroz.

"Dando um golpe de vista em toda a área do Menam, percebe-se que o mesmo rio, que oferece ao homem um refúgio com as suas várzeas e pântanos semelhantes às lagunas de Veneza do Mar Adriático, é, ao mesmo tempo, um Ganges e um Nilo para os habitantes. Todos esses países, Awa, Pegu, Sião, Laos, Cambodja e Cochinchina são na verdade grandes vales que se extendem do Norte ao Sul. Todo o rio que vem descendo de longe (do planalto tibetano) torna-se uma fonte de benefícios para o vale que corta. Frequentemente a terra se encontra três meses sob a água, e vive-se nessa época numa grande área alagada que apenas pode ser navegada com veículos leves. Assim, porém, que as águas se retiram, desponta uma enorme vegetação da lama que ficou sob os raios do sol, com força que o europeu não pode imaginar. Os campos de arroz, por exemplo, dão ao Sião colheitas duplas, mesmo que não sejam cultivados, apenas pelos grãos que caíram no lôdo. O rei do Sião se chama significativamente de "grande Senhor do arroz". (loc.cit.)

Comparação do Sião com a Índia e o Egito

Essa comparação do Menam com o Nilo e o Ganges implica em paralelos entre o Sião, o Egito e a Índia. Sobretudo a lembrança do Egito merece uma particular atenção na análise da visão ocidental do Sião, uma vez que permite considerações mais aprofundadas a respeito da interação de concepções de cunho simbólico-antropológico e descrições geográficas. Assim, Grube não encontra problemas em, partindo dessa comparação com o Egito, justificável pela inundação do Nilo e concentração de sua população a seu redor, em passar a considerar florestas tropicais e riqueza da fauna e da flora do Sião. Com isso, porém, a natureza tropical assume uma conotação antes negativa, própria da imagem que o Egito adquire no edifício das concepções de fundamentação bíblica do Ocidente.

"Assim como o Egito, o país é apenas cultivado e habitado ao longo do "grande rio". Nele se concentrou toda a massa humana. O resto do país é floresta e mata, mas uma mata magníficamente exuberante, com toda a riqueza e fertilidade do clima tropical. As belas e nutritivas palmeiras, os coqueiros e as palmeiras de sago, de vinho e de couve, a madeira resistente da árvore de teak, as mais belas madeiras de tintura, as mais apetitosas frutas da terra, a maçã da frondosa mangueira, dos pisangs, inhames, o durião pleno de nata vegetal, as árvores de pimenta e de outras especiarias - tudo isso cresce na mais alta perfeição: aqui é o paraíso de todas as frutas tropicais. O mundo animal mostra-se, porém, em assustadora dimensão. As baixadas lodosas do Menam polulam de crocodilos, que os homens precisam caçar par não serem dali expulsos. Hordas dos mais fortes elefantes entram nos campos de arroz; no chão de lama contorcem-se o rinoceronte e o búfalo aquático selvagem. Pelas florestas densas move-se o tigre-rei, e pobre do homem que é por êle surpreendido. Mesmo hordas de macacos juntam-se e atacam o homem como bandos de guerreiros ladrões. Nos cumes das árvores voam magníficos papagaios, pavões selvagens, um exército de gritões e cantores. Quando se navega Menam acima, ouve-se o ruído dos grilos e das cigarras vindos da floresta mesmo à uma milha de distância. Mas sem armas e companhia, nenhum viajante ousa sair do rio, pois o homem ainda não subjugou a natureza, que na plenitude de sua força desafia o seu poder." (loc.cit.)

Fundamentos dos paralelos no edifício das concepções e imagens: Eridano

Sendo o Sião comparado com Veneza, os cotejos do Menam com o Nilo e o Ganges extendem-se também ao Po. Trata-se, assim, sempre da mesma imagem referente à inundação, à destruição da terra, do homem, das plantas e dos animais, seguida do afastamento das águas e o surgimento do sêco que se conhece na tradição ocidental das Escrituras, da mitologia e mesmo das constelações, denotando, assim, elos com o mundo natural e o ciclo anual das estações conhecido do Hemisfério Norte.

Na linguagem simbólica das constelações, o grande rio que se afasta, deixando que surja as terras fecundas é o Eridano da mitologia. Este era, na Idade Média, a designação do Po. Essas relações imagológicas, nas suas consequências para as concepções antropológico-simbólicas, foram já tratadas em diferentes ocasiões no âmbito dos trabalhos da A.B.E. (A.A.Bispo, Typus und Anti-Typus: Analyse symbolischer Konfigurationen und Mechanismen zur Erschliessung neuer komparatistischer Grundlagen für den interreligiösen Dialog und den Dialog der Kulturen, Colonia: I.S.M.P.S., 2003).

A descida do homem às terras baixas, inundáveis, as agruras e os perigos dessa vida, o elevar-se das águas e o surgimento da terra sêca representam momentos de processos expressos no edifício imagológico que tornam compreensíveis os paralelos feitos pelos observadores ocidentais no confronto com o Sião, mas, ao mesmo tempo, parecem corresponder a concepções e imagens também existentes na cultura do próprio Sião, também de remotas origens. Essa similaridade de concepções pode ser percebida na simbologia das ornamentações das barcas reais do Museu de Bangkok, na própria solenidade em que se apresentam e numa valorização do "sêco" e da montanha na linguagem simbólica e mesmo na configuração urbana. (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Monte-Meru.html)

As barcas do Sião na perspectiva da linguagem de imagens do Ocidente

Nesse contexto, impõe-se salientar que os pressupostos culturais do observador ocidental influenciaram a descrição geográfica e a colocação de propostas elucidativas. Esse fato torna-se claro na explicação que Grube oferece dos motivos pelos quais os siameses devotavam tanta atenção à construção de suas barcas. Os dados que oferece de natureza etnográfica indicam que também o estudo dos povos ou a Etnologia não deixaram de ser marcadas por aportes teóricos resultantes da própria cultura do observador.

"Ambos, a grande fertilidade do terreno, e o grande calor do ar, não deixa que a força do homem se libere; o siamese é preguiçoso e mole; a natureza trabalha para êle, e o que poderia levá-lo a esforçar-se, se o produto de sua diligência é roubado por déspotas? Somente na construção de suas canoas fluvias demonstra o seu talento, tendo até mesmo desenvolvido o seu sentido artístico. Um povo, que se vê debaixo d'água seis meses ao ano, que vive quase que exclusivamente do rio, tem motivo suficiente para superar a sua preguiça natural na construção de um veículo que lhe assegura os bens do país sem maiores esforços.

Os veículos, chamados "balones", são feitos de uma só árvore. Um desses troncos atinge frequentemente grande comprimento, o que pressupões árvores admiravelmente grandes. Mas na largura é apenas suficiente para permitir que duas pessoas tomem lugar numa tábua transversal, sentando-se com pernas cruzadas. Os grandes balones exigem 120, até mesmo 150 remadores. A parte anterior e a de trás dos veículos são bastante elevadas. Os remos, chamados pagaios, são curtos; o seu peso e o dos homens faz com que o veículo entre fundo na água. Na frente e atrás há apenas lugar para um remador, ficando o pilôto na parte posterior do barco. No centro há um podesto elevado, coberto, onde toma lugar o senhor do balone. Tanto mais importante é êle, tanto maior é o barco e mais ricamente ornamentado com entalhes. Frequentemente, os balones têm a forma de um dragão, sendo a cabeça, o pescoço e o rabo não apenas ornamentado com entalhes, mas também dourados.

As mulheres de maior prestígio possuem os seus próprios balones, cujos remadores são do mesmo sexo, pois também aqui, como em outros povos mais rudes e letárgicos, a êle se destinam os trabalhos mais pesados." (loc.cit.)

Processos internacionalizadores no século XIX e meios de transporte


As publicações do século XIX documentam que a dependência do transporte fluvial no Sião, apesar da grande rêde de rios e canais, passou a ser sentida como um entrave ao aproveitamento dos bens naturais e no comércio, já agora em mãos não apenas de chineses, que atuavam mais no pequeno comércio local, mas sim também de alemães e ingleses. Elas registram, assim, uma transformação na história das vias de comunicação e transportes no Sião nas suas relações com processos internacionalizadores. Neles destacaram-se os alemães, que construíram não apenas ferrovias, mas também substituiram os ingleses na navegação marítima. Livros de difusão de conhecimentos geográficos da época testemunham a predominância de navios alemães no Mar do Sul da China:


"A capital e cidade-residência do Sião é Bangkok, a "Veneza do Oriente", no caudaloso Menam, presumivelmente com 600 000 habitantes, a metade dos quais chineses. Ao norte de Bangkok encontra-se Anuthiy, a antiga capital do país, com magníficas ruínas e relitos do passado. Fora a capital, todas as povoações do país são pequenas, por ex. Paknam, o porto de Bangkok, o porto de pimenta Schantabun, no Mepiung, afluente do Menam no Laos Ocidental Tschiengami ou Zimmi, Korat no planalto de Laos, um promissor centro de comércio, desde que, em 1900, foi ligado a Bagkok por uma ferrovia construida sob direção alemã, Battambang na fronteira de Cambodja, etc.. Uma grande parte do Sião é floresta ainda pouco penetrada, grandes regiões são cobertas por floresta tropical; a parte mais conhecida de nós constitui um país cortado por rios e canais de luxuriante fertilidade, que produz açúcar, arroz, indigo, milho, pimenta etc.. O comércio siamês é intenso, estando o pequeno comércio em mãos de chineses, o grande na de alemães e ingleses; sofre, porém com os meios de transporte deficitários. Em geral, apenas caminhos de elefantes levam ao interior, a rêde fluvial sente ainda falta de ser regulada para possibilitar um tráfego seguro e em ordem, e, quanto às estradas de ferro, apenas tem-se inícios modestos. A navegação, após terem sido compradas duas grandes linhas inglesas pela Lloyd norte-alemã, encontra-se quase que totalmente em mãos alemãs, como, em geral, a bandeira alemã é a mais encontrada no Mar do Sul da China.  Exporta-se sobretudo arroz, madeira nobre, peixe, pimenta, couros, conchas, laque etc. A mineração é promissora para o futuro, pois as reservas de carvão na vizinhança do rio Mekong parecem ser produtivas e a riqueza de pedras preciosas é considerável. Também se garimpa ouro e se produz zinco na parte ocidental do país." (Fr. von Hellwald, Die Erde und ihre Völker: Ein geographisches Hausbuch, 5a. ed. II, Suttgart, Berlin, Leipzig: Union Deutsche Verlagsgesellschaft, s/d, pág. 556)

Do molhado ao sêco - desenvolvimento urbano de Bangkok


Como acima salientado, a comparação entre Bangkok e Veneza não se explica naturalmente por similaridades arquitetônicas. Os edifícios de Veneza não poderiam ser mais diferentes do que aqueles de Bangkok. Explica-se pela singularidade de ambas cidades possuirem a sua configuração urbana determinada por canais, veios principais de tráfego, comunicação e do comércio, onde decorre grande parte do quotidiano de seus habitantes e mesmo de suas expressões festivas. São para os canais que se abrem muitas das casas, que dão costas para a terra, são em barcos que se fazem muitos dos negócios. Essa vida voltada e marcada pelos canais, pela movimentação humana em barcas, em pequenos ancoradouros, em pontes e em pranchas que comunicam as casas entre si, em grande parte construidas sobre a água, foi sempre o que determionou a primeira impressão fixada em relatos de viajantes europeus e influenciou as descrições geográficas e etnográficas do passado.

Consequentemente, a principal modernização de Bangkok como resultado de elos internacionais foi notada pelos viajantes europeus como sendo de natureza urbanística. Reis e uma elite que se orientava segundo modêlos das grandes capitais européias promoveram a abertura de ruas, boulevards e de praças, de instalação de linhas de bondes, de construção de edifícios representativos e de residências voltadas agora de costas para o rio e os canais.

Poder-se-ia constatar, nesses registros, uma gradual e até mesmo sistemática reorientação de fachadas e de condução de vida, agora dirigida antes às artérias urbanas que passaram a concentrar o comércio, as moradias e determinar novas orientações internas da geografia urbana, novas perspectivas e referenciais, marcando a fisionomia e a compreensão da cidade.

Esse processo de transformação urbana não superou totalmente o sistema anterior de organização de Bangkok, aquele determinado pelo rio e pelos canais. Ainda que cada vez mais predominante, manteve-se com êle relacionado, completando-o e estabelecendo um complexo jogo de interferências na imagem e na compreensão da cidade para os seus habitantes e para os observadores externos.

Com a construção das grandes linhas de trens metropolitanos acima de avenidas e cortando bairros, estabelecendo novas rêdes e ligações entre contextos da cidade que anteriormente eram distantes entre si, as interrelações entre o processo interno de transformação urbana da capital da Tailândia com a sistemática da cidade dos canais tornou-se mais complexo.

Os problemas urbanos de Bangkok, que se manifestam da forma mais evidente no tráfego de suas ruas, não se resumem a questões de trânsito. Possuem dimensões culturais relativas a direcionamentos e orientações, à superposição ou interferências de modos de vida mais ou menos conduzidos pelas águas, à concomitância de bairros marcados pelos canais com aqueles resultantes de novas urbanizações e que muitas vezes os cortam e cobrem com vias rápidas e pontes, submergindo-os no sentido figurado.

Nessas dimensões, a Veneza do Ocidente não experimentou complexo transformador comparável. A expansão urbana, a abertura de zonas industriais e novos bairros deu-se antes em zonas radiais ou periféricas ao centro antigo. O observador da Veneza do Oriente tem, hoje, maior dificuldade em constatar a justificativa da antiga comparação entre as suas cidades, necessita trocar constantemente de referenciais na apreciação da cidade, olhar por baixo de pontes, atentar para o marginal e para marginalizações.

A comparação de Bangkok com Veneza não pode ser considerada apenas sob o aspecto das similaridades decorrentes de cidades marcadas por canais. Veneza, na compreensão dos europeus, não era apenas uma cidade construída singularmente à água, nas águas e cortada por águas, mas sobretudo grande potência comercial e centro cultural. Veneza foi por séculos o principal portão da Europa ao Oriente. Foi por ela que se deu a entrada e a saída de bens materiais e imateriais que fundamentaram as relações entre o Ocidente e o Oriente por grande período da história. Antes de ter sido obstruída nessa função pelo poder islâmico e ser superada por Lisboa como principal porto nos elos da Europa com o Oriente, foi o principal entreposto comercial, financeiro e cultural entre os povos do mundo.  Essa posição marcou a história, a identidade e a imagem de Veneza. O brilho dos séculos de florescimento do intercâmbio com o Oriente e as expressões históricas que tiveram nas artes da Idade Média e da Renascença marcaram as associações que o nome Veneza desperta.

Grupo de trabalho sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Veneza do Oriente I. Partindo de imagens e pensando em Recife: a Sereníssima no Adriático e a cidade às águas do Menaam. Cultura/Natureza, comércio e relações internacionais". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 135/2 (2012:1). http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Veneza-do-Oriente.html




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.