Mar Negro na arqueologia cultural. BRASIL-EUROPA 134/3. Bispo, A.A. (ed.). Academia Brasil-Europa e ISMPS





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BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Monumentos de Histria, Mar Negro

Monumentos de Histria, Mar Negro

Monumentos de Histria, Mar Negro

Monumentos de Histria, Mar Negro

Monumentos de Histria, Mar Negro

Monumentos de Histria, Mar Negro

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 134/3 (2011:6)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2812


Academia Brasil-Europa



Histria (Ἰστρίη)
Arqueologia de processos culturais do mundo de colonização grega do Mar Negro
e suas repercussões no patrimônio cultural do Ocidente


Ciclo de estudos da A.B.E. na Dobrudja. Complexo arqueológico de Histria


 
Monumentos de Histria, Mar Negro

As ruínas da antiga cidade de Histria (Istria), próximas à localidade de mesmo nome, no litoral do Mar Negro, ao sul do Delta do Danúbio, perfazem um dos complexos arqueológicos de maior significado da Romênia, adquirindo relevância para estudos culturais em contextos globais.

Fundada entre 650 e 600 A.C. foi a primeira colonia grega na costa ocidental do Pontus Euxinus e é hoje a mais antiga cidade no território do país (a respeito, e. o. John Boardman, The Greeks Overseas, Baltimore 1964; Gocha R. Tsetskhladze, The Greek Colonisation of the Black Sea Region, Oxford 1994; Livia Buzoianu, Constantin Chera, Ilustrated Guide Histria, Constanta: The Museum for National History and Archaeology Constanta, Ex Ponto 2009).

Estudos arqueologicos, Histria

Esse significado excepcional de Histria é reconhecido internacionalmente, sendo o sítio arqueológico integrante do Patrimônio Cultural Europeu. Correspondendo a essa relevância, para além do tratamento modelar e valorizador da área das ruínas, edificou-se um museu arqueológico à sua entrada que, pelos documentos que conserva e pelos trabalhos que ali se desenvolvem, surge como centro de importância para estudos culturais da Antiguidade. Esses estudos vem sendo desenvolvidos no âmbito da tradição interdisciplinar de orientação culturológica da A.B.E. em diversos museus e sítios arqueológicos da Europa desde 1974, tendo-se até hoje realizado elevado número de jornadas e sessões de estudos.

A pesquisa arqueológica de Histria desenvolveu-se a partir de 1914. Os trabalhos estiveram sob a direção de Vasile Pârvan (1914-1927), Scarlat Lambrino (1928-1942), Emil Condurache (1949-1970), Dionisie M. Pippidi (1971-1981), Petre Alexandrescu (1982-1999) e Alexandru Suceveanu (1990-). As escavações revelaram as várias camadas construtivas sobrepostas através dos séculos, pondo a descoberto partes de edificações bizantinas, romanas e, mais a fundo, fundamentos gregos que remontam ao século VII A.C.. Foi fundada nesse século durante as Olimpíadas (657 A.C.) (segundo Eusebius) ou nas suas últimas décadas (segundo Pseudo-Skymnos).

Estudos arqueologicos, Histria

Monumentos de Histria, Mar Negro

Histria surge sobretudo como de significado para os estudos da colonização grega, de processos de transformação cultural através da helenização de culturas e da criação de imagens culturais de regiões e povos a partir de edifícios de concepções determinados por perspectivas gregas e greco-romanas.

Foi fundada como colonia da cidade de Mileto na área próxima à desembocadura do Danúbio, então chamado de Istros. Pelo seu nome, demonstra ter sido a cidade danubiana por excelência, com êle identificada, entreposto comercial e ponto-chave do intercâmbio entre o interior cortado por esse rio, as demais cidades da colonização grega e os centros da própria Grécia. 

A colonia grega foi fundada em região já povoada desde remotas eras. Os mais antigos indícios remontam ao Paleolítico Médio (120.000-35.000 A.C.) e do Paleolítico Superior (35.000-10.0000 A.C.); achados do Neolítico e pós-Neolítico de vários sítios da região demonstram a existência de comunidades e a prática intensa de atividades agrícolas. Durante a época do bronze (2000-1200 A.C. e na do ferro (1200 até fins do século V A.C.) desenvolveram-se na região culturas com características próprias, em geral da Trácia e, em particular, da Getia ou Dácia.

O processo de transformação de culturas com a colonização grega desenvolveu-se no campo de tensões resultante das relações do mundo grego com esse complexo cultural que era visto como compreendendo vários povos, entre êles trácios, dácios e escitios.

O geógrafo Strabo referiu-se a essa cidade, mencionando encontrar-se às margens do lago Sinoe, à distância de 500 stadia da "desembocadura sagrada" do Istros (Peuce, hoje braço Sf. Gheorghe).

Monumentos de Histria, Mar Negro

Voltada para o mar, situada em promontório rochoso, de costas para o interior e contra êle fortificada, Histria manteve por séculos a sua função de entreposto comercial, vivendo da pesca do Danúbio e do intercâmbio com outras cidades do universo colonial grego, sofrendo com incursões de povos da região. No ano de 72, passou ao domínio romano, sendo destruída pelos godos no século III. Cristianizada, continuou a ser habitada no período romano tardio e bizantino, sendo abandonada à época das grandes migrações de povos. Sob a perspectiva romena, salienta-se que, apesar do fim de Hístria, se manteve uma continuidade romaniana ou dácio-romaniana na região através dos séculos.

Reconstruções culturais de uma cidade com origens coloniais (VI A.C.- I A.C.)

O museu arqueológico de Histria, modelarmente instalado, testemunha tentativas de reconstruções do desenvolvimento da cultura urbana local, procurando distinguir fases de implantação, de desenvolvimento, de abalos, de reconstruções e transformações. O visitante é, de princípio, na sala A, confrontado com fundos do Neolítico e da primeira idade do ferro (Hallstatt) da Dobrudja, em particular da cultura Babadag e do Pontos.

Conscientizado da existência de remotos e complexos desenvolvimentos culturais na região do Delta do Danúbio e do Mar Negro, passa a contemplar, na sala Ba, fundos da "Hístria arcaica", ou seja, da época dos primórdios da colonização grega. O objetivo da exposição é demonstrar a penetração da cultura grega no meio "nativo" e a dinâmica cultural resultante dos contatos entre colonos e gétios/dácios, documentados estes por vasos e urnas funerárias, algumas delas com imitações de modêlos gregos.

Os elos com as regiões de origem dos colonos são demonstrados através de objetos de cerâmica importados nos séculos VII e VI A.C. não só de Mileto, mas sim também do norte da Jonia, de Chios e Clazomene, indicadores da existência de uma rêde ampla de contatos.

Assim, cerâmicas com figuras negras de Corinto e de Atenas surgem em vasos, ânforas e outros objetos trazidos de Chios, Lesbos, Thassos, Heraclea Pontica, Rhodos, Cnidos, Chersones e outras localidades.
Também cerâmicas com figuras em vermelho, ainda que menos abundantes, estão ali representadas.

Esses objetos indicam a existência de uma vida na colonia marcada pela origem dos colonos, sugerindo a existência de uma consciência cultural superior às condições da região, da lembrança de uma terra mais bela a ser implantada no meio inóspito e rude, e que parece ter determinado esforços de manutenção de nível através do uso de objetos provenientes de cidades gregas.

A essa fase de implantação da colonia, designada como "arcaica", segue-se aquela da consolidação da urbe, marcada por uma identidade própria e designada pelos pesquisadores como período da "Histria Grega". Esse período, do século VI A.C. ao século I D.C., pela sua extensão, teria tido vários momentos de apogeu e abalos. A êle é dedicado o primeiro pavimento do museu, sobretudo a sala C, onde se reunem indícios de uma intensa atividade construtiva com base em fragmentos provenientes de edifícios da área sagrada da cidade, a dos templos, aquela que os arqueólogos revelaram por debaixo de construções posteriores da época romana e bizantina.

Esses objetos demonstram a continuidade de importações na vida das gerações posteriores àquelas dos primeiros colonos, por exemplo de cerâmicas da Ática do terceiro quarto do século VI de Corinto ou mesmo de regiões greco-orientais. Já nessa época, ao lado das importações, havia produção local de cerâmicas, sobretudo de objetos para a vida quotidiana.

As importações dependeram também da situação política no mundo grego, podendo-se observar um aumento após o restabelecimento da liga marítima ateniense. O florescimento da cidade é demonstrado também por elementos arquitetônicos, tais como um capitel dórico do século IV A.C. ou objetos de culto.

O significado da cultura, do cultivo e mesmo do culto ao belo na cidade de passado colonial é sugerido pelo uso de versificações em inscrições funerárias. Outras inscrições evidenciam a manutenção de elos com cidades como Rhodos e Thassos. Apesar de todos os esforços, as condições locais não permitiram um desenvolvimento maior das artes plásticas, sendo os objetos artísticos encontrados, em particular esculturas, relativamente modestos, indicando que a criação local se restringiu a obras menores, tais como frisos decorados, rosetas, cenas funerárias ou atributos mitológicos. Esse fato, porém, não significa que a vida social urbana não tenha sido marcada pela cultura e pelas artes, o que testemunha um busto de Terpsichore, a musa da dança.


Um espaço principal do museu é a sala central, destinada à exibição de elementos de um templo grego e da arquitetura urbana romana, inscrições votivas, altares, elementos decorativos de basílicas, e sobretudo pela reconstrução de um templo de mármore dórico dedicado ao "Grande Deus" por um habitante proveniente da ilha de Thassos do século III A.C., assim como da base de uma estátua de Apolo Ietros de mármore negro. De particular importância é uma lista de líderes de 138 D.C. com 157 nomes, com a menção da festa da celebração anual das rosas (Rosalia), relacionada com a memória dos mortos.

Acontecimento decisivo de fim do século I foi a integração da região no Império Romano. A situação implantada de paz teria favorecido a produção e o comércio. Objetos dessa época sugerem quase que uma "segunda colonização", surgindo nomes latinos pospostos a gregos e trácios. Nas salas D, F e no setor E do segundo pavimento do museu encontram-se expostos testemunhos dessa época, tais como lâmpadas de cerâmica decoradas com fuguras mitológicas e humanas, frutas, animais e padrões geométricos, além de outros objetos que demonstram prosperidade material e intenções decorativas. Salientam-se aqui fragmentos das termas romanas, muitos deles, como os de mosaicos, testemunhando a continuidade de esforços de valorização da qualidade de vida através de expressões artísticas.


Venus no mundo colonial de Histria

A área sacral do conjunto arqueológico de Histria é marcada pelo grande templo de Zeus e por um dedicado a Afrodite/Venus, construído entre 550 e 525 A.C. Se Pallas/Minerva marcava a acrópole de Atenas, o mundo colonial da danubiana cidade apresenta-se sob o signo de Venus. Compreende-se que os gregos que chegavam, após a longa viagem marítima pelo Pontus, ao alcançar o promontório que se eleva do mar de tão negras associações, o relacionassem com a divindade que, elevando-se das águas, tinha surgido, segundo a narrativa, em toda a sua beleza e amenidade.

Na segurança que oferecia perante as inundações, surgia como um contraste relativamente a um mundo de incertezas do Mar Negro e com aquele de povos da região, em constantes guerras, por assim dizer sob o domínio de Ares/Marte. Essa associação a Venus pode ser entendida como um indício do significado da vida de Hístria sob aspectos sociais e culturais, que teria sido marcada por alegria de viver, pelo sentimento de liberdade e pelo fruir de uma vida marcada pelo bem-estar e prosperidade, ao qual contribuia o cultivo da terra, de expressões culturais, das artes e mesmo anelos ao luxo, como o denotam fragmentos pintados e os objetos conservados no museu arqueológicos.

Esse ambiente colonial, voltado à procura da prosperidade e ao luxo, trazia certamente uma tendência a um direcionamento por demais voltado à riqueza material, ao culto à riqueza de cidade comercial, com o risco de queda em situação que marcava as populações do Mar Negro, dominadas pelas guerras e conflitos sob o domínio de Ares/Marte. Teria sido a preocupação por este risco por parte de líderes locais que explicaria o fato de ser o templo dedicado a Zeus/Júpiter aquele que realmente domina a área sacral de Histria, demonstrando a necessidade da observação de princípios éticos, de ordem e justiça na comunidade.

Mater Magna e culto de mistérios

Os fundos do museu de Histria indicam que o aumento da influência romana e a integração da região no Império, em fins do século I, foram acontecimentos decisivo para Histria. A situação implantada de paz teria favorecido a produção e o comércio.

Objetos dessa época sugerem quase que uma "segunda colonização", surgindo nomes latinos pospostos a gregos e trácios. Assim nas salas D, F e no setor E do segundo pavimento do museu encontram-se expostos testemunhos dessa época, tais como lâmpadas de cerâmica decoradas com figuras mitológicas e humanas, frutas, animais e padrões geométricos e que impressionam pelo seu grande número. Salientam-se aqui fragmentos das termas romanas, muitos deles, como os de mosaicos, testemunhando a continuidade de esforços de valorização da qualidade de vida através de expressões artísticas.

O significado das termas na vida cultural romanizada da colonia deve ser considerado em contexto mais amplo do que o de sua utilidade para a higiene e saúde. A cultura balneária, ou melhor térmico-balneária ou de vapores pode ser vista como indício de uma determinada orientação no complexo das concepções e imagens, de expressões de um culto ao calor e ao fogo interno que nele se manifesta, o que viria também de encontro às lâmpadas documentadas no museu.

Esse desenvolvimento cultural sob a influência romana corresponderia ao novo pêso dado ao culto da Mater Magna, representando uma intensificação das concepções e práticas relativas à Rhea - a mãe de Zeus - já existente na antiga colonia grega.

Essa intensificação deve ser compreendida no contexto de práticas de culto em círculos voltados ao culto de mistérios que se popularizaram no Império. À Mater Magna, era cultuada no templo da Vitoria, no Palatino, desde a sua introdução, vinda por mar, de Pessinus, no ano de 205 A.C.. Teria sido graças à sua proteção que os romanos haviam vencido os cartaginenses.

As concepções relacionadas com a Mater Magna ou Mãe de Deus expressam elos com as alturas e o fogo, este compreendido como fogo celestial. Tendo como "fetiche" um meteorito, representada como "negra", era festejada no início da primavera - quando os dias se tornam mais longos do que as noites - e relacionada com as alturas dos montes e, em sentido figurado, com a do ano. Surgia, assim, no seu trono nas alturas, ladeada por leões.

Aspectos do sistema integrador colonial

A expansão de formas de culto de mistérios em regiões coloniais relacionou-se com um processo de "orientalização" que merece particular atenção nos estudos culturais. A intensificação religiosa de cunho popular que se manifesta nas práticas da Mater Magna na sua forma de Kybelle, a deusa frígia, não pode ser entendida apenas como uma simples redenominação de Rhea da tradição grega.

No ambiente colonial, marcado pela tensão com os povos que anteriormente habitavam a região ou que ainda a circundavam, conotados negativamente como pertencentes a um mundo superado e a ser superado, a adoção de divindades vinculadas a locais e a contextos histórico-culturais da Ásia Menor e da África não podia ser livre de valorações.

Essa adoção apenas pode ser compreendida a partir de um mecanismo próprio ao sistema de concepções e imagens, e que partia da representação de tipos com todos os problemas derivados da sujeição ou escravização a forças naturais, entendidos, porém, a partir de referenciais de valores estabelecidos pela tradição culta.

Nas festividades populares, de cunho lúdico, podia-se, assim, celebrar datas relacionadas com o ciclo do ano nas suas dimensões metafísicas sem que se incorressem em desrespeito para com as divindades dos templos, o mesmo valendo para círculos privados dedicados aos mistérios. As formas de expressão vinculadas a culturas tidas como "bárbaras", asiáticas ou africanas, não incorrendo em representações inadequadas à dignidade dos deuses dos templos, puderam, assim, expandir-se em meios populares da sociedade colonial.

Essa extraordinária expansão pode ser também compreendida a partir de um processo romanizador que surge como implícito a esse mecanismo: membros de povos subjugados da Ásia Menor ou da África deparavam-se com expressões de suas próprias culturas em representações antes de cunho lúdico da sociedade predominante, passavam assim a ter as suas próprias tradições relativadas devido à diferente referenciação, e, vendo o seu próprio contexto cultural a partir de uma outra perspectiva, integravam-se no universo romano. O sistema pode ser, assim, analisado sob a perspectiva de processos de transformação de identidades, o que corresponde a questionamentos que marcam os debates recentes.

A práticas marcadas por representações de tipos segundo imagens não-grecoromanas no âmbito popular incorriam no risco de perderem a sua referenciação segundo os paradigmas da tradição culta. Através do culto privado, em círculos voltados a mistérios, podiam fomentar o pensamento e práticas de magia. A perda da transcendência do edifício de concepções e imagens através de técnicas e artes aplicadas de manipulação da realidade intensificou-se com o reconhecimento oficial e o fomento de expressões provenientes de outras culturas por representantes de esferas sociais mais elevadas. Os aspectos mais questionáveis desse desenvolvimento revelavam-se quando concepções relacionadas com determinadas individuações na dinâmica de processos naturais no âmbito do ciclo anual de particular problemática - sobretudo aquelas relacionadas com as trevas -, passaram a ser consideradas predominantemente a partir de seus tipos "bárbaros".

Do "demoníaco" em situações coloniais - De Dionysos e Sabazios

Entre as divindades da tradição grega que passaram a estar presentes sob formas de expressão estrangeiras, em particular da Ásia Menor, deve-se considerar com especial atenção Dionysos, representado nos fundos do museu de Histria como Sabazios.

Questões relativas ao significado de Sabazios/Dionysos podem ser particularmente esclarecidas considerando-se o contexto natural da região às margens do Mar Negro, com as suas conotações negativas e nas suas correspondências com o ciclo do ano e concepções do homem.

Particularmente vinculado à Ásia Menor e em especial à Trácia, de onde até mesmo supõe-se ser originado, Dionysos possui elos particularmente estreitos com essa região e, assim, com um povo marcado por imagens sombrias, violentas e mesmo cruéis. As associações dessa região com a parte do ano marcada no hemisfério norte por humidade e escuridão, antecedendo ao solstício de inverno, indica elos com as trevas e a noite. O seu pertencimento ao mundo marcado pela noite, cujo luminar é a lua, explica o aparecimento desse atributo em representações.

A terra nas regiões baixas do delta do Danúbio, subjugada pelas inundações do Mar Negro, húmida e infértil, explode na vegetação luxuriante do delta. Essa força da terra ou fogo terreno, que se manifesta no crescimento e na força ascendente, domina a linguagem visual. Para além de relacionar-se com a noite - falta de luz - essa força foi interpretada como espírito, o do álcool do vinho que é ganho das uvas que emolduram as representações e que são testemunhadas pelas referências à embriaguez no contexto dionisíaco.

Esses elos com a terra - teria sido filho da terra (e.o. Demeter/Persephone, Io, Semele) e Zeus -, indicam a proximidade e, ao mesmo tempo, as diferenças com Aphrodite/Venus, particularmente cultuada em Histria. Se esta era associada antes à terra na sua beleza e florescência da primavera, "secando-se" ao elevar-se das águas, o primeiro à força daquela do período tenebroso de inverno.

Compreende-se, neste contexto, as referências segundo as quais gregos mais cultivados procurassem manter à distância Dionysos. Ainda que pertencente ao edifício de concepções e imagens do mundo e do homem, devia ficar fora daquilo a ser cultuado.

A "orientalização" da vida cultural que se manifesta na adoção de denominações e acentuações de elos com tradições da Ásia Menor, em particular da Frígia ou da Trácia, surge, relativamente a Dionysos, como necessáriamente questionável aos olhos daqueles que se orientavam segundo princípios filosóficos ou se preocupavam com um culto mais dirigido a concepções relacionadas com a luz.

Prestar culto a divindades relacionadas com povos e regiões que haviam sido objeto de colonização grega, e que eram associadas com imagens negativas, no caso, por exemplo, dos escitios, trácios e dácios, significava uma queda em situações superadas, de um direcionamento para os baixos e para as trevas. Significava, em geral, um direcionamento do senso ao perceptível pelos sentidos, o que explicaria os elos de Dionysos com a sensualidade orgiástica.

A atenção dirigida ao tipo - Sabazios - podia ter a sua justificativa na consideração de Dionysos nos círculos voltados aos mistérios, sem que aquele precisasse ser mencionado, podia, porém, adquirir dimensões altamente problemáticas se as imagens deixassem de ser compreendidas como sinais, mas passassem a ter significado em si. Poder-se-ia, aqui, supor a existência de práticas de magia negra ou feitiçaria no ambiente colonial da região pôntica.

Sinalizando a luz da luz: Mithras em Histria

O museu arqueológico de Histria possui fundos que documentam o significado de Mithras no contexto de práticas de mistérios em determinados círculos da colonia.

Como eixo de um sistema global de concepção do mundo e do homem, Mithras surge na grota que, do patrimônio mitraístico de muitas outras regiões, sabe-se que representava o universo, englobando todos os signos do zodíaco. Nas imagens, o "genitor da luz" surge entre ou por detrás de Cautes e Cautopates, representantes estes da luz que, diferentemente de Mithras, no mundo das aparências cresce e decresce. Correspondendo ao sistema acima esboçado, o Mithras das representações deve ser compreendido no sentido de sinal típico que indica outra realidade, esta sim referencial paradigmático dos mistérios. Em Histria, como documentado no museu, a atenção concentrava-se no ato sacrificial por excelência de Mithras, praticado dirigindo os seus olhos ao Pai nas alturas.

Como em outras regiões do Império Romano, supõe-se relações entre o culto de mistérios de Mithras e os veteranos militares romanos que, após o seu período de serviço, passavam os seus anos de idade madura em regiões mais afastadas do Império. Também em Histria o assentamento de veteranos na primeira metade do século III teria sido de significado para a constituição de círculos fundamentados em elos contratuais e de lealdade de seus membros. O sentido de trato e os aspectos quase que soldáticos das concepções devem ser entendidos, porém, antes no seu sentido mais abstrato, como decorrentes de um sistema de concepções determinadas pela concepção de sátrapas ou arcontes.

Correspondendo ao eixo de todo o edifício de sinais típicos relativo à concepção do mundo e do homem, se separado dos seus sentidos últimos, ou seja, se compreendido não como sinal indicador de realidade outra, Mithras transformava-se em eixo de toda a magia, ou seja Abraxas.


Processo de transformação cristã em Histria

A cristianização da região, remontante, segundo a tradição, ao apóstolo André (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/134/Santo-Andre-Romenia-Brasil.html), exige como pressuposto para o estudo do processo transformatório desencadeado, a consideração do edifício de concepções e imagens implantado há séculos na região colonial e que sofrera mudanças de perspectivas com o pêso maior dado às expressões sinalizadoras segundo contextos não-greco-romanos. Com a cristianização, todo o sistema, tanto nas suas imagens paradigmáticas anti-típicas como nas típicas passaram a ser referenciadas segundo a narrativa das Escrituras, do Novo e do Velho Testamento.

O significado do Cristianismo em Histria é documentado pelos restos da grande basílica, uma das maiores da Dobrudja, com atrium, nartex e naos, construida na primeira metade do século VI em substituição a uma menor, de fins do século IV. No museu, conservam-se fragmentos de igrejas, de capitéis, frontões e altares.


Círculo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Histria (Ἰστρίη). Arqueologia de processos culturais do mundo de colonização grega do Mar Negro e suas repercussões no patrimônio cultural do Ocidente". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 134/3 (2011:6). http://www.revista.brasil-europa.eu/134/Histria-Arqueologia-Cultural.html




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