Santo André na Romênia e no Brasil. BRASIL-EUROPA 134/6. Bispo, A.A. (ed.). Academia Brasil-Europa e ISMPS





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BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Ion Corvin, Romenia. Foto A.A.Bispo

Ion Corvin, Romenia. Foto A.A.Bispo

Ion Corvin, Romenia. Foto A.A.Bispo

Ion Corvin, Romenia. Foto A.A.Bispo

Dervent, Romenia. Foto A.A.Bispo

Dervent, Romenia. Foto A.A.Bispo


Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 134/6 (2011:6)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2815


A.B.E.


A cristianização da terra do Mar Negro
e a potencialidade de imagens na tradição hagiográfica
- a gruta de Santo André de Ion Corvin
e Santo André "da borda do campo" no Brasil -


Ciclo de estudos euro-brasileiros na Romênia, 2011

 
Ion Corvin, Romenia. Foto A.A.Bispo

Um estudo de processos culturais que focalize relações entre a Romênia e o Brasil não pode deixar de dar especial atenção ao papel fundamental desempenhado pela cristianização na formação de ambos os países: nos dois casos a consciência histórica e a própria identidade tem como marco a chegada do Cristianismo, não integrando, na história nacional assim determinada, a época que a êle precedeu.

O Brasil, desde o seu Descobrimento solenizado com o levantamento da Cruz e com a primeira missa, recebendo a denominação de Terra de Santa Cruz devido à festa de Santa Cruz de maio, inseriu-se no processo missionário na tradição da Igreja Católica Romana, vinculando-se aqui historicamente à  ação apostólica de S. Pedro.

A Romênia, cuja identidade também é profundamente marcada pelo Cristianismo, o faz remontar ao apóstolo André, irmão de Pedro, fundamento da igreja oriental, o "primeiro chamado" dos apóstolos e o primeiro na linha dos Patriarcas ortodoxos, celebrado em regiões do Leste no mês de maio.

Se o apóstolo André está presente na designação de uma das primeiras povoações do Brasil - Santo André da Borda do Campo -, na Romênia surge como aquele que lançou os fundamentos do Cristianismo naquela região do mundo, sendo considerado o santo protetor, o padroeiro do país.

Já essas referências sumárias sugerem a possibilidade de reflexões que, distinguindo-se de estudos teológicos e histórico-eclesiásticos, correspondam a preocupações mais propriamente teórico-culturais referentes a imagens, a edifício de imagens e a processos a êle inerentes.

Teria sido a escolha do nome de Santo André para a povoação no Brasil arbitrária e sem maior significado? Uma resposta positiva a esta questão surge como improvável em época que designações de locais e regiões se orientavam segundo santos venerados por fundadores ou festejados em datas de fundação. Com o nome de um santo associavam-se necessariamente imagens provenientes da hagiografia, sempre lembradas em orações e sermões, ou transmitidas em narrativas populares e práticas tradicionais de culto ou festivas. Os contextos históricos que marcaram a vida e a ação desses vultos tomados como paradigmas de exemplaridade entravam necessariamente em relações com o contexto de sua respectiva atualização, determinada pela escolha do nome. Essas relações eram decorrência de associações e projeções: a observação de povos, de ambiente e de circunstâncias históricas chamavam à lembrança fatos e imagens conhecidas da tradição hagiográfica ou situações e ocorrências da vida do santo comemorado passavam a ser projetadas no meio. Em ambos os casos, a orientação segundo modêlos de exemplaridade heróica em meio adverso dos santificados traziam em si implicações de cunho valorativo para com o meio circundante, homens e épocas. Considerando a existência de  concepções geográficas, etnográficas e antropológicas de cunho simbólico na tradição bíblica e nas concepções da Antiguidade, e que necessitam ser consideradas nas narrativas relativas à ação dos apóstolos nas várias partes do mundo (Veja a respeito texto sobre S. Tomé na Índia http://www.revista.brasil-europa.eu/131/Cochim-Cristaos_de_Sao_Tome.html), pergunta-se quais seriam as imagens que teriam sido associadas aos indígenas da povoação denominada de Santo André nos primórdios da história cristã do Brasil.

Santo André da borda do campo

"Antiga e extinta povoação fundada em aprazivel situação, à margem direita do ribeirão Guapituba, por João Ramalho e sua família com os índios que se lhe agregaram, na paragem chamada Borda do Campo, território hoje da freguesia de São Bernardo, (...). Foi criada vila a 8 de setembro de 1553 pelo capitão-mor Antônio de Oliveira e provedor da Fazenda Braz Cubas, ratificada a criação no ano seguinte pelo donatário da Capitania.
Em 1560, achando-se em São Vicente, o 3° governador geral do Brasil Mem de Sá, por conselho dos padres jesuítas, que se achavam em rivalidade com João Ramalho ordenou aquêle governador a demolição da vila e a mudança de seus moradores para São Paulo de Piratininga.(...)"
(Manuel Eufrázio de Azevedio Marques, Apontamentos Históricos, Geográficos, Biográficos, Estatísticos e Noticiosos da Província de São Paulo... I, São Paulo; Comissão do IV Centenario da Cidade de São Paulo/Martins 1953, 227)

A história de João Ramalho, ligado a Bartira, filha do chefe Tibiriçá, é marcada pela sua ação em procurar demover os indígenas de hostilizar a vinda de portugueses com a esquadra de Martim Afonso de Souza, em 1532. Os povos dessa região - "à borda do campo" ou antes à beira da mata - surgem assim com a imagem de serem particularmente hostís, tendo sido um conflito mais grave apenas impedido por um europeu relacionado com uma indígena. A consideração dessa imagem poderia talvez ajudar a esclarecer acontecimentos posteriores, tais como a animosidade dos jesuítas, a extinção da povoação e a ação de João Ramalho como "capitão da gente que teve de ir ao sertão fazer guerra aos índios do Paraíba (Tupininquins), que tinham pôsto em cêrco e atacado a vila" (op.cit. II, 42)

Considerando-se a invocação a Santo André no nome da povoação fundada por João Ramalho, levanta-se a questão de prováveis associações entre a imagem dos povos indígenas considerados como particularmente hostís dessa região pelos portugueses e aquela dos povos da região onde o apóstolo agiu.

Local de reflexão: Ion Corvin

Segundo a tradição e o relato de doutores da igreja, o irmão de Pedro surge como o apóstolo da Ásia Menor, tendo pregado entre muitos povos, entre outros na Escítia, Trácia, Capadócia e Macedônia, em regiões da Grécia e mesmo em áreas da Anatólia e Geórgia. Esses elos com o Oriente justificam que seja considerado como o primeiro na linha apostólica justificativa da autoridade dos bispos e patriarcas de Bizâncio.

Na Romênia, salienta-se que foi André que, vindo da Palestina no ano 60, levou o Evangelho à Escítia, que corresponde hoje em parte à região da Dobrudscha, situada entre o Danúbio e o Mar Negro, uma tradição fundamentada em Origenes (+254) e Eusebius de Caesarea (+340). A existência de uma comunidade cristã já plenamente estabelecida na Dácia e na Escítia no século III é testemunhada por Tertuliano (+240). Nesse século, já havia até mesmo um bispo em Tomis (Constanta) e alguns nomes de bispos locais são conhecidos das Atas dos Mártires. Um bispo de Tomis chegou a tomar parte no Concílio de Nicea (325). A tradição e a força do Cristianismo local podem ser vistas na sua ação irradiadora, inclusive em direção ao Ocidente: assim, S. João Cassiano (+431), nascido na Escítia Minor, fundou conventos no Sul da França, na região de Marselha.

Próxima à localidade romena de Ion Corvin, em terras do interior da circunscrição de Constanța, situa-se o local onde, segundo a tradição, o apóstolo André viveu, atuou e batizou nas nove fontes de água ali existentes.

Dervent, Romenia. Foto A.A.Bispo

Como centro de peregrinação, Ion Corvin vem adquirindo cada vez maior importância desde o término do regime comunista. Esse crescente significado do local manifesta elos entre a revitalização religiosa e a consciência histórico-nacional da Romênia: representa um marco na remota história da cristianização e desempenhou um papel na história mais recente da Segunda Guerra e da época que a ela se seguiu. A afluência de fiéis tornou-se tão grande que se tornou necessário construir uma nova igreja. Com as suas cinco torres, essa igreja, não distante da anterior, de uma só torre, representa um testemunho do significado desse centro na atualidade.

"Local aprazível, à borda do campo"

Nessa região, marcada pelos seus campos, o observador é surpreendido em encontrar o mosteiro à beira de uma mata, com vegetação luxuriante. Em meio a jardins, cercado por florestas, erguem-se as igrejas e o edifício conventual, hoje também centro cultural.


Na montanha, sob as árvores, abre-se a gruta que, segundo a tradição, foi escavada pelo apóstolo André e seus discípulos, tendo ali orado e celebrado. Essa gruta é considerada como a mais antiga igreja da Romênia. Fechada à época comunista, readquire hoje significado extraordinário como local sacralizado de origem do Cristianismo romeno e de alto simbolismo histórico-político.

Muito ampla, com vários nichos, permitindo o repouso e a vida de um eremita, a gruta possui, ao fundo, espaço mais recôndito dedicado aos atos sagrados, encimada por uma abertura em forma de poço através da qual penetra a luz do exterior. Essa abertura é coroada por uma cúpula, vista do exterior por entre as árvores.

A gruta representa, assim, o corpo da igreja, à qual se antepôs uma fachada. De fora, apenas se vê o frontispício da igreja e, com mais atenção, de dentro da vegetação, o cilindro sobre o qual se eleva a cúpula. Essa gruta-igreja de Santo André representa, assim, não apenas um exemplo de integração da arquitetura na natureza ou da transformação de espaço natural em arquitetura, mas sim também importante chave para a compreensão da linguagem de imagens e para a leitura da arquitetura religiosa em geral

A gruta no interior da terra coberta de matas à beira dos campos da antiga Dácia necessita ser considerada no seu significado simbólico à luz dos conhecimentos que se possui dos estudos culturais da Antiguidade. Assim, a gruta é conhecida da linguagem visual do Mitraismo, difundido na região, como o comprovam fundos arqueológicos (Veja artigo sobre a Histria). Também as matas, que a cobrem, podem ser interpretadas no sentido figurado com base na linguagem de imagens transmitida em antigos mitos. Representa, aqui, em edifícios de concepções e figuras que atravessaram séculos, a região de trevas da noite de uma humanidade carnal, cuja vida é marcada por guerras e hostilidades. (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/134/Probota-Sao-Nicolau.html)

O apóstolo, vivendo asceticamente na igreja subterrânea sob as matas, à borda do campo, agiu de dentro de uma população cuja imagem era marcada por ímpetos guerreiros e atitudes de hostilidade. Este era o caso sobretudo dos Escitas. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/134/Ovidio-no-Mar-Negro.html)


Convento Dervent

A comunidade de Santo André assim fundada de forma "subterrânea" no sentido figurado em Ion Corvin, com o estabelecimento mais seguro da população cristã na região, cedeu o seu lugar histórico a outro centro, situado a não muita distância do original. Foi, no seu significado, transferida para Dervent, situado numa colina da qual se descortina ampla paisagem, em terras férteis acima das águas do grande lago de Bugeac.


Também aqui tem-se uma região aprazível, agora, porém, em posição de dominância sobranceira, para a qual ter-se-ia transferido, com a sua comunidade, Santo André. Desde a sua vinda, a água das fontes locais teria adquirido poder curativo, ou que justifica, até hoje, o significado religioso de Dervent como centro de peregrinação. Essa elevação tornou-se centro de formação, estudos e de culto cristão, uma escola dos povos da região. Essa função é representada pelo convento que ali se levanta e cuja antiga história pode ser documentada a partir do século IX. A atual igreja, com a profusão de suas pinturas murais, documenta o significado dessa colina para a qual transferiu-se Santo André após a fase inicial de sua ação junto às matas no sentido real e figurado do termo.


Aproximações interpretativas: terra

Os locais relacionados com a ação de Santo André na atual Romênia caracterizam-se por imagens denotativas da terra e de sua beleza. Em ambos os casos considerados, o observador confronta-se com constantes referências a montes, vegetação, jardins, a locais aprazíveis e a regiões cultivadas. Ao mesmo tempo, porém, constatam-se diferenças: em Ion Corvin as associações são antes relacionadas com a terra sob a humidade das matas, marcada por águas, em Dervent antes pela terra acima das águas, florescente com os seus jardins e fonte de água de qualidades curativas; as circunvizinhanças são cultivadas, cobertas sobretudo por videiras. A passagem de Ion Corvin a Dervent traz à lembrança a imagem do aparecimento da terra elevando-se das águas da narrativa  bíblica da Criação ou do alcance do sêco após a passagem do Mar Vermelho do povo escolhido que saia do Egito. Lembra, também, na tradição mitológica, do surgimento de Venus, da divindade da terra florida, elevando-se das águas do mar.

Neste contexto, o estudioso é levado a perguntar se concepções e imagens de antiga proveniência, estreitamente vicunladas com a observação do mundo natural, não se encontram à base de narrativas e suas atualizações na realidade de diferentes contextos e situações históricas. A beleza da terra - quando elevada da sua informidade causada pelas águas - pode ser interpretada como sinal de realidades espirituais.

Ter-se-ia, aqui, uma possibilidade interpretativa de natureza teórico-cultural dos elos de Santo André com o belo, o apóstolo que, na tradição hínica, surge como o cantor da beleza da cruz.

A vigência dessas imagens na sua atualização no contexto brasileiro surge como compreensível. Não apenas o local do povoado de Santo André "da borda do campo"  foi decantado como aprazível, mas também aquele para o qual a sua população foi transferida, ou seja, à colina de Piratininga, era acima dos baixos cortados pelas águas do Tietê, Tamanduateí e Anhangabaú, com a sua riqueza de flora e fauna, uma das localidades mais privilegiadas pelas suas qualidades climáticas e naturais do Brasil.


Círculo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "A cristianização da terra do Mar Negro e a potencialidade de imagens na tradição hagiográfica - a gruta de Santo André de Ion Corvin e Santo André da borda do campo no Brasil". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 134/6 (2011:6). http://www.revista.brasil-europa.eu/134/Santo-Andre-Romenia-Brasil.html




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