O nacional na música: Smetana. Bispo, A.A..Rev. BRASIL-EUROPA 133/19 (2011:5). Academia Brasil-Europa e ISMPS





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BRASIL-EUROPA

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 133/19 (2011:5)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2011 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2804




O nacional na música nos seus elos com processos culturais na Europa Central I
Da consciência política de Bedřich Smetana (1824-1884)


Ciclo de estudos Boêmia-Brasil da A.B.E. No ano da morte de Otto von Habsburg-Lothringen (1912-2011) Hořice. Cidade das Esculturas - Parque Smetana

 

A consideração das relações entre a República Tcheca e o Brasil, ainda que situando em regiões tão distantes entre si e de história tão diversa, revela desenvolvimentos paralelos ou afins, conectados com processos globais.


Os dois países apresentam uma proximidade cultural relativamente ao Barroco, de especial magnificência e significado em ambos os contextos (veja artigo nesta edição). Afiliam-se, também, quanto à importância do movimento romântico de conscientização nacional, em particular na música.


Barroco e Romantismo: poder-se-ia falar de uma proximidade psíquica ou de alma, que, para além de cogitações poéticas e interpretações literárias, mereceria ser estudada sob a perspectiva de processos culturais em contextos internacionais.


Assim como no caso do Barroco, também o Romantismo nacional ou o Nacional romântico, se considerado em cotejos, pode abrir perspectivas e trazer novos aportes para as reflexões culturais nos dois países. Esse significado se manifesta nas distintas conotações e modos de compreensão estético-cultural da música nacional na discussão tcheca e que revela certas analogias com um debate que também é conhecido no Brasil.


Tais cotejos trazem à consciência que reflexões e posições teórico-culturais nem sempre são resultados de desenvolvimentos próprios, nacionais, mas inerentes a processos globais, podendo surgir em diferentes contextos. Não só a arte e a música de conotação nacional em si deve ser objeto da pesquisa, mas também correntes de pensamento nacional, elas próprias expressões histórico-culturais.


"Parque Smetana" em Horice



Para essas reflexões, a pequena cidade Horice, não distante de Königgrätz (veja artigos a respeito), oferece um local altamente sugestivo. Trata-se do "Parque Smetana", situado às portas da cidade, aos pés da colina de Gothard. Implantado em 1900, salienta-se pelo considerável número de esculturas que ali se encontram, entre elas a principal, a do compositor que dá o nome ao parque: Bedřich Smetana (1824-1884). Essa estátua, de 1903, de autoria de Mořic Černil, foi o primeiro monumento levantado ao compositor.


Aos pés do monumento, encontram-se duas figuras de sua ópera mais famosa, Jeníček e Mařenka. Esse fato, além daquele de ter-se designado o parque pelo seu nome, inscrito nas colunas que emolduram o portão de entrada, obra do arquiteto Václav Weinzetti, acompanhadas por duas águias, manifestam a consciência do significado de sua obra e de seu direcionamento estético pela passagem do século no país que então ainda fazia parte da Dupla Monarquia Áustro-Húngara.


O monumento a Smetana manifesta, nas figuras e na sua decoração, os elos com o povo, representado por casal em gesto de afeto, e com a natureza. Todo o parque obedece a uma concepção que une cultura da terra e natureza. Mais do que um jardim, é um parque escultural. Ali se encontram várias estátuas de figuras de relêvo da história da conscientização nacional tcheca, entre elas a do pintor ali nascido Petr Maixner (1831-1884), a do pintor e ilustrador Mikoláš Aleš (1852-1913), a do crítico e historiador de arte Miroslav Tyrš (1832-1884) e a figura mítica do espírito das Montanhas do Gigante, o Rýbrcoul /Rieberzahl, do escultor Ladislav Šaloun (1870-1946).


Um monumento a outro músico marca o parque escultural de Smetana: o de Antonín  Dvořak (1841-1904). Criado em 1910, de autoria de Miloslav Vávra, é, pelas suas dimensões comparável ao de Smetana, ainda que de configuração menos ilustrativa e mais discreta. A coexistência desses monumentos aos maiores músicos associados com a consciência nacional tcheca no parque de esculturas propicia reflexões sobre as suas relações e diferenças estético-culturais.

Ambos foram levantados antes da Primeira Guerra, ou seja, à época da soberania dos Habsburgs, também reis da Boêmia. Após a Guerra, quando a República Tcheca foi emancipada do antigo Império, erigiu-se, em 1919, um monumento a Juraj Janošík (1688-1713), jovem herói legendário da Eslováquia, decantado como símbolo do combate à opressão.

Hořice: cidade da beleza em pedra: escultura e música a serviço do patriotismo


A existência desse parque de esculturas em Hořice explica-se pelo significado da localidade como centro de cantaria e das artes plásticas. Muito antigo, citado em documento de 1143, vila de mercado e elevado à cidade no século XIV, o povoado foi marcado pela batalha de Horschitz à época das lutas hussitas, quando forças católicas foram vencidas. Após a Batalha do Monte Branco, bens dos proprietários da região foram confiscados, passando a cidade por sucessões conturbadas de poder. De sua época barroca, salienta-se a igreja da natividade de Nossa Senhora, construída entre 1741 e 1748, um dos grandes monumentos do Barroco boêmio, assim como a igreja de S. Gothard e a sinagoga barroca, de 1729.

Após um grande incêndio, em 1846, a cidade foi reconstruída em pedra. Os trabalhos de corte de pedra e de cantaria tornaram a cidade conhecida supra-regionalmente. A grande procura de material de construção em pedra levou ao surgimento de várias oficinas, fato acompanhado por um desenvolvimento econômico baseado na indústria têxtil e na construção de moinhos e firmas, sobretudo por judeus alemães.

Em 1866, em aldeia próxima, teve lugar a Batalha das Sete Semanas entre a Prússia e a Áustria.

Da cantaria desenvolveu-se o trabalho artístico, que faria de Hořice um dos principais centros da escultura e do seu ensino. Em 1884, criou-se a Escola de Trabalhos em Pedra e Escultura.

O significado do Movimento de Revitalização Nacional em Hořice, que se manifesta no Parque Smetana, explica-se pela proximidade de Hradec Králové/Königgratz. Já anteriormente cultivava-se na cidade representações em idioma tcheco, o que se intensificou com o desenvolvimento econômico, acompanhado que foi por fundações de socidades e coros. Pelo final do século, Hořice tornou-se um centro de ensino, com escola secundária, instituto feminino e escola de agricultura.

O trabalho em pedra tornou-se emblema da cidade e de sua cultura, fato lembrado em monumento ao trabalhador em pedra do escultor Ladislav Šaloun (1908).

Friederich a Bedřich: da cultura alemã à conscientização tcheca


O romantismo da Boêmia é representado musicalmente sobretudo por Smetana, o autor do ciclo sinfônico "Minha Pátria" (Má Vlast).


Smetana, um dos maiores nomes da história da música de correntes nacionais, surge, sob uma perspectiva teórico-cultural, como significativo exemplo de processos de transformação cultural com a sua integração no movimento de conscientização tcheca.


Batizado com o nome de Friedrich, Smetana nasceu e cresceu em ambiente marcado pela cultura alemã. O seu pai, František Smetana (1777–1857), era fabricante de cervejas de famílias nobres da Boêmia. Tanto na vida familiar como na escolar, tendo estudado no ginásio premonstratense de Pilsen, o seu idioma era o alemão. Apenas já adulto é que foi imbuído do movimento marcado pela intensificação do sentimento nacional tcheco, passando a aprender a língua tcheca, quando também mudou o seu nome para Bedřich. Mesmo assim, somente em 1856 esteve em condições de escrever uma carta em tcheco, continuando a utilizar-se do alemão nas suas anotações particulares e no seu diário até 1861.


Smetana inseriu-se no movimento renovador da música alemã, fato testemunhado no seu entusiasmo juvenil por Franz Liszt (1811-1886) e na sua admiração por Richard Wagner (1813-1883).


Tomou parte na Revolução de 1848/49 e, por motivos políticos, sendo convicto anti-absolutista, abandonou em 1856 a sua região, transferindo-se para Göteborg, na Suécia, onde passou a dirigir a Sociedade Filarmônica local. Retornou a Praga após o término do Absolutismo, em 1861, dedicando-se decididamente ao movimento nacional tcheco. Fundou, em 1861, a "Sociedade Patriótica de Canto Hlahol", que dirigiu de 1863 a 1865. Foi regente dos Concertos Filarmônicos tchecos (1865-1869), crítico musical e presidente de sociedade musical e primeiro mestre-capela do Teatro Interim Tcheco. Adoecendo, em 1874, retirou-se.


O ciclo de seus poemas sinfônicos "Minha Patria" surgiu no contexto da produção da ópera Libusa. Inicialmente como ciclo de 4 partes, foi aumentado em 1878/79 com as peças Tábor e Blaník.


Controvérsia Smetana/Dvorák e seu significado para os estudos euro-brasileiros

Na discussão estética e musicológica posterior, a apreciação de Smetana e Dvorák foi marcada por posicionamentos de conotações políticas, não sem traços polêmicos. Salientou-se, no caso de Smetana, o significado do conteúdo poético para a determinação de uma linguagem musical coadunante com posições progressistas. Ao contrário, Dvorák passou a ser considerado antes como conservador e formalista. Outros, porém, defenderam a música de Dvorák. Houve, assim, um controvérsia Smetana/Dvorák relativamente à estética de conotação nacional. (John Clapham, Smetana, B. The New Grove Dictionary of Music & Musicians 17, London e.o. 1980, 391 ss; 403)

Nessa controvérsia, salienta-se que Smetana pretendeu criar um estilo musical tcheco, sem, porém, tomar de empréstimo diretamente materiais da música popular. O seu estilo, ainda que pessoal, tornou-se coletivamente aceito como tcheco pelos seus conterrâneos.

A questão que aqui se levanta é a da possibilidade de uma consideração relacionada do debate sobre o nacional da música na sua contextualização tcheca e na brasileira, uma tarefa que apenas pode ser desenvolvida satisfatoriamente em cooperação internacional de pesquisadores. Seria o caso, por exemplo, de indagar se Smetana daria um exemplo de compositor que, sem utilizar-se de elementos mais imediatamente tirados do folclore na sua obra, cria uma obra de relevância nacional pela sua identificação e solidariedade com o povo na sua realidade social, no seu modo de vê-la e nas suas reinvidicações. Ao contrário, o uso de materiais retirados diretamente do folclore significaria uma descontextualização desses elementos, a consideração de determinadas ocorrências mais constantes no sentido de uma tipologia, desintegrando-as de um processo histórico e integrando-as na linguagem erudita.

No II Congresso Brasileiro de Musicologia, realizado no Rio de Janeiro, em 1992, por motivo dos 500 anos do Descobrimento da América, essa temática foi tratada sob a perspectiva da questão dos "fundamentos da cultura musical no Brasil". Esse tema, escolhido devido à data que relembrava a chegada dos europeus ao continente americano, fora já tratado por Luís Heitor Correa de Azevedo no seu texto "A música brasileira e seus fundamentos", publicado na década de 40 no livro Música e Músicos do Brasil, Luiz Heitor Correa de Azevedo.

Nesse texto, L. H. Correa de Azevedo lembra que Mário de Andrade no seu Ensaio sôbre a música brasileira, era da opinião que, no processo de individualização de toda música nacional, haveria três fases sucessivas: a fase da tese nacional, a fase do sentimento nacional e a fase da inconsciência nacional. Sómente nesta última a arte culta e o indivíduo culto sentiriam a sinceridade do hábito e a sinceridade da convicção coincidirem. Para L. H. Correa de Azevedo, o Brasil se encontraria na segunda fase. (Luiz Heitor, Música e Músicos do Brasil: História-Crítica-Comentários, Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1950,16 ss., 41-42).

Nas reflexões, salientou-se que esse texto - e a opinião nele citada - deveriam ser vistos necessariamente no contexto histórico e político-cultural em que foram escritos e não como textos de orientações doutrinárias de vigência ainda na atualidade, no que concordava também o próprio L. H. Correa de Azevedo. Após passadas quase que duas décadas daquele congresso, levantou-se a questão se essas reflexões não deveriam ser ainda mais diferenciadas, considerando-se as discussões teórico-culturais das últimas décadas. Tratar-se-ia, aqui, sobretudo, de dirigir a atenção a processos culturais em estreito relacionamento com a história da própria pesquisa.

Antonio Alexandre Bispo

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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "O nacional na música nos seus elos com processos culturais na Europa Central I. Da consciência política de Bedřich Smetana (1824-1884)". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 133/19 (2011:5). http://www.revista.brasil-europa.eu/133/Smetana-consciencia-politica.html




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