"O Selvagem" de J. G. Seume. Bispo, A.A..Rev. BRASIL-EUROPA 133/10 (2011:5). Academia Brasil-Europa e ISMPS





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BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 133/10 (2011:5)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2011 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2795





"Nós, selvagens, somos os melhores homens"

"O Selvagem" de Johann Gottfried Seume (1763-1810)
- da experiência na América à imagem do indígena de sentimentos nobres -



Ciclo de Estudos Boêmia-Brasil da A.B.E.Pelos 200 anos de morte (2010) de Johann Gottfried Seume (1763-1810)
e pelos 150 anos (2012) da presença de Gonçalves Dias em Teplice/Teplitz-Schönau

 

O nome do escritor e poeta alemão Johann Gottfried Seume (1763-1810) é hoje pouco conhecido mesmo por aqueles que se interessam mais especialmente pela literatura alemã. Seume, cuja vida foi repleta de aventuras e viagens, ou não é considerado ou é mencionado de passagem em capítulos dedicados a romances da época tardia do Iluminismo, quando a observação realista ter-se-ia mesclado com um subjetivismo psicológico (Fritz Martini, Deutsche Literaturgeschichte von den Anfängen bis zur Gegenwart, 17 ed., Stuttgart: A. Kröner, 1972), 214)


Pelos 200 anos de sua morte, em 2010, sentiu-se a necessidade de trazer novamente à consciência o significado de sua obra e o interesse de estudos de sua personalidade sob o aspecto histórico-cultural, também sob a perspectiva dos estudos culturais em contextos euro-brasileiros.


Memória de Seume na Europa Central - monumento e parque em Teplitz


O esquecimento de Seume no presente não corresponde ao considerável grau de atenção dada à sua obra no passado. Na Alemanha, ainda hoje pode-se ler o seu nome na designação ruas em várias cidades, assim como de ginásios na Saxônia e na Turíngia  (p. e. em Grimma e em Vacha), regiões mais próximas do antigo mundo cultural de idioma alemão da Boêmia, então integrada no Império Áustro-Húngaro.


Principal testemunho da memória de Seume na Europa Central é o fato de a êle ser dedicado um parque e monumento em zona central do balneário de Teplitz. Seume faleceu nessa cidade de águas termais, então importante centro de vida social e cultural cosmopolita, onde políticos, intelectuais e artistas, procuravam, próximos à Natureza, saúde física e edificação mental. (veja texto sôbre Gonçalves Dias, nesta edição)


"O Selvagem" na História da Literatura Nacional Alemã


Textos de Seume faziam parte de coletâneas com excertos de obras de escritores alemães utilizadas em ginásios de Alemanha e trazidos por imigrantes para o Brasil, onde também foram utilizadas no ensino do alemão.


Uma dessas obras foi a muito difundida seleção de textos que acompanhou a "História da Literatura Nacional Alemã" de Hermann Kruge, de 1908 (Auswahl Deutscher Gedichte. Im Aschluß an die Geschichte der deutschen National-Literatur, 12 verb. u. verm. Aufl., Altenburg: Oskar Bonde 1908).


Nessa obra, Seume está representado com o seu poema de título "O Selvagem".


O estudante e o leitor - também aquele na imigração - deparavam-se assim com a temática indígena em obra dedicada a autores nacionais e que servia à formação de uma consciência nacional alemã à época do império guilhermino. Já esse fato justifica uma consideração mais atenta do poema e os aspectos da vida de Seume que possam explicam esse seu interesse pelo índio.


Crítica cultural à artificialidade européia e à distância à natureza


Esse texto de Seume pode ser visto como um das mais significativos exemplos da imagem do "nobre selvagem" no mundo alemão ("der gute, wackre Wilde").


O autor parte de uma crítica cultural à artificialidade da vida refinada européia, que matava os sentimentos espontâneos do coração.


Seume inicia o seu texto apresentando um indígena canadense, um hurão, que não conhecia ainda a "cortesia
artificial" da Europa e tinha um coração como Deus lhe havia dado, "livre de cultura", agindo segundo sentimentos como lhe nasciam do peito, vivendo do que caçava com o seu arco e flecha nas florestas distantes de Quebec. (veja sobre a imagem do índio em Quebec número anterior desta revista: http://www.revista.brasil-europa.eu/128/Imagem-do-indio.html)


Sem as artimanhas de comerciante, o hurão vendia o que trazia pelo pouco que lhe era oferecido.


A narrativa parte descrevendo como esse indígena, trazendo o seu modesto ganho, retornava para o seu povo que vivia escondido, longe dos olhos da civilização, e onde a esposa o esperava. Ainda longe de sua cabana, foi surpreendido por uma tempestade. Seume pinta como de seus longos cabelos negros escorria a água sobre o cinto, e de como o couro rude de suas vestes colava-lhe no seu corpo esbelto. Tremendo sob a chuva fria, o bom selvagem dirigiu-se a uma casa que deparou a não muito grande distância.


Aqui, a descrição de Seume dá lugar a um diálogo dramatizado. O índio pede, com gestos cordiais, abrigo até o fim do temporal. O dono da casa, porém, um colono, não o recebeu, dizendo que procurasse abrigo na sua própria casa, insultando-o de monstro odiendo e ladrão. Expulsou-o aos gritos, ameaçando-o agressivamente com um cacete que tinha num dos cantos de sua casa.


Voltando ao tom de relato, Seume descreve como o honesto hurão, triste, partiu caminhando através da tempestade, atingindo a sua pacífica casa no tarde da noite. Molhado e cansado, sentou-se ao fogo junto a seus filhos nús, contando dos habitantes da cidade e dos soldados que carregavam armas, da tempestade que enfrentou e da brutalidade do homem branco. As crianças rodeavam-no, abraçavam-se a seu peito, secavam os seus longos cabelos negros e procuravam na sua sacola as pequenezas que trazia e que para elas representavam tesouros.


A nobreza do indígena se manifesta no texto de Seume pouco tempo mais tarde. O colono branco, aquele que o repelira, perdendo-se na floresta durante uma caçada, procurava a trilha que o levara àquela mata escura. Andando sobre paus e pedras, atravessando vales e rios e escalando rochedos, gritava por socorro, recebendo como resposta apenas o eco proveniente de negras paredes rochosas. Imbuído de mêdo, caminhou até à meia-noite, quando viu luz tênue ao pé de uma montanha próxima. O seu coração palpitou ao mesmo de temor e contentamento; tomando coragem, aproximou-se silenciosamente da casa.


Inserindo novamente um diálogo, Seume descreve como uma voz, do interior da cabana, indagou quem ali se encontrava, dela saindo um homem. O europeu, chamando-o de amigo, explicou-lhe com voz meiga que se havia perdido na floresta, pedindo abrigo por uma noite e que lhe mostrasse o caminho da cidade na manhã seguinte, o que êle recompensaria.

O desconhecido pediu que entrasse, que se acalentasse ao fogo; levou-o a uma esteira e tomou o que restara de sua comida de um dos cantos para alimentar o estrangeiro. Este, com a fome de um caçador, jantou como se estivesse numa ceia conventual. O hurão, de semblante sério, observava o seu hóspede, vendo-o como comia com apetite e como tomava com satisfação a bebida de mel que a êle oferecera em grande concha. Uma pele de urso, deitada sobre musgo macio, serviu de cama ao colono, que ali dormiu até horas de sol já alto.


Acordando, o europeu, vendo o hurão na sua aparência selvagem, com arco e flecha, procurou rápidamente a sua arma, mas o indígena ofereceu-lhe uma caneca com a mais doce das bebidas para o desjejum. Após ter visto, sorrindo, como o seu hóspede a apreciara, levou-o à estrada certa através de caminhos tortuosos, sobre paus e pedras, por vales, riachos e matagais.


O europeu agradeceu-lhe cortesmente. O indígena, porém, com o semblante severo, encarando-o nos olhos, perguntou-lhe, com voz sonora, clara e séria se já não se tinham visto antes. Como se atingido por um raio, o caçador reconheceu no seu hospedeiro o homem a quem tinha negado abrigo há poucas semanas, expulsando-o às intempéries. Balbuciando desculpas, teve do hurão apenas a menção tranquila, pronunciada com um sorriso:

"Veja, vós estranhos e inteligentes brancos! Veja, nós selvagens somos os melhores homens". (op. cit. 606-607)


Experiência americana de Seume - perda de liberdade e risco de morte


Essa posição pró-indígena do escritor e poeta alemão exige, para ser explicada, a consideração de sua própria experiência de vida. Como pouquíssimos outros de sua época, como uma espécie de Chateaubriand alemão, Seume esteve no continente americano. A sua estadia, porém, decorreu em circunstâncias marcadas por aventuras, dificuldades e riscos.


Nascido em Poserna, perto de Weißenfels, na Saxônia, em família simples de camponeses, recebeu a sua formação em escola de aldeia e na escola latina da pequena cidade de Borna. Dedicando-se à teologia, estudou na Universidade de Leipzig, em 1780/81. A grande transformação de sua vida deu-se quando, a caminho de Paris, foi sequestrado por agentes que procuravam jovens para a prestação obrigatória de serviço militar. Seume foi enviado pelo duque de Hessen-Kassel à Inglaterra para que servisse na América para lutar, do lado britânico, no contexto da Guerra da Independência americana.


Chegou a Halifax, no Canadá, em 1782. (veja sobre Halifax número anterior desta revista http://www.revista.brasil-europa.eu/128/Arquitetura-do-loyalism.html) Ali teve contato com os indígenas, adquirindo a admiração que se manifestou no seu poema "O Selvagem". 

Tornou-se amigo do oficial Hieronymus Carl Friedrich von Münchhausen (1720-1797), que lhe abriu portas na Alemanha. Repatriado em 1783, tentou fugir do poder de Hessen e readquirir a sua liberdade, sendo capturado e levado a serviço do rei da Prússia, Friedrich II (1712-1786). Atuou como mosqueteiro em Emden até 1787. Falhando duas tentativas de fuga, devia ter sofrer pena de morte, sendo esta porém comutada em prisão em calabouço.


Estudos humanísticos, atuação como professor e na editôra Göschen


Seume, após a sua libertação, voltou a estudar na Universidade de Leipzig, de 1789 a 1792, dedicando-se agora ao lado do Direito à Filosofia, à Filologia e à História. Após o término dos estudos, atuou como mestre de Cõrte a serviço do Conde von Igelström e secretário do general russo von Igelström. Foi testemunha aqui da derrota da rebelião polonesa pelos russos.  Afastado da armada russa, trabalhou em Grimma no leitorado da editôra de Georg Joachim Göschen (Veja artigo sobre Grimma em outra edição desta revista: http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Grimma-Theodor-Uhlig.html). Em 1797, juntamente com Münchhausen, publicou livro com relatos do vivido.


Seume como viajante e significado de seus relatos

A partir de 1801, Seume realizou duas grandes viagens que adquirem particular significado na história da observação de povos e culturas. Visitou várias regiões da Europa, chegando até Siracusa ao sul, que relatou no seu famoso "Passeio a Siracusa"(Spaziergang nach Syrakus, 3 vols., 1803), à Rússia ao Leste e à Finlândia e à Suécia ao Norte.


O significado histórico-cultural dos seus relatos reside sobretudo no fato de Seume ter emprestando particular atenção ao contexto social, político e econômico das regiões que visitou. Serviu, assim, de modêlo a outros viajantes que realizaram observações e deixaram relatos que hoje são de importância tanto para os estudos histórico-culturais dos respectivos povos e regiões como também para a própria história do pensamento e da observação etnográfica e cultural.


A conotação política de suas observações também merece ser considerada. Tendo passado uma difícil juventude, pelo fato de ter sido sequestrado e obrigado à vida militar, ter atuado como soldado no continente americano e na Europa, Seume possuia uma particular sensibilidade para direitos humanos e consciência profunda do valor da liberdade.


Seume entrou também para a cultura popular alemã, sendo que vários de seus dizeres, transmitidos por vezes de forma anônima, mantiveram-se através dos tempos como expressões de uma sabedoria popular. Êle próprio, porém, provindo de família de camponeses, baseou-se no saber transmitido oralmente.


Esse é o caso da expressão - conhecido também entre os imigrantes do Brasil - que salienta a boa índole daquele que canta; os maus não sabem canções. Essa expressão corresponde à luso-brasileira de "quem canta os seus males espanta".


No seu poema "Os Cantos", de 1804, Seume transmite explicitamente essa convicção, que certamente havia captado da tradição e que afirma que onde se canta não se é roubado. A expressão "Wo man singt, da laß'dich ruhig nieder" tornou-se comum em ambientes familiares e em associações alemãs no Brasil.


„Wo man singet, lass dich ruhig nieder,
Ohne Furcht, was man im Lande glaubt;
Wo man singet, wird kein Mensch beraubt;
Bösewichter haben keine Lieder.“


Antonio Alexandre Bispo



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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "O Selvagem de Johann Gottfried Seume (1763-1810) - da experiência na América à imagem do indígena de sentimentos nobres ". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 133/10 (2011:5). http://www.revista.brasil-europa.eu/133/O-Selvagem-de-Seume.html




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