"A gente Lucca no Brasil" de W.A.Gerle. Bispo, A.A..Rev. BRASIL-EUROPA 133/17 (2011:5). Academia Brasil-Europa e ISMPS





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BRASIL-EUROPA

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 133/17 (2011:5)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2011 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2802




Conhecimentos do Brasil na Boêmia V
"A gente de Lucca no Brasil
" de Wolfgang Adolf Gerle (1781-1846)



Ciclo de estudos Boêmia-Brasil da A.B.E. No ano da morte de Otto von Habsburg-Lothringen (1912-2011), Děčín

 
Os estudos culturais dedicados a contextos que relacionam a Boêmia e o Brasil necessitam dar especial atenção ao século XIX, uma vez que foi nesse século que vieram os imigrantes que marcaram a história da colonização do Sul do Brasil. A atenção é dirigida, assim, à época em que a Boêmia integrava a Áustria-Hungria e na qual a população de lingua alemã desempenhava fundamental papel econômico, político e cultural na região, o que já não é o caso atual após a expulsão dessa população após o término da Segunda Guerra Mundial.

No caso da população de língua alemã da Boêmia, que é aquela aqui considerada, o complexo cultural foi determinado por diferentes fatores, entre os quais os político-religiosos desempenharam importante papel.

Integradas no Império dos Habsburgs, fundamentalmente católico, marcadas pela experiência e pelo patrimônio construído da Recatolização e Contra-Reforma do passado, as comunidades se referenciavam aqui sobretudo segundo Praga e Viena. Nesse contexto, os elos com a Alemanha se davam mais intensamente com as regiões marcadas pelo Catolicismo, sobretudo com a Baviera. As principais cidades referenciais do Protestantismo alemão eram os grandes centros da Prússia e da Saxônia.

É sob o pano de fundo desse complexo cultural e campo de tensões que deve deve ser tratada a questão do contexto cultural daqueles que emigraram para o Brasil. Uma das questões que aqui se levantam diz respeito aos conhecimentos a respeito do Brasil e à imagem do Brasil existente na Boêmia de língua e cultura alemãs.

Local de reflexões: Děčín - entre Praga, Dresden e Berlim

Um dos principais centros culturais da Boêmia do Norte foi, no século XIX, a cidade de Děčín ou, em alemão, Tetschen. Essa cidade situa-se próxima à fronteira da Saxônia, na Alemanha. É uma das cidades de especial importância para estudos de urbanismo de orientação cultural devido à sua configuração marcada pelo Barroco.

A sua localização geográfica explica o seu significado para os estudos culturais. Ainda que de remotas origens, o seu desenvolvimento deu-se na Idade Média, quando tornou-se, pela sua localização estratégica no Elbe, importante ponto de defesa e de comércio da via que vinculava a Boêmia ao Lausitz.

Com essas duas funções, a de controle e a do comércio, compreende-se a estrutura básica da cidade, marcada pelo castelo nas alturas das montanhas e pela urbe na parte baixa á beira do rio, que se desenvolveu a partir do século XIII. No século seguinte, estabeleceu-se uma nova cidade, ao norte do castelo, sob o domínio da família von Wartenberg. Esse domínio passaria no século XVI à estirpe dos Bünau e, a partir do século XVII, à de Thun und Hohenstein.

Sob o domínio da família Bünau, a cidade cresceu econômicamente, sendo o comércio local sobretudo baseado na madeira, fato compreensível pela riqueza florestal da região. Sob os Thun und Hohenstein ficou vinculada a história cultural do castelo e a sua transformação em importante centro cultural.

Pela sua posição geográfica, situada entre os poderes em conflito na Guerra dos Trinta Anos, a cidade foi alternadamente marcada pela presença de tropas protestantes e católicas.

Após a Guerra, a Catolização foi particularmente intensa nessa cidade, transformando Děčín numa das mais impressionantes manifestações de encenação urbana nas suas relações com a paisagem.

Exemplos dos mais significativos de arquitetura religiosa do Barroco são a igreja do Espírito Santo, construída entre 1687 e 1691, a de S. Venceslau e S. Blásio, reconstruída após um incêndio ocorrido em 1749 e a capela de S. João, de 1732, remodelada no século XIX.


A localização de Děčín foi também importante fator no desenvolvimento da cidade em meados do século XIX. Com a construção das estradas de ferro, a cidade tornou-se estação de fronteira. Era por Bodenbach, localidade à margem esquerda do Elbe, que passava a linha que ligava Praga a Dresden e Berlim. Essa posição contribuiu ao desenvolvimento industrial de Bodenbach, o que se manifestou na vida cultural e na sua arquitetura. Durante a segunda Guerra Mundial, ambas as cidades foram unidas, surgindo Děčín-Bodenbach. Após 1945, a população alemã foi expulsa, seguindo-se uma transformação demográfica e cultural da cidade.


À entrada da Boêmia, a cidade recebia aqueles que vinham da Alemanha com a espetacularidade do seu Barroco. Nesse sentido, tornava-se um sinal que marcava a entrada em mundo cultural fundamentalmente marcado pelo Catolicismo. Esse contraste, que não se verifica de forma tão intensa nas cidades barrocas de regiões próximas à Baviera, também católica, faz da cidade significativo centro para reflexões referentes ao Barroco e suas consequências.

Como exposto em outros artigos desta edição, o Barroco no contexto da Recatolização da Boêmia foi marcado pelas atividades de artistas provenientes de regiões italianas. Essa é também uma das razões que explicam a similaridade de fisionomias de cidades do antigo império austro-húngaro com aquelas da Baviera e do Norte da Itália.

No século XIX, porém, a época do Barroco já passada, os artistas italianos que haviam tido amplo campo de atividades na Europa Central, necessitavam encontrar novas possibilidades de trabalho, o que levou a novos desenvolvimentos. Essa situação pode ser constatada a partir de um artigo referente a estucadores de Lucca publicado na revista Panorama do Universo, publicada e redigida por Wolfgang Adolf Gerle em Praga. (Wolfgang Adolf Gerle, "Die Luccheser in Brasilien", Das wohlfeilste Panorama des Universums zur erheiternden Belehrung für Jedermann und alle Länder 23, 1836, 181-182) A respeito desse escritor e do seu interesse pela cultura popular e tradicional nas várias nações, pré-condição para compreender-se o escopo do seu artigo, teceram-se reflexões no contexto de Turnov (veja texto respectivo nesta edição). Aqui cumpre salientar que Gerle também possuia afinidade com a cultura italiana, exercendo também atividades de professor de italiano no Conservatório Musical de Praga.

Da estucatura barroca ao Kitsch em gêsso e sua irradiação ao Brasil

O pequeno artigo de Gerle intitulado de "A gente de Lucca no Brasil", que poderia passar despercebido em estudos preocupados exclusivamente com dados relativos a expressões culturais conotadas como brasileiras, assume significado à luz de interesses mais recentes dos estudos culturais.

Êle trata da difusão, no Brasil, de figuras de gêsso produzidas na Itália e a criação de uma procura para esses objetos. Apresenta, assim, por um lado, interesse para estudos histórico-estéticos de mudanças de preferências no Brasil e da difusão do Kitsch europeu no século XIX. Gerle, porém, correspondendo ao interesse por questões comerciais particularmente acentuado na Boêmia no âmbito do Império Austro-Húngaro, aborda o assunto a partir de uma perspectiva comercial. Êle chama a atenção, no seu artigo, à existência dos estucadores italianos de Lucca, que viviam da produção de estatuetas de gêsso.

O interesse pela arte de estucatura na Boêmia é compreensível, sobretudo devido à importância do Barroco na Recatolização do país, o que levou à transformação de edifícios e à ornamentação de salas e tetos com trabalhos de gêsso. Nesse passado, já então de décadas, artistas italianos estiveram intensamente envolvidos na ornamentação de estuques de igrejas e salas de edifícios. Com as mudanças de estilo, os artistas de estuque italianos perderam muito de suas possibilidades de trabalho. O texto de Gerle documenta, assim, uma estrategia de sobrevivência desses artistas, que passaram sobretudo a produzir objetos decorativos, em geral estatuetas de pouco valor, precisando criar um mercado para os seus objetos. Como Gerle sugere, essa produção, procurando satisfazer desejos de diferentes classes sociais, orientava-se tematicamente na Antiguidade Clássica ou em representações exóticas em miniatura, em particular chinesismos, podendo, porém incluir outros tipos de figuras.

Devido às possibilidades naturais de Lucca, favorecendo a produção de gêsso, ali viviam numerosos artesãos, organizados em grupos. Gerle menciona as características de seu procedimento produtor-comercial: enquanto alguns grupos permaneciam no trabalho local, outros percorriam a Europa e mesmo a América procurando interessados para a compra dos objetos.

"A gente de Lucca no Brasil"

"Nas montanhas de Lucca mora um povinho trabalhador, que no fundo vive apenas do gêse ou do cal de enxôfre ácido que sai do seio de seus morros. São estucadores; se alimentam com as suas esculturas de gêsso.  Sob as suas mãos surgem aquelas diversas figuras de gêsso da Venus Anadyomene até o pagode chinês.

Todos esses artesãos, ao todo cerca de 1800 até 2000, dividiam-se em 300 grupos, cada um com seis ou sete pessoas. Enquanto duas terça partes ficam em casa, os outros correm toda a Europa e a América, oferecendo por todo o lado as suas mercadorias."

Gerle menciona a mudança de critérios econômicos com a produção em massa de obras artísticas de menor valor: os lucros eram menores relativamente aos objetos individuais, somavam-se, porém, no todo. Com a vida econômica e modesta que seguiam, podia-se chegar, assim, a grandes capitais. A solidariedade coletiva levava à distribuição de lucros; sempre havia, assim, novos grupos que partiam para a venda das estatuetas.

"O seu lucro é pequeno, mas se repete inumeravelmente; o seu capital é pouco, mas é revertido mil vezes; êles são incansávels, mas vivem em extrema economia. Assim, ajuntam por fim somas consideráveis e voltam para a sua terra. Agora, o capital é dividido, e o resultado são novos enviados da sua empresa, novos grupos. As pessoas mudam, e dá-se continuidade à fabricação e ao comércio."

O interesse para os estudos brasileiros reside no fato de Gerle ter salientado, no seu texto, o fato dos estucadores de Lucca terem alcançado o Brasil nas suas andanças comerciais pelo mundo. Esse fato, determinando o título do artigo, indica o significado da recepção brasileira dos produtos de gêsso italianos. Se o país não tivesse tido uma posição especial no mercado desse produto não teria sido salientado de tal forma por Gerle. O seu artigo refere-se ao Brasil, não a Lucca.

"Desse modo vieram comerciantes de figuras de gêsso também ao Brasil, há mais ou menos vinte anos. No começo, as suas vendas eram insignificantes; aos poucos, porém, aumentaram. Nos tempos mais recentes tornaram-se tão notáveis, que agora há um forte grupo brasileiro. Enquanto que as nobres figuras antigas enfeitam as salas dos finos, os pagodes grotescos e as gozadinhas figuras muito coloridas acham o seu caminho às choças de negros, que ficam muito orgulhosos de possuí-las."

Surgimento de mercado brasileiro para figuras de gêsso

O artigo de Gerle menciona a conquista do mercado brasileiro pelos agentes de Lucca no espaço de 20 anos. À época, ou seja, nos anos 30 do século XIX, a procura de objetos de gêsso tornara-se tão intensa que levara à criação de um grupo especial em Lucca voltado ao comércio no Brasil.

O gôsto por estatuetas de gêsso no período posterior à Independência e da Regência poderia dar margens a reflexões histórico-culturais e sócio-históricas. Numa primeira aproximação, sugere a interação de fatores econômicos e de processos culturais relacionados com a nova consciência de país independente, ou seja, com questões de identidade. No período econômicamente difícil de nação independente, anelos estéticos de afirmação em relação à Europa dificilmente poderiam ser satisfeitos com obras de arte, por demais dispendiosas; as estatuetas de gêsso teriam representado aqui um substituto, satisfazendo necessidades e intentos.

Significativo no texto de Gerle é o fato do autor dar atenção à diferença de gôsto segundo classes sociais. Os objetos associados com divindades gregas, ou talvez também renascentistas, sugerindo erudição e cultura, seriam mais procurados por pessoas de mais posses; as mais modestas, porém, entre elas as dos escravos e livres, teriam maior preferência por chinesismos, ou seja, por arte exótica.

Vênus para europeus, pagodes chineses para os descendentes de africanos

A preferência por objetos referentes à cultura da Antiguidade nos círculos sociais de mais posses no Brasil parece ser compreensível, uma vez que correspondiam antes a tendências neoclássicas em voga.

Considerando que o chinesismo nas residências aristocráticas pertencia já há uma época passada, poder-se-ia constatar aqui uma tendência à ascensão social dos círculos mais modestos da população segundo modêlos já não mais atuais, associados, porém, à vida aristocrática. Ao mesmo tempo, era aqui que se encontrava o interesse por figuras de pequenas dimensões e graciosas, bem humoradas e muito coloridas, também características frequentemente citadas do Kitsch doce e amável.

O texto de Gerle indica, também, que a difusão desses objetos de gêsso de proveniência italiana no Brasil não deve ser relacionada com a imigração italiana. Tratou-se de um fenômeno anterior, determinado pelos procedimentos comerciais baseados na estrutura de trabalho dos estucadores de Lucca.

Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Conhecimentos do Brasil na Boêmia V. 'A gente de Lucca no Brasil' de Wolfgang Adolf Gerle (1781-1846)". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 133/17 (2011:5). http://www.revista.brasil-europa.eu/133/Estucadores-de-Lucca-no-Brasil.html




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