A. Dvórak no cenário político. Bispo, A.A..Rev. BRASIL-EUROPA 133/20 (2011:5). Academia Brasil-Europa e ISMPS





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BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 133/20 (2011:5)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2011 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2805




O nacional na música nos seus elos com processos culturais na Europa Central II
Antonin Dvórak (1841-1904): posição no cenário político da Dupla Monarquia



Ciclo de estudos Boêmia-Brasil da A.B.E. No ano da morte de Otto von Habsburg-Lothringen (1912-2011). Reflexões em Česká Kamenice (Böhmisch Kamnitz)

 

Toda e qualquer consideração relativa à cultura tcheca não pode deixar de incluir o nome de Antonin Dvórak (1841-1904), um dos compositores mais conhecidos internacionalmente e que assegura a presença tcheca na história da música e na vida musical, não só da Europa.

Em estudos voltados a relações musicais entre a Europa e o Novo Mundo, o nome de Dvórak também não é e não pode ser esquecido. Dvórak foi o compositor de maior significado que esteve no continente americano e a sua atuação e sua obra realizada nos Estados Unidos justificam a sua posição privilegiada na historiografia musical americana. Tendo incorporado elementos musicais do contexto cultural americano na sua obra, criou composições que se tornaram emblemáticas para o país, para o continente e sua representação na Europa. Em particular a sua "Sinfonia do Novo Mundo" marcou a imagem das Américas e garante a presença do continente no repertório de concertos. Com a sua atividade didática nos Estados Unidos, o compositor tcheco formou e influenciou discípulos e co-determinou desenvolvimentos estético-musicais.

Dvórak surge como a principal ponte entre o movimento nacional da Europa Central e o Novo Mundo. Essa ponte não foi de um só sentido, mas trouxe também a América musical à Europa. Significativamente, ao retornar, com fortuna adquirida nos Estados Unidos, Dvórak construiu a sua "Villa América" em Praga, mais tarde transformada em museu.

O papel desempenhado por Dvórak na história da música de conotação nacional no Novo Mundo faz com que o seu nome seja frequentemente lembrado em estudos do nacional na música em contextos continentais. Essa consideração é de importância, pois dirige a atenção aos elos entre o movimento estético-musical nacional nas nações americanas àquele determinado pela situação político-cultural da Europa Central no século XIX, marcada que foi pela conscientização e afirmação de nacionalidades no contexto plurinacional do Império Austro-Húngaro.

Esses elos trazem à consciência a necessidade de um tratamento transnacional do nacional na música, o que apenas aparentemente surge como contraditório. Uma atenção voltada a contextos globais significa não apenas uma superficial constatação de desenvolvimentos paralelos e similaridades, mas sobretudo a percepção de processos histórico-culturais que atravessam fronteiras e que despertam e exigem intuitos de análise mais diferenciada. Contribui, assim, à visão do panorama do nacional e do nacionalismo da música a partir de um ponto de observação mais alto, de perspectivas mais amplas.

Por demais foram até hoje esses estudos marcados pelos enfoques nacionalistas de uma historiografia inserida em determinadas fases do desenvolvimento político do século XX. Essa herança permaneceu viva para além do contexto histórico-político em que se inseriu, marcando até hoje de forma nem sempre refletida concepções e modos de interpretação dos desenvolvimentos. Fazem-se perceber nos estudos culturais e sobretudo na Etnomusicologia, esta contribuindo muitas vezes à sua perpetuação.

A renovação dos estudos musicológicos exigem uma reorientação da atenção a processos e isso não significa descontextualização ou mesmo alienação relativamente a situações sociais e culturais. Ela conduz, ao contrário, a uma mais diferenciada consideração de contextos e ao aguçamento da percepção para mecanismos que vigoraram e que possivelmente ainda estejam vigentes. Coloca o pesquisador das nações americanas em posição de não apenas considerar uma história da música nacional ao lado de uma história da música universal, mas sim de dirigir a sua atenção a um campo de tensões global, adquirindo condições para dar a sua própria contribuição ao estudo mais diferenciado dos estudos na própria Europa. Essas reflexões não são de origem recente, tendo levado a esforços renovadores no tratamento do nacional e do nacionalismo na música em iniciativas desenvolvidas em São Paulo já em meados da década de 60, época da fundação da organização de estudos de processos culturais (Nova Difusão).

Foram retomadas, mais recentemente, em cursos dedicados desde os anos 90 à música no encontro de culturas e, sobretudo, ao Clássico e ao Romântico na musicologia de orientação culturológica realizados em universidades alemãs e nos quais se considerou em particular contextos euro-brasileiros. Uma das sessões desses cursos foi dedicada especialmente a Dvórak, tendo-se discutido a necessidade de uma consideração mais atenta de posições de pesquisadores tchecos que consideram o seu significado relativamente ao de Bedřich Smetana (1824-1884). (veja artigo nesta edição)

Reflexões em Česká Kamenice (Böhmisch Kamnitz)


Uma cidade que se oferece de forma significativa para o desenvolvimentos desses estudos concernentes a Dvórak é Česká Kamenice, ou o Kamnitz boêmio. Nessa cidade, passou anos que podem ser considerados como marcantes na sua formação.


Nascido na pequena cidade de Mühlhausen (Nehalozeves), próximo de Kralup, Boêmia, filho de açougueiro, a sua história de vida sugere anelos de ascensão social de sua família e para a qual a música teria sido um veículo. Nas condições da época, o domínio do idioma alemão e a integração em círculos sociais marcados pela cultura teuto-boêmia surgiam como necessários para o alcance de tais anelos.  Os seus pais cuidaram, assim, que desenvolvesse conhecimentos do alemão, sendo enviado para aprendê-lo com apenas 14 anos para a vizinha cidade de Zlonice. Ali, os seus conhecimentos musicais, recebidos do próprio pai, foram desenvolvidos pelos músicos J.Toman e A. Liebmann, inserindo-se num círculo marcado pelo cultivo amador da música, conservador e, ao mesmo tempo, de cunho popular. Para aperfeiçoar-se no alemão e integrar-se ainda mais na cultura dos boêmios alemães, foi enviado à cidade de Kamnitz.

A cidade remonta a uma colonia alemã fundada à margem do rio Kamnitz no século XIII, desenvolvendo-se cedo como um centro de atividades artesanais. Já em 1394 os seus habitantes alcançaram autorização para a produção de cerveja e de comércio de bebidas alcoólicas, tornando-se conhecida pelos seus mercados. Esses fundamentos medievais da cultura local se expressam no culto a S. Tiago Maior, o que insere a colonia em contexto religioso-cultural referenciado pela veneração do apóstolo do Ocidente em Santiago de Compostela. Testemunho dessa veneração é a igreja de S. Tiago local, remontante ao século XIV. O desenvolvimento econômico da comunidade possibilitou a construção de representativo edifício para a prefeitura (Rathaus), construído em 1491.


Esse povoado alemão, de posse da família von Wartenberg, passou para a propriedade dos senhores de Salhausen, de Meissen, no século XVI; após uma divisão de propriedades, originou-se o domínio de Kamnitz, em 1535. Em época de intensificação do Catolicismo na Boêmia em reação a movimentos de reforma a cidade tornou-se centro religioso, o que é documentado pela construção do castelo á frente da igreja de S. Tiago e, já à época do florescimento do Barroco boêmio, da capela dedicada a Santa Maria, de 1736/39.  A força com que a recatolização se fêz sentir na região pode ser avaliada do fato de ali terem ocorrido várias rebeliões e revoltas de camponeses. No século XVIII, Kamnitz tornou-se centro marcado por prosperidade econômica, baseada sobretudo no trabalho em objetos de vidro e na produção de tecidos. Essa prosperidade foi garantida no século XIX industrialização da tecelagem, e posteriormente no surgimento de oficinas para trabalhos em ferro e de produção de máquinas e móveis. Na atmosfera conservadora dessa cidade, marcada pela tradição religiosa, Dvórak foi aluno do maestro do coro da igreja, substituindo-o em determinadas ocasiões. De retorno a Zlonice, deu continuidade a seus estudos com Liebmann, compondo peças para a banda local.

Caminhos posteriores e relações com a América 

O próximo grande passo foi dado com a sua transferência para Praga, onde, a partir de 1857, passou a estudar órgão no Conservatório. Continuou, porém, a tocar em orquestras de bailes, regida por Karl Komzák, escrevendo também danças que posteriormente seriam publicadas. Com a integração dessa orquestra na orquestra do Teatro Nacional, em 1862, Dvórak tornou-se violista da ópera tcheca; esse Interimtheater destacou-se no desenvolvimento de uma ópera de conotações nacionais. A identificação de Dvórak com a cultura alemã continuou porém viva, sendo que em 1870,chegou a escrever uma ópera em língua alemã: Alfred. Em 1872, tornou-se conhecido pela composição de uma obra patriótica, o Hino "Os Herdeiros do Monte Branco" para coro mixto e orquestra.

Uma mudança na sua orientação levou-o não apenas à revitalizar os seus ideais clássicos e a sua admiração por Beethoven e Schubert, como também à sua maior aproximação ao movimento de conscientização nacional tcheca, inspirado na música folclórica do país. Com uma bolsa do govêrno da Áustria e com o apoio de J. Brahms e do editor Fritz Simrock (1838-1901), alcançou prestígio na Europa e nos Estados Unidos; seu nome tornou-se conhecido sobretudo pelos Duetos Morávios, pelas Danças Slavas (1878). O seu Stabat Mater (1876) alcançou sucesso em execuções na Áustria-Hungria e na Grã-Bretanha.

Assim como Sigismund von Neukomm (1778-1858) anos atrás - que também representou uma ponte entre a Europa dos Habsburgs, a Grã- Bretanha e o continente americano - Dvórak visitou várias vezes as ilhas britânicas, ali obtendo renome e influência.  Ali esteve nove vezes, sendo nomeado a membro honorário da Sociedade Filarmônica de Londres e Doutor honoris causae da Universidade de Cambridge. A Grã-Bretanha foi também a sua ponte aos Estados Unidos.

O seu Stabat Mater foi executado com grande sucesso na America, sendo convidado pela fundadora do Conservatório Nacional de New York, Jeanette M. Thurber, personalidade imbuída da idéia de libertar a música americana do predomínio europeu. A ela caberia, assim, o mérito de ter entusiasmado Dvórak pela idéia e que o levaria ao estudo de melodias indígenas e de Negro Spirituals. Ali escreveu a Sinfonia Nr. 9, o Te Deum e o "Quarteto Americano" op. 96, assim como o Quinteto op. 97, a sua suite para piano e a sonatina para violino, além da cantata The American Flag. Chegou a pensar na composição de um hino nacional americano.

Para ali permanecer, obteve a liberação, por dois anos, de suas obrigações no Conservatório de Praga, recebendo também o título de doutor honoris causae da Universidade de Praga. Como diretor artístico do Conservatório de New York, desempenhou importante papel na formação de jovens compositores, incentivando-os a desenvolver uma música com características próprias a partir do estudo do folclore. O estudo de música indígena e afro-americana foi desenvolvido com James Huneker e seu estudante H. T. Burleigh; realizou uma visita a Omaha.

Com uma interrupção de férias na Boêmia, em 1894, voltou a Nova York, onde permaneceu até 1895. A sua criação nessa fase é marcada pelo poema sinfônico.

Na Áustria-Hungria, recebeu do Imperador altas condecorações, chegando a tornar-se membro da Academia das Ciências de Praga.

Controvérsia Smetana/Dvorák e seu significado para os estudos euro-brasileiros

Essas apreciações sumárias denotam estreitos relacionamentos entre diferentes tendências políticas e diferentes expressões do nacional na música. Nesse confronto, Dvórak surge como mais vinculado com o sistema da Dupla Monarquia, o que se expressou também favoravelmente na sua carreira e no reconhecimento que alcançou de instâncias oficiais. No contexto das tensões da Europa Central, surge como mais ligado ao regime estabelecido, mais conservador ou, em termos partidários, de direita. A sua linguagem musical, apesar das transformações por que passou, poderia ser assim considerada a partir dessa perspectiva, isso valendo para uma expressão de aspirações nacionais na música caracterizada sobretudo pelo emprêgo de elementos musicais ganhos do folclore. Nisso ter-se-ia distinguido de Smetana, cuja concepção do nacional seria antes de cunho poético. Considerando o papel desenvolvido por Dvórak no movimento nacional na música das Américas, esse enfoque ganha em significado para os estudos mais diferenciados do nacional e do nacionalismo dos países do continente e para a comprensão das diferentes posições estético-culturais que também nele se fizeram sentir.

Esse debate chama a atenção do pesquisador a diferenças existentes no próprio meio tcheco à época do Estado multinacional dos Habsburgs. Sob um ponto de vista cultural, levantam-se aqui questões relativas a processos de identidade de círculos tchecos relativamente à cultura austríaco-alemã predominante. Tanto Smetana como Dvórak aprenderam e utilizaram o idioma alemão, ainda que sob diversas circunstâncias. Foram ambos no seu desenvolvimento marcados por elos com personalidades da vida musical alemã, testemunhando a recepção de correntes alemãs no contexto tcheco. O estudo do movimento nacional tcheco relaciona-se, assim, de forma estreita com aquele relativo ao desenvolvimento musical e político cultural na Alemanha. A questão que se levanta, assim, diz respeito às razões que explicam a diversidade de vínculos com o mundo alemão e de expressões que denotam impulsos de auto-afirmação, integração e, ao mesmo tempo, de diferenciação na situação de labilidade dos tchecos no exemplo dos dois compositores.

Antonio Alexandre Bispo



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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "O nacional na música nos seus elos com processos culturais na Europa Central II
Antonin Dvórak (1841-1904): posição no cenário político da Dupla Monarquia". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 133/20 (2011:5). http://www.revista.brasil-europa.eu/133/Dvorak-posicao-no-cenario-politico.html



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