Nave e navegação nas narrativas nórdicas. Bispo, A.A.. Rev. BRASIL-EUROPA 132/21. Academia Brasil-Europa e institutos integrados (ISMPS).




Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Centro de Sagas. Islândia. Foto A.A.Bispo








Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 132/21 (2011:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2011 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2784


A.B.E.


Instituições em visita


A nave e a navegação nas sagas e sua contextualização regional
- o fado do mundo velho marcado pela vingança -
pelos 1000 anos da queima da casa de Njáll
Centro de Sagas Sögusetrid, Hvolsvöllur



Trabalhos da A.B.E. na Islândia pelos 200 anos de nascimento de Jón Sigurðsson (1811-1887). Centro de Sagas Sögusetrid, Hvolsvöllur

 

Considerar a história das navegações é tarefa importante e necessária para os estudos culturais em contextos globais. As viagens foram, entre outros aspectos, estreitamente ligadas aos descobrimentos, à expansão de povos, ao contato e ao intercâmbio entre culturas, à história da missão e da colonização, sendo impossível examinar processos postos em vigência sem o estudo dos feitos navegatórios.

No caso dos estudos euro-brasileiros, o estudo histórico das navegações portuguesas assume naturalmente posição privilegiada. Entretanto, também a história naval de outros países europeus, dos espanhóis, dos franceses, dos holandeses e dos inglêses, entre outros, necessita ser considerada no estudo adequado e diferenciado de desenvolvimentos.

O estudo das navegações no âmbito dos estudos culturais, porém, não é apenas de natureza histórica. Para que se possa estudar os processos culturais desencadeados ou transformados pelos contatos torna-se necessário dar atenção especial às expressões culturais trazidas por aqueles vindos pelo mar, o que pressupõe o conhecimento do seu cultivo na terra de origem. O exame dessas expressões exige o estudo de seus fundamentos históricos, de suas funções e sentidos. 

Essa preocupação leva a estudos de edifícios de concepções e imagens, de visões do mundo e do homem que marcaram as viagens de navegação e que foram transmitidos de forma nem sempre conscientemente refletida no âmbito de expressões tradicionais. Sobretudo costumes, práticas religiosas, lúdicas e festivas de marujos e de camponeses que vieram nas naves, seus cantos e narrativas, possibilitaram a transferência de um patrimônio de conhecimentos e saber de remotas origens de suas terras às novas regiões.

Já a necessidade de estudo dessas expressões e de seus sentidos indica o significado de aportes dos estudos das navegações à história de disciplinas culturais, que em geral dedicam-se antes à observação empírica de expressões no presente.

Também nessas expressões vivas na tradição, porém, a navegação encontra-se presente. Imagens de naves, marujos e marinheiros marcam várias expressões culturais, bastando lembrar-se, no caso do mundo de formação portuguesa, das representações de autos da barca, em particular da Nau Catarineta.

Para além de estudos dessas expressões que se limitaram a considerar as suas origens históricas ou mesmo a permanência na memória popular de empreendimentos marítimos do passado colonial, tem-se considerado já há muito os seus complexos elos com o ciclo do ano, com concepções religiosas relativas ao mundo, à comunidade e ao homem, assim como com contos de natureza não-histórica.

O narrativo dessas expressões tradicionais vinculadas a imagens da navegação, na sua complexidade, incita o pesquisador a procurar analisar estruturas subjacentes e compreender os seus sentidos, assim como o da inserção do atualizado na narração em edifício mais amplo de concepções e imagens.

A nave na mitologia da Antiguidade, na tradição bíblica e na cultura nórdica

Das diferentes análises que foram desenvolvidas em várias oportunidades do trabalho das últimas décadas realizados no âmbito da A.B.E., deu-se particular atenção à imagem da nave e da navegação fixada nos céus estrelados, em particular àquela do navio Argo. Os estudos levaram a tratar segundo diversos ângulos e perspectivas disciplinares narrativas da antiga mitologia grega, considerando os seus elos e interrelacionamentos com outras tradições mitológicas da Antiguidade.

Dedicou-se atenção sobretudo aos mecanismos que possibilitaram a permanência dessas imagens na tradição cristã, na qual a barca e a navegação primordiais são aquelas da arca de Noé. O relacionamento de imagens da Antiguidade clássica e do Velho Testamento apenas tornaram-se possível a partir de sua focalização a partir do Novo, ou seja, da nave da Igreja, daquela na eternidade, à qual a terrena indica.

Esse complexo de questões, que vincula no seu tratamento em complexa e pluridimensional reciprocidade história, folk-lore e matérias correlatas, estudos  interdisciplinares da Antiguidade, filosofia, teologia e mística, abre caminho para o exame de mecanismos de transformação de culturas no decorrer do processo de cristianização. A imagem do Argo e aquelas relacionadas de outros contextos culturais da Antiguidade dizem respeito a um universo mediterrâneo e da Ásia Menor, transmitido através dos séculos na tradição da Europa cristã.

Levanta-se a questão, porém, se não houve imagens equivalentes em contextualização cultural nórdica que tivessem possibilitado de forma similar harmonizações e transformações de sentido. Para tratá-la, escolheu-se um centro de estudos da Islândia que se dedica em especial ao mundo das sagas nórdicas, à mitologia e às viagens de navegação e de descobrimentos dos escandinavos.

A realização dos trabalhos foram motivados pelo fato de ali comemorar-se, no corrente ano, 1000 anos de fato crucial da principal saga considerada no centro: a queima da casa na saga de Njáls.

Centro de Sagas Sögusetrid

Localizado em Hvolsvöllur, ao sul da Islândia, o museu tem como objetivo oferecer a visitantes e pesquisadores possibilidades para a exploração do mundo das sagas e da mitologia nos seus vínculos com as viagens oceânicas dos nórdicos. Ao mesmo tempo, através de exposições correlacionadas, o visitante tem a possibilidade de obter uma visão de contextos da história do comércio e da sociedade no Sul da Islândia. O estudo das narrativas e seus conteúdos decorre, assim, de forma contextualizada.

O centro dispõe de um Saga Hall, construído como reprodução de uma sala de chefe da época dos Vikings. O hall destina-se a diferentes funções, sendo utilizado para encontros anuais de firmas ou festividades, conferências e seminários. Ao mesmo tempo, o Centro abriga uma galeria com obras de artistas islandeses.

Como expressão desse estreito vínculo com a região e a sua sociedade, o centro passou a incluir desde 1999 uma exposição da Sociedade Cooperativa Islandesa, dedicada a estudar a vida e o trabalho de gerações passadas. Oferece a possibilidade de uma caminho pelos últimos 100 anos do comércio no sul da Islândia, chamando a atenção ao desenvolvimento cooperativo da primeira metade do século XIX.

A exposição é dividida em três complexos temáticos concernentes ao período histórico no qual teve lugar a saga de Brennu-Njáll. Para isso, o museu procura oferecer uma visão do mundo medieval dos Vikings, considerando aspectos do seu modo de vida, da navegação, escrita e manuscrito, dos seus mitos pré-cristãos e das tradições cristãs assimiladas. A exposição contém armas e trajes, fotografias de artefatos encontrados em excavações arqueológicas e uma réplica de casa do ano 1100, assim como uma réplica do Parlamento islandês, o Alpingi, em Pingvellir, tal como se imagina que tenha sido no ano 1000.

Geografia das viagens e visão geográfico-simbólica do mundo de navegantes nórdicos

O museu salienta que os sucessos dos Vikings foram resultados de suas extraordinárias qualidades de navegadores e da excelência de seus navios. A sua arte de construção naval foi uma das razões que tornou possível que Leifur Eiriksson alcançasse como primeiro europeu o continente americano.


Em mapa, procura-se oferecer um panorama das concepções geográficas dos navegantes nórdicos e de sua visão do globo. A representação demonstra o mundo de forma similar a um fruto ou semente cercado pelo oceano, dividido em duas partes, nas quais a da direita é formada pela Ásia, com Jerusalém ao centro do todo, a da esquerda pela norte, pela Europa e pela África. A esfera atlântica surge como uma grande enseada,  fechada ao norte pela Groelândia, unida à Escandinávia pelo norte.

Saga de Njáll e o seu caminho: história e região

O "Projeto Njála" teve o seu início em 1996, quando os quadros históricos dos locais onde se passaram as sagas foram documentados em mapa para possibilitar aos interessados os visitassem paisagens e localidades conhecidas das menções narradas.

Classes escolares, firmas e outros grupos que visitam o Centro percorrem também os locais descritos na saga, no sentido de descobrir o caminho de Njála. O conhecimento da história desenvolve-se, assim, paralelamente ao da região. Esta passa a ser lida à luz das sagas.

A Saga de Njáll ou Njála, também Brennu-Njál ou "a estória de Burnt Njal" é uma das várias sagas escritas nos séculos XIII e XIV. É considerada a maior e mais desenvolvida das sagas islandesas e uma das mais importantes obras da literatura do país.

O seu autor é anônimo, havendo várias hipóteses a respeito daquele que a escreveu, entre 1200 e 1290. Tem sido atribúida, entre outros, a Saemundr Fródi, a Jón Loftsson, Snorri Sturluson, Einarr Gilsson, Brandr Jónsson e Porvardr Pórarinsson.

No Centro de Sagas Sögunsetrid, a narrativa e os principais caracteres da saga são tratados em detalhes, ilustrados com pinturas e descrições dos conflitos relatados. Os acontecimentos descritos decorrem muito antes da época de sua escrita, sendo datados entre 960 e 1020.

Questões de interpretação e dos elos entre o lore e a história local

Tem-se discutido muito a historicidade dos fatos narrados e a possibilidade da saga ser considerada como fonte histórica. (Veja a respeito dessa questão outros artigos nesta edição)

Os Vikings, êles próprios, não escreveram as sagas, tendo essas surgido séculos após a sua época. A conversão da Islândia ao Cristianismo deu-se no ano 1000, trazendo radical transformações quanto à sociedade e à cultura, também nas narrativas. Com a introdução da nova religião, a escrita das sagas ganharam um novo significado; eruditos, usando o alfabeto latino, passaram a codificar textos em vernáculo.

O museu procura introduzir os visitantes nas tradições e estilos da escrita islandesa, nos manuscritos coletados e nas suas origens. Essa escrita a posteriori de sagas transmitidas inicialmente por caminho oral indica as complexas relações entre a história e o lore nelas conservado e, sobretudo, chama a atenção para o fato de serem os documentos já provenientes de uma época cristã. Os conteúdos do passado são apresentados à luz das novas concepções, o que explica que neles se salientam as consequências trágicas de atitudes marcadas por sentimentos de honra, amor próprio, por vinganças, conflitos e falta de perdão.

Njála descreve a sociedade islandesa como teria sido antes da Cristianização, oferecendo uma caracterização de poderes, de paixões, de ambições, de represálias, mostrando as consequências trágicas da vingança. Oferecem quadros de uma ética marcada por concepções de defesa da honra por todos os meios e que leva o homem à auto-destruição.

Duas viagens são consideradas na saga: a expedição de Práinn Sigfússon e de dois filhos mais jovens de Njall. Ao retornarem, cobertos de honras, com êles trouxeram Betrayal-Hrappr, exemplo de pessoa de mau caráter, e Kári Sölmundarson, que se casou com uma das filhas de Njáll. No decorrer de conflitos, com a instituição da quinta sessão do Althing, a saga narra a conversão da Islândia ao Cristianismo, ocorrida em 999.

O fado nas narrativas de uma humanidade velha

Os principais protagonistas da saga são Njáll Porgeirsson, intrépido e viril, e Gunnarr Hámundarson, extraordinário guerreiro. No decorrer de um conflito, Gunnarr teve que abandonar a Islândia. Prêso porém pela beleza da terra, decide-se ficar, o que leva à sua morte. Em complexo marcado por morte e vingança, Njáll morre queimado vivo na sua casa.

O material é tratado não apenas com liberdade por motivos artísticos - como em geral sugerido -, mas antes por razões de exemplo dos problemas da natureza humana de uma sociedade não-cristã. Assim, salienta-se a função de sonhos, predições e profecias, assim como de mêdos sobrenaturais, em particular do fado: alguns autores salientaram significativamente o fatalismo como um tenor nas narrativas dessa sociedade.

A sociedade islandesa anterior à Cristianização teria sido, na ótica cristã, marcada por esse sentimento de fatalidade decorrente do destino, dos fados de uma comunidade submetida à temporalidade da vida, ao fluxo do tempo.

Antonio Alexandre Bispo




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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "A nave e a navegação na contextualização regional de narrativas nórdicas - o fado do mundo velho marcado pela vingança - pelos 1000 anos da queima da casa de Njáll". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 132/21 (2011:4). http://www.revista.brasil-europa.eu/132/Centro_de_sagas.html




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