Percy Grainger. BRASIL-EUROPA 129. Bispo, A.A. (Ed.). Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

Rememora-se, no presente ano, a passagem dos 50 anos de falecimento de Percy Aldridge Grainger (1882-1961), músico americano de origem australiana e personalidade significativa na história cultural em contextos internacionais do século XX.

Por ter nascido em Brighton, próximo a Melbourne, a data é lembrada em iniciativas diversas na Austrália, onde existe um Museu Grainger junto à University of Melbourne. Por ter participado da Primeira Guerra Mundial, como músico militar, ter-se naturalizado americano e ali ter desenvolvido grande parte de sua carreira, a sua personalidade e obra estão sendo celebradas em vários eventos nos Estados Unidos. Também na Inglaterra a data oferece ensejo a reconsiderações do seu nome e da sua música.

Celebrating Grainger 2011

As iniciativas de valorização da obra de Percy Grainger nos Estados Unidos partem sobretudo da The International Percy Grainger Society.

Presidida por Rolf Stang, esta entidade tem como escopo a preservação do legado musical desse compositor, extraordináriamente inovativo sob muitos aspectos, e que se destacou também na invenção de instrumentos musicais.

Tendo sido pesquisador e coletador de canções folclóricas, Grainger é de significado também para a pesquisa musicológica, em particular para a dos estudos do folclore ou da etnologia da música européia.

A The International Percy Grainger Society, com os seus arquivos de manuscritos, está localizada na casa do compositor, a The Percy Grainger house, 7 Cromwell Place, em White Plains, bairro elegante da periferia de Nova York, adquirida por êle e sua mãe em 1921. A sociedade foi fundada por sua mulher, a pintora e poetisa de origem sueca Ella Ström Grainger (+1979).

O evento Celebrating Grainger 2011, em Londres, é dirigido por Penelope Thwaiotes, artista que gravou grande parte da sua obra e que prepara a publicação de uma grande obra, o The New Percy Grainger Companion.

Significado de Percy Grainger para os estudos culturais

Para além de sua obra composicional, as  suas origens imigratórias, a complexa situação de seu ambiente familiar, a vida que passou entre nações e culturas, as suas convicções vegetarianas, os seus hábitos de cunho naturista e as características de sua personalidade, psique e modos de vida fazem com que Percy Grainger surja como vulto de particular interesse para estudos culturais. Sob a perspectiva euro-brasileira, porém, Percy Grainger nunca foi considerado. Entretanto, a sua vida não deixa de possuir interesse para os estudos das relações Brasil/Estados Unidos.

As origens familiares de Percy Grainger indicam uma situação de instabilidade causada por processos de integração e identidade em contextos migratórios e que pode contribuir à compreensão de aspectos complexos de sua personalidade. Seu pai, arquiteto londrino, emigrara para a Austrália; também a sua mãe provinha de família de imigrantes inglêses. Os seus anos de infância foram marcados por problemas de alcoolismo, pela separação de seus pais e por uma predominância excessiva de sua mãe, personalidade de interesses culturais, com profundos anelos e ambições de ascensão social e que se manifestaram na projeção de seu filho.

Tem-se, assim, na história de vida de Percy Grainger, um exemplo de situação que tem sido observada em outros casos de famílias de migrantes na história cultural de outros países. Sem que se entre em análises mais aprofundadas de cunho psicológico, pode-se partir da hipótese de que uma situação de instabilidade na Austrália tenha sido compensada por impulsos de auto-afirmação da mãe através das qualidades musicais de Percy Grainger.

Melbourne. Foto A.A.Bispo©
O seu primeiro concerto foi dado na Loja Maçonica de Melbourne, a 9 de julho de 1894. Também apresentou-se em concertos no Palácio de Exposições de Melbourne. Em 1895, deu um concerto beneficiente no Melbourne Town Hall.
Melbourne. Foto A.A.Bispo©
Para que o filho se aperfeiçoasse, a sua mãe levou-o em 1895 à Alemanha, onde passou a estudar numa das mais conceituadas instituições de ensino musical da época, o Dr. Hoch's Konservatorium, em Frankfurt a.M..

Da Austrália a Frankfurt a.M.: estudantes de língua inglêsa no Dr. Hoch's Konservatorium

Essa instituição, fundada em 1878 a partir de uma fundação criada testamentariamente por Joseph Hoch (1815-1874), previa o fomento da música sob todos os aspectos e o ensino gratuito de talentos musicais que não possuiam condições financeiras para o pagamento dos estudos. O seu primeiro diretor foi Joachim Raff (1822-1882), compositor então mundialmente conhecido, sobretudo também em regiões coloniais. Um ano após a sua fundação, em 1879, o Conservatório foi visitado por Franz Liszt (1811-1886).

Ao lado dos prestigiados professores, o Conservatório entrou na história também pelos muitos de seus estudantes que alcançaram renome. A instituição tornou-se, também uma das mais procuradas por estrangeiros, entre eles Edward Mac Dowell (1860-1908), que se tornou o mais destacado compositor dos Estados Unidos e o mais respeitado compositor americano nos círculos musicais europeus. À época dos estudos de Paul Grainger, já Clara Schumann (1819-1896) não lecionava na instituição, e um de seus docentes de maior renome era Engelbert Humperdinck (1854-1921). Nessa época, estudavam no Conservatório bolsistas da Fundação Mozarteum de Salzburg.

Nesse ambiente de Frankfurt a.M., marcado pelo convívio com estudantes provenientes de vários países, o australiano Percy Grainger integrou-se no contexto cosmopolita euro-americano ao qual passou a pertencer. Esse círculo de estudantes de lingua inglesa, conhecido como "Grupo de Frankfurt", era constituido por Henry Balfour Gardiner (1877-1950), Roger Quilter (1877-1953), Norman O'Neill (1875-1934) e Cyril Scott (1879-1970).

Nesse Conservatório, Grainger estudou com o pianista e pedagogo holandês-alemão Jacob James Kwast (1852-1927). Kwast seria mais tarde professor do brasileiro Walter Burle Marx (1902-1990). Burle Marx tornar-se-ia uma das mais influentes personalidades das relações musicais entre o Brasil e os Estados Unidos, entre outros à frente do pavilhão brasileiro da Exposição Universal de 1939, em Nova York.

Mundo cultural anglo-saxão e pesquisa de tradições nórdicas

A partir da passagem do século, Grainger desenvolveu intensa carreira como pianista na Europa, estabelecendo-se, em 1901, em Londres. Ferruccio Busoni (1866-1924) foi de particular significado na sua orientação estética avançada.

Sob a influência de seu amigo Edvard Grieg (1843-1907), passou a dedicar-se à pesquisa folclórica, realizando registro de canções populares em regiões rurais da Inglaterra. Coletou ca. de 500 canções populares, que levaram aos British Folk Music Settings. Em 1906, realizou, com Grieg, uma viagem de pesquisas pela Escandinávia, região à qual retornaria posteriormente e à qual permaneceu vinculado durante toda a sua vida.

Com a deflagração da Guerra, emigrou para os Estados Unidos. Como compositor, tornou-se conhecido sobretudo pela peça para piano Country Gardens. A casa em que habitava, com a sua mãe, no bairro de White Plains, na periferia de Nova York, tornou-se um centro de encontros de intelectuais e músicos. É nesse contexto que teve lugar o encontro onde se apresentou, em 1915, a jovem pianista brasileira Guiomar Novaes (1895-1979).

O encontro brasileiro em White Plains

Recém chegada do Brasil, ainda antes de realizar o seu début público em Nova York, Guiomar Novaes, então protegida pelo mecenas José Carlos Rodrigues (1844-1923) (veja artigo) foi apresentada nesse círculo dos Graingers a intelectuais, músicos e críticos, em encontro preparador a seu début.

A escolha do círculo não poderia ter sido mais adequada, uma vez que Percy Grainger não apenas possuia experiência de vida internacional e estava também inserido no processo de integração na sociedade americana, como também era pianista de qualidades reconhecidas e interessava-se pela cultura musical de diferentes povos.

Tratava-se, assim, de um círculo preocupado com questões estéticas e marcado pela experiência da imigração, o do ser aceito, do ser ou tornar-se americano. Percy Grainger, conhecido como personalidade aberta a experimentações e à pesquisa, foi admirador incondicional da intérprete brasileira.

Entretanto, o interesse de Percy Grainger pelo folclore musical dizia respeito sobretudo aos países nórdicos. Esse fascínio pela cultura tradicional britânica e pelo mundo escandinavo, que se manifestou não apenas nos seus trabalhos de pesquisa, mas também nas suas composições e em concepções pessoais, indica ter sido Grainger imbuído de orgulho de sua ascendência européia branca, nórdica ou mesmo ariana. Testemunho desse orgulho era a sua própria linguagem, a do "inglês de olhos azuis", no qual evitava termos latinos ou de linguas românicas.

Essa consciência da ascendência britânica e nórdica assumia, no contexto social dos Estados Unidos, um significado especial. Vinha de encontro a uma situação criada pela intensa imigração das ilhas britânicas no decorrer do século XIX; os imigrantes, sobretudo com a ascensão social e a prosperidade material, passaram a compreender-se como os verdadeiros americanos.

Sintomaticamente, Grainger tornou-se por assim dizer mais americano do que os americanos, e esse patriotismo de estrangeiro em fase de nacionalização levou-o a apresentar-se como músico militar com a entrada dos Estados Unidos na Guerra, em 1917. O elo de Grainger com a música militar manteve-se, e, em geral, fazia de suas composições versões para bandas de música, bandas militares, quintetos de sopro e piano.

Esses elementos que se conhecem da personalidade e das concepções de Grainger criam um mosaico que, unindo orgulho racial, patriotismo de imigrado de língua inglesa e disposição militar parece explicar menções que se encontram a respeito de suas tendências racistas e antisemitas. A americanidade daquele que se nacionalizava americano parece ter posteriormente levado a situações aparentemente paradoxas, uma vez que se aproximou da música popular, em particular do jazz, valorizando-o artisticamente.

Sob esse pano de fundo, compreende-se que um dos fatores que levaram à aceitação da jovem pianista brasileira foi o fato de ter executado obras de grandes mestres da música européia, e não composições com elementos do folclore musical do Brasil. Apesar de suas origens, ela surgia à altura desses compositores-pianistas europeus.

Little did I dream - till I heard her a few days later at Percy Grainger's - that I was talking with a pianist of the very first rank, who would soon astonish and delight American music lovers by playing, not Brazilian popular tunes, but the masterworks of Bach and Beethoven, Schumann, Chopin, and Liszt, and playing them in each case as one imagines those men played their works - or would have played them on a modern grand. (Henry Finck, "Musical News And Gossip", The Evening Post Magazine, New York, Saturday, November 2, 1918, 8) (veja artigo).

Melbourne. Foto A.A.Bispo©
Um dos fatores da aceitação e da admiração de Guiomar Novaes foi o fato de ter-se integrado em círculos marcados por intensa americanofilia e sentimentos patrióticos exaltados em época de Guerra na Europa. A sua integração e o seu sucesso tiveram, assim, uma conotação político-cultural.

Compreende-se, assim, que o seu nome surja em concertos patrióticos, também em círculos inglêses do Canadá. O empenho de Guiomar Novaes pela causa americana e o testemunho que dava de empenhar-se por questões sociais e sócio-políticas dos Estados Unidos era visto como testemunho de vocação "patriótica" norte-americana, condição sine qua non para a aceitação de artistas estrangeiros em época de exacerbado nacionalismo nos EUA. Apresentando-se à crítica e a intelectuais antes do seu début público em círculo marcado por convicções anglo-saxãs, nórdicas e mesmo de tendências militaristas garantia o apoio de um grupo influente na vida musical de Nova York.

Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.. "Percy Grainger (1882-1961), identidade anglo-saxã, o Nórdico e a Americanidade
na imigração - a posição do Brasil".
Revista Brasil-Europa 129/6 (2011:1).http://www.revista.brasil-europa.eu/129/Percy_Grainger.html


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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 129/6 (2011:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2692






Percy Grainger (1882-1961), identidade anglo-saxã, o Nórdico e a Americanidade
na imigração - a posição do Brasil

Trabalhos da A.B.E. em Melbourne, Frankfurt e Nova York. Pelos 50 anos de falecimento de Percy Grainger

 

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Melbourne. Título e coluna: Parlamento;

no texto: Palácio de Exposições e Prefeitura.

Fotos A.A.Bispo

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