Moda e artistas brasileiros em NY. BRASIL-EUROPA 129. Bispo, A.A. (Ed.). Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

Como tratado em outros textos desta edição, a década de vinte do século XX em Nova York, seguindo-se de alguns anos à vitória dos Estados Unidos e dos aliados na Primeira Guerra Mundial, representou uma época de crescente prosperidade material e dinamismo cultural, constituindo a assim chamada "era dourada" da metrópole americana.

Nesses anos tiveram lugar desenvolvimentos que marcaram duradouramente um modo de vida americano, imagens e expressões culturais. Nessa época intensificou-se a imagem da artista como personalidade de elegância e glamour, da encenação da própria pessoa, do cultivo de atrativos pessoais como via e garantia de sucesso.

Um sistema político-econômico e uma estrutura da sociedade fundamentalmente baseada no mercado e tendo como principais impulsos desejos de enriquecimento e de sucesso material podem explicar esse fenômeno da história sócio-cultural.

Não se tem considerado, porém, com a devida atenção, o significado desse desenvolvimento em direção a um máximo cultivo das aparências e da encenação na vida social sob a perspectiva das transformações de identidades de todos os estrangeiros que fizeram de Nova York um centro de cosmopolitismo por excelência.

Artistas e intelectuais provenientes de diversas culturas, habituados a outras convenções e modos de vida, em geral mais tradicionais e modestas, confrontaram-se com as expectativas e as exigências de uma sociedade na qual desejavam ser aceitos, admirados, valorizados e alcançar sucesso. Esses estrangeiros experimentaram consciente ou inconscientemente, movidos pela imitação ou premidos pela força das exigências sociais, transformações de suas aparências, de seu modo de vestir, de portes e de atitudes. Ao retornarem a seus paises, surgiram como que transfigurados, levando a reações várias, de distanciamento ou de admiração, em geral desencadeadoras de imitações.

Guiomar Novais. Arquivo A.B.E.
Esse processo transformador, se examinado com mais cuidado, surge como muito mais profundo do que sugere numa primeira aproximação. Pode marcar personalidades, visões de si e do mundo. Estudar as relações desse processo de metamorfose nas suas relações com a moda e os meios de sua propaganda, pode abrir perspectivas para análises das complexas relações entre comércio e cultura.

O desenvolvimento sistemático de tais estudos, porém, encontra-se em estado insatisfatório, por demais complexas que são as relações. Procurar aproximações, porém, revela-se como necessário para os estudos culturais, uma vez que aqui se encontram pontos de junção entre o artista e a sua obra ou atuação, entre o fascínio pessoal e a magia do que cria.

Em visão histórica panorâmica parece haver determinadas épocas da história - em particular em contextos urbanos - em que fatores quase que auráticos de encantamento adquiriram maior intensidade na vida social e cultural do que em outras épocas, e uma dessas épocas foi a "era dourada" de Nova York.

Como estudo de caso significativo, pode-se considerar a transformação experimentada pela pianista brasileira Guiomar Novaes nos primeiros anos de sua integração na sociedade americana. Chegando a Nova York à época da Primeira Guerra Mundial na Europa, tendo-se formado em Paris e advinda de círculo social privilegiado do Brasil, essa então ainda muito jovem pianista não experimentou impacto tão intenso como muitos outros estrangeiros ao chegar à metrópole norteamericana e ao tentar integrar-se na sua sociedade. Mesmo assim, porém, os documentos testemunham uma certa inibição, uma falta de desenvoltura, uma pouca preocupação pela aparência pessoal.

Entrevistadores registraram um conservadorismo quase que provinciano, timidez e uma restrita capacidade de expressão e comunicação, que não era apenas derivada de seus poucos conhecimentos do inglês. Constataram que o seu interesse era apenas o do estudo, em atitude de extrema severidade e reserva, sem deixar-se envolver pelas tentações da metrópole, sem interesse em desenvolver os atrativos pessoais, sem romances e sem idéias próprias.

As primeiras fotografias que dela se conhecem nos Estados Unidos demonstram uma fisionomia quase que de matrona, precocemente madura, uma professora. A sua estadia em Paris, ainda menina, havia sido curta demais e dedicada inteiramente aos estudos no Conservatório, sendo que as suas viagens de concertos pela Europa, mal iniciadas, ainda não tinham-na levado a modificar os seus hábitos, a sua aparência e as suas atitudes conservadoras e conservatoriais.

Em Nova York, porém, ao ser promovida por José Carlos Rodrigues (Veja artigo), necessitando concorrer com um grande número de artistas retornados da Europa ou dela fugidos,  sendo introduzida em círculos de intelectuais e artistas influentes, devendo apresentar-se à alta sociedade em hotéis elegantes antes do seu début, a jovem brasileira experimentou sensíveis mudanças no seu modo de trajar e de se apresentar.

Assim, os retratos a partir de 1916 testemunham um singular rejuvenescimento. Primeiramente, a senhora estudiosa se transforma em menina muito jovem, de formas pouco definidas e até mesmo roliças, apresentando os primeiros sinais, ainda inibidos e desajeitados de feminilidade. Um ano depois, já surge como debutante, vestida com costume leve branco, decotado, mais esbelta. Mais alguns anos, surge como jovem de sucesso, emoldurada de forma a irradiar a sua efígie.

Guiomar Novaes teve a felicidade de poder realizar essa transfiguração de forma relativamente gradual, uma vez que também a sociedade americana passava por anos marcados por contenções e dificuldades decorrentes da Guerra. Foi, nessa transformação, certamente aconselhada inicialmente pelas suas acompanhantes, filhas do Dr. Vital Brasil, guiando-se posteriormente por exemplos da sociedade que passou a frequentar. Nos primeiros tempos, foi aceita antes como pedra preciosa não lapidada quanto à sua personalidade e apresentação exterior, na qual reconheceu-se o valor de suas qualidades. Esse descobrimento de valor por detrás das aparências recatadas tomou até mesmo as características de uma surpreendente revelação.

Papel dos managers na transfiguração pessoal das artistas

Na vida musical altamente diversificada e intensa de Nova York, determinada pela iniciativa particular e por objetivos econômicos, o sucesso das apresentações musicais e mesmo da carreira dos artistas dependia fundamentalmente da capacidade de organização e promocional de agentes.

A ação do management, determinava o círculo no qual os artistas se integravam e o público a que deveriam corresponder com a escolha do repertório. A escolha do agente adequado para um determinado artista era, assim, de relevante significado para o seu futuro. Esses e outros fatores levaram a uma especialização de agentes, caracterizada pelos locais de concertos e pelos círculos sociais e culturais envolvidos. Não apenas agentes individuais, mas agências, escritórios e ligas determinaram a vida musical de Nova York.

Reclame de moda francesa em New York. Arquivo A.B.E.
As agências de concertos tinham assim interesse próprio na promoção de personalidades atrativas e com potencialidade de chamar grande público, cuidado de ter, entre aqueles que representavam, artistas com qualidades de juventude, feminilidade ou elegância. Assim, o Wolfsohn Musical Bureau em 1920, ainda que promovendo o virtuoso violinista Albert Spalding (1888-1953), salientava-se pelos recitais no Carnegie Hall da pianista austro-americana Fannie Bloomfield Zeisler (1863-1927), famosa através do sucesso de suas gravações fonográficas para o aparelho reprodutor de som Welte-Mignon, com Victor Herbert and his Orchestra, pelos recitais de canções da soprano Mabel Goshell Garrison (1886-1963), famosa pelas suas gravações Victor de "charming art songs" e, no Aeolian Hall, por aquele da soprano russa Genia Fonariova.
New York. Foto A.A.Bispo©
A Music League of America, por sua vez, distinguia-se, nas suas produções no Aeolian Hall, ao lado do recital de violoncelo de Max Gegna pelo atrativo recital de canções de Grace Northrup, soprano de "light lyric quality", e, no Carnegie Hall,  ao lado do violinista Sasha Culbertson, a apresentação da mais fascinante artista inglêsa Maggie Teyte (1888-1976), intérprete por excelência de canções francesas.

Novo guarda-roupa

Para transformação da aparência da jovem brasileira, já nos primeiros tempos de sua presença em Nova York tornaram-se necessárias grandes aquisições, de todo um guarda-roupa que a pudesse valorizar externamente segundo as expectativas de elegância da alta sociedade.

Essa preparação de debutante artística foi sentido pela jovem pianista recatada como fato tão inusitado que teve o cuidado de anotar cuidadosamente todas as compras em papel timbrado do hotel onde se encontrava hospedada, guardando as anotações durante toda a sua vida. Desses dados pode-se, assim, reconstruir as compras e os gastos feitos em Nova York e as roupas e acessórios que passou a usar em lugar daqueles que havia trazido do Brasil.

Correspondendo à sensibilidade pelas aparências e pela forma de apresentação e encenação da sociedade novaiorquina, as críticas de recitais de Guiomar Novas nos jornais, mesmo em textos de musicógrafos de reconhecida autoridade, surpreendem pela constante menção dos trajes usados nas apresentações.

Os seus recitais assumiram desde os primeiros tempos conotações de eventos sociais, e esse vínculo entre a apresentação artística e o acontecimento social, abrindo-lhe determinadas portas na sociedade, prepararam-lhe o caminho que a levaria a artista de prestígio e aceitação inusitadas como proveniente de um país latinoamericano nos Estados Unidos.

Essa atenção ao que trajava e como se portava no palco, a seus movimentos e atitudes não deixou de influenciar a percepção e a apreciação de sua arte por parte dos comentaristas. Sobretudo em textos escritos por mulheres, depara-se com associações entre aspectos visuais de seus trajes e a adjetivação utilizada para a descrição de suas execuções, entre a graça esvoaçante de um costume branco que adquiriu à ocasião de seu début com a maviosidade de suas interpretações, do tecido em veludo que trajava com a veludez de seu toque.

Com a vitória dos aliados na Primeira Guerra, e o novo espírito triunfante e de entusiasmo mundano que tomou aos poucos conta de Nova York e determinou a atmosfera social dos anos vinte, a jovem brasileira, tendo sido sempre vista como representante do mundo parisiense, passou a corresponder ainda mais ao prestígio que moda da França - também vencedora - passou gozar. Guiomar Novais tornou-se chic.


Em programas de recitais da época, entre outros naquele oferecido no Aeolian Hall, em fevereiro de 1920 (Veja artigo), chama a atenção a profusão de reclames de casas de moda que anunciavam novidades vindas de Paris ou criadas segundo modêlos parisienses.

Como as estações artísticas correspondiam às estações do ano - e não aos anos - a saison de 1919/20, com os seus eventos de inverno, apresentavam reclames para a primavera que se aproximava. O programa do recital, assim, surgiu emoldurado por anúncios que anteviam a estação primaveril e despertavam sentimentos de rejuvenescimento e de "charm" da juventude, estabelecendo relações entre a natureza e a primavera da existência.

O programa do recital de Guiomar Novaes surge como um documento da febre pela moda parisiense que marcou a vida social e cultural de Nova York nesses anos que se seguiram à Guerra. A casa Bergdorf Goodman, na 616 Fifth Avenue, anunciava exclusivamente moda de Paris em exclusivas criações originais.

Essa moda era apresentada em salões mantidos pelas casas comerciais, tais como o The Blue Salon da firma James McCreery & Co, com loja na 5th Avenue e na 34th Street, onde podiam ser apreciados chapéus esportivos de abertura primaveril segundo modêlos parisienses e que introduziam novas tendências de estilo e novas cores, alegres, para a primavera de 1920, tanto para o traje de passeio como para o "pitoresco" de ocasiões formais:

"Modes acclaimed by Paris, introducing delightful new style notes - new colors - new trimmings. Sport Hats in gay colors tilted jauntily here and there, engaging models for street wear and modes approaching the picturesque for formal ocasions.
Também a firma B. Altman & Co., no seu The Millinery Salon, na Madison Avenue-Fifth Avenue, oferecia chapéus primaverís - "a distinctive group of spring hats" -, tanto criações originas como cópias de autênticos modelos de Paris. A nota dominante em todos esses chapéus era a juventude, a vivacidade e o "charm“.

"(...) many of them individual creations originated in B. Altman & Co.'s own ateliers, although some have been copied from authenticated Paris models. The dominant note in all is one of youth, of vivacity and of charm."

Essa menção à juventude, à vivacidade e ao charm, adequada à moda primaveril, oferece uma chave para a percepção do espírito que reinou em Nova York nessa época e que parece permitir que se compreenda também certa mudança no gosto musical e que se percebe na constituição de programas, com a inclusão de composições que refletiriam essa juventude, vivacidade e charm através do emprêgo de rítmos de danças de cunho mais popular, de textura mais leve, de configuração melódica mais graciosa, imbuída de verve, de delicado humor.

As relações entre o comércio de moda e a vida cultural manifestavam-se da forma mais evidente no uso de nomes de artistas de renome para a apresentação de trajes e acessórios. Esse era o caso, por exemplo, da casa H.R. Mallinson & Company, especializada em sedas, que fazia com que os seus tecidos e criações fossem apresentadas pela soprano americana Emma Lucy Gates (Bowen) (1882-1951). Essa cantora de ópera, que havia estudado em Berlim, que atuara na Ópera de Kassel antes da Guerra, passara desde 1916 a gravar para a Columbia Records, o que contribuiu para que a sua arte de coloratura se tornasse amplamente conhecida. A casa H. R. Mallinson & Company, que tinha como moto "The New Silks First", estabelecia uma comparação entre as suas sedas e a coloratura de Lucy Gates: "Melodius, colorful music finds a pleasant kinship in the new and original Mallinson's Silks de Luxe".

Ao lado da sêda, o uso do veludo era visto como obrigatório, como que decretado por Paris. Assim, a casa Velutina afirmando-o, salientava a beleza do bom veludo, diferenciando-o daquele de menor qualidade: "Paris decrees Velvet. While there are few fabrics more beautiful than good Velvet, nothing is worse than poor Velvet. To be sure of the best, choose Velutina: The Velvet of Velvets". 

Fascinação pelo Sul, pela vida à beira-mar tropical

A moda da estação de primavera de 1920 caracterizou-se também por uma fascinação pelo Sul, pela liberdade, pela atmosfera iluminada e pelos trajes arejados da vida à beira-mar de estâncias balneárias.

Um exemplo desse fascínio pode ser visto no reclame da firma Gidding, da 5th. Avenue e 46th. Str., que introduzia as "Smart Clothes" que predominariam nos locais de veraneio do sul naquele ano. Essa expressão poderia ser considerada também como útil para a percepção de valores que passaram a ser apreciados na apresentação de artistas e na configuração de programas. Esses deveriam oferecer um hálito de atmosfera de férias, de elegância não formal.  

Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.."O Brasil nos 'anos dourados' de Nova York II: A moda e a transformação auto-encenatória de artistas a caminho do sucesso: uma brasileira representando a cultura francesa". Revista Brasil-Europa 129/14 (2011:1). http://www.revista.brasil-europa.eu/129/Moda_e_artistas_brasileiros_em_NY.html


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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 129/14 (2011:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2700



O Brasil nos "anos dourados" de Nova York II.
A moda e a transformação auto-encenatória de artistas a caminho do sucesso:
uma brasileira representando a cultura francesa


Trabalhos da A.B.E. em Nova York, Los Angeles e Boston - Ano Edward MacDowell 2010 e Ano Listz 2011

 

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