Arquitetura do loyalism. Revista BRASIL-EUROPA 128. Bispo, A.A. (Ed.). Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 128/4 (2010:6)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2660


A.B.E.

Arquitetura do loyalism
à época da independência das colonias norte-americanas



Ciclo "Indian Summer" preparatório aos 300 anos da ida ao Canadá de Joseph-François Lafitau (1681-1746)
pioneiro dos estudos culturais comparados, da Antropologia Cultural e disciplinas afins
St. Paul‘s Church e Government House, Halifax

 
Halifax.A.A.Bispo©


Halifax.A.A.Bispo©


Halifax.A.A.Bispo©


Halifax.A.A.Bispo©


Halifax.A.A.Bispo©


Halifax.A.A.Bispo©


Halifax. A.A.Bispo©


Orgao Halifax.A.A.Bispo©


Halifax. A.A.Bispo©


Halifax. A.A.Bispo©


Halifax. A.A.Bispo©

































































Halifax. A.A.Bispo©


Halifax. A.A.Bispo©


Halifax. A.A.Bispo©


Halifax. A.A.Bispo©


  1. Fotos A.A.Bispo
    ©Arquivo A.B.E./I.S.M.P.S.e.V.

 
Halifax. A.A.Bispo©

Um dos obstáculos para o desenvolvimento dos estudos culturais que pretendam considerar relações entre o Brasil e os países da América do Norte, em particular o Canadá, reside na impressão de estranheza que causa os seus testemunhos arquitetônicos do passado ao observador brasileiro. Este, cuja imagem da história da arquitetura colonial é sobretudo marcada pelos monumentos do Barroco no Brasil, em particular de Minas Gerais, confronta-se com fisionomias urbanas e monumentos com outras características, tendendo a interpretá-los como expressões de um universo cultural totalmente diverso, sem elos com o brasileiro, onde a procura de relações e o seu estudo se apresentam como intentos artificiais, sem maior justificação e significado.


Uma consideração mais aprofundada da arquitetura de regiões do continente americano de passado colonial francês e inglês, porém, dirige a atenção a desenvolvimentos da Europa nas suas relações com regiões colonias que abrem perspectivas para a percepção ampla de contextos e correntes, nos quais tanto os países da América do Norte como aqueles de formação predominantemente ibérica se inserem. O estudo cultural em relações internacionais passa a ser possibilitado e conduzido em nível teórico mais abrangente, mais aprofundado e diferenciado do que aquele que resultaria de simples comparações formais e de estilo.


Tais exercícios de leitura arquitetônica de orientação cultural surgem como de particular interesse relativamente à época da independência americana, período crucial na história do continente e de suas relações para com a Europa. O observador indaga como a realidade edificada pode ser lida imagologicamente na sua inserção em campo de tensões marcado por movimentos emancipatórios ou lealistas, de como significados foram mantidos ou modificados em décadas posteriores, de como atuam e são percebidos no presente.


Possibilidades particularmente favoráveis para o desenvolvimento desses exercícios oferece a cidade de Halifax, na Nova Scotia. Fundada pelo govêrno britânico como colonia, em 1749, tinha como objetivo de servir como bastião protestante intermediário entre a New England ao sul e a Acádia francesa.

Halifax. A.A.Bispo©

Esse escopo determinou a sua história e a sua posição no jogo de forças político-culturais da América do Norte, fundamentando o seu papel de centro marcado pela consciência de identidade britânica, de lealdade e de apego a tradições, mas também de abrigo a africanos fugitivos das colonias que constituiriam os Estados Unidos e que, temendo o poder desenfreado de grandes proprietários guiados primordialmente por interesses econômicos em sistema republicano, mantinham-se leais ao poder real, a uma Grã-Bretanha que se sobressairia na luta anti-escravagista em contextos globais. A tradicionalista Nova Scotia tornou-se, assim, região marcada por considerável parcela populacional de ascendência africana.


Já tais fatos históricos - ainda que apenas esboçados - salientam a necessidade de cuidado diferenciador na condução de leituras da realidade edificada. Para tal, não se apresenta como adequada uma visão pré-concebida, por demais simplista e pouco refletida de processos históricos segundo duas frontes - de um lado lealismo, colonialismo, tradicionalismo, conservadorismo, reacionarismo, racismo e outras qualidades conotadas como negativas, e, de outro, emancipação, patriotismo, liberdade, república, e outras qualidades conotadas como positivas. Tão simples não foram os processos históricos.


Atualidade da discussão: questionamento de monumentos


Edward Cornwallis.Halifax. A.A.Bispo©
O visitante que chega a Halifax por via férrea ou marítima, assim como os numerosos imigrantes que chegavam ao Canadá no Pier 21 do porto local, encontram, como primeiro monumento, a estátua de Edward Cornwallis (1713-1776), dominando o parque de mesmo nome à frente da estação ferroviária e de um dos mais tradicionais hotéis da cidade.


Esse Governador da Nova Scotia e fundador da cidade de Halifax chegou no Chibouctou Harbour, à frente de um grupo de colonos, a 21 de junho de 1749.


Esse monumento tornou-se motivo de uma discussão polêmica nos últimos anos, cujo significado ultrapassou os limites locais e regionais e pode ser vista como de relevância para os estudos americanos no seu todo. Foi marcada pela iniciativa de um pesquisador da história indígena, Daniel Paul, especialista em questões relacionadas com o povo que habitava a região à chegada dos colonos, o grupo Mi‘kmaq. Segundo a sua moção, a estátua deveria ser retirada e substituída por uma de Donald Marshall Jr., um Mi‘kmaq de Cape Breton, condenado injustamente por um suposto crime, em 1971, e que passou onze anos em prisão.


Esse caso chamou a atenção a problemas de justiça, vendo-se no julgamento de Marshall Jr. expressão de um „racismo sistêmico“. A estátua de Edward Cornwallis representaria esse racismo sistêmico, enquanto que a sua substituição pela de Marshall Jr., simbolizando a luta pela justiça e pelos direitos indígenas, sinalizaria uma nova fase na história do Canadá nas suas relações com as „primeiras nações“.


O intento de substituição da estátua não alcançou os seus objetivos, sendo a sua consecução negada pelas autoridades, em particular por instâncias governamentais, entre outras pelo departamento de Turismo, Cultura e Patrimônio. A argumentação foi relativada com a menção da mudança de tempos e pela impossibilidade de modificar-se o passado. A polêmica trouxe à tona, porém, graves problemas éticos relativos aos primeiros anos de vida da colonia e a necessidade de reconsideração crítica do passado.


Halifax. A.A.Bispo©
Aqueles que exigiam a retirada de Cornwallis de seu pedestal salientavam que, com isso, não procuravam apagar a história, mas sim afastar a sua presença glorificante em monumentos e denominações de logradouros públicos, comparando-o com outros nomes da história de outras nações conhecidos pelos seus atos criminosos.


Essa crítica a Cornwallis fundamentou-se num prêmio por êle colocado por cabeças de indígenas Mi‘kmaqs, também de mulheres e crianças. Essa ordem foi dada após um ataque indígena ocorrido em setembro de 1749, e que levou à morte de quatro colonos, dois deles escalpelados. Esses atos deram início a um período de recíprocas atrocidades, que marcou a história inicial de Halifax e teve o seu fim apenas em 1761, com a assinatura de um Tratado de Paz e Amizade.


O caso Cornwallis dirige a atenção à questão da ética na apreciação de acontecimentos históricos, na própria historiografia e na consciência histórica de comunidades. Despertou a sensibilidade, também, para o fato de que sobretudo a perspectiva indígena tem sido aqui insuficientemente considerada, e que os indígenas é que foram, em primeiro lugar, os mais atingidos no âmbito de processos euro-americanos, quer tenham sido esses direcionados à emancipação ou à manutenção de laços de lealdade.


O tratamento dessas questões, contextualizadas em Halifax, não se limita à estátua de Cornwallis. Pode ser realizado em outras edificações da época, consideradas hoje como monumentos históricos, sugerindo caminhos para a sua leitura ou, pelo menos, colocando a consideração de expressões arquitetônicas e artísticas sob nova luz, impedindo que sejam vistas apenas como extensões européias no continente americano.


Local de reflexões I: St. Paul‘s Church, Halifax


Um dos monumentos mais significativos da história da arquitetura colonial da América do Norte é, sob o aspecto dos estudos culturais, a igreja de São Paulo de Halifax, na Nova Scotia. É situada em contexto de alto significado simbólico para a cidade, na praça „The Grand Parade“, marcada por um monumento aos mortos canadenses nas Guerras, confrontando-se com o City Hall.


A importância histórico-cultural desse edifício, aparentemente despretencioso, veio à consciência dos interessados em estudos canadenses no âmbito das comemorações dos 250 anos de sua existência, em 1999/2000, coincidindo com aquelas dos 500 anos do Descobrimento do Brasil e com o início do milênio.


Nessa ocasião foram realizados vários atos festivos, entre êles concertos no órgão local, instrumento histórico, de 1908, restaurado em fins da década de 40 e durante os anos 50.


Se no Brasil sempre se salientou a primeira missa no contexto dos Descobrimentos, na Nova Scotia lembrou-se do significado do primeiro ofício religioso dos colonos. No edifício, o primeiro ato de culto deu-se a 2 de setembro de 1750, com a presença do governador Edward Cornwallis.


A igreja não representa, porém, apenas um marco da chegada dos colonos e do início da história local por ocasião da proclamação de Georg II (2683-1760), rei da Grã-Bretanha e da Irlanda, Príncipe alemão de Braunschweig-Lüneburg. Ela não é apenas a mais antiga construção existente em Halifax, mas também a mais antiga igreja anglicana existente no Canadá.



O visitante, na igreja, depara-se com um grande número de placas que relembram grandes nomes da história da Nova Scotia. As pias bastimais são de alabastro. Dois anjos, de jacarandá, na parede da tribuna, são fragmentos do órgão original, de 1765, adquirido da carga de um navio espanhol capturado.


John Breynton (1719-1799) e a Society for the Propagation of the Gospel


A história eclesiástica da igreja St. Paul‘s é marcada pela personalidade de John Breynton, nascido no País de Gales. Após estudos no Magdalene College, Cambridge, foi capelão da Royal Navy, a partir de 1742. Em navio de guerra, participou de batalhas contra a presença francesa em Louisbourg. Foi enviado pela Society for the Propagation of the Gospel in Foreign Parts como assistente para a igreja de Halifax, sob os auspícios do bispo de Londres, fundando a primeira escola livre da Nova Scotia, em 1753; assumiu o ministério e o reitorado da missão em 1754. Consagrou a St George‘S Little Dutch Church, a igreja alemã, a segunda mais antiga de Halifax.


Primeira catedral anglicana fora da Grã-Bretanha: Charles Inglis (1734-1816) e o Loyalism 



O seu significado supra-nacional reside no fato de ter sido a primeira catedral anglicana fora da Grã-Bretanha, status alcançado com a criação da Diocese de Nova Scotia, em 1787, sob o Charles Inglis (1734-1816), primeiro bispo anglicano, e que manteve até 1865. Foi, por quase cem anos, igreja da guarnição da armada e da marinha, que apenas em 1844 obtiveram uma capela própria.


Através de Charles Inglis, a ereção da primeira catedral anglicana fora da Grã-Bretanha tem a sua história estreitamente vinculada com o Loyalism norte-americano. Charles Inglis, que, após a ocupação britânica de New York, em 1777, tornara-se reitor da Trinity Church daquela cidade, entrou na história americana como um dos mais destacados loyalists, aquele que, em serviço religioso, na presença de George Washington (1732-1799), pronunciou em voz alta uma prece ao rei George III (1738-1820), sendo então a igreja cercada por milícias. George III era mal-visto pelos colonos; estes sentiam medidas que procuravam levar a negociações com os indígenas, evitando-se conflitos, como a linha de demarcação no Oeste, como um cerceamento de sua liberdade de expansão.


Com a evacuação de loyalists de New York, em novembro de 1783, Charles Inglis retornou à Inglaterra, para voltar, em 11 de agosto de 1787, como primeiro bispo da Church of England na América do Norte, com sede na então criada Diocese de Nova Scotia, erigida por carta patente por George III. Para aumentar o status do anglicanismo, apoiou, em 1789, a fundação do King‘s College, em Windsor, Nova Scotia, instituição voltada à formação de uma elite anglicana. A sua preocupação missionária foi sobretudo interna, procurando converter a população de confissões dissidentes e de tendências congregacionalistas.


Inserção na história das concepções arquitetônicas da Grã-Bretanha



Para a leitura do edifício, deve-se levar em consideração que o mesmo sofreu alterações no decorrer dos séculos. Assim, edificou-se uma nova fachada, na parte norte, uma torre maior, em 1812, duas naves laterais em 1868 e o coro, em 1872. 


Sabe-se que a madeira para a construção da igreja veio de Boston, tendo sido trazida de navio por via marítima, pré-cortada para o edifício. Os fundamentos, de tijolos cozidos, foram produzidos na povoação nascente. Apesar da utilização de materiais locais, a igreja, na sua concepção arquitetônica, insere-se em correntes da história da arquitetura contemporânea da Grã-Bretanha.


O edifício denota elos sobretudo com a Marybone ou Marylebone Chapel ou St. Peter‘s, Vere Street, em Londres, em 1722. Essa igreja, hoje sem funções religiosas, é sede do London Institute for Contemporary Christianity. A igreja foi originalmente designada de Oxford Chapel, por ter sido o seu fundador Edward Harley (1689-1741), segundo Earl of Oxford and Earl Mortimer, personalidade dedicada à cultura e às artes, e proprietário de grandes áreas de Londres, que então se expandia. Assim, a edificação da capela tinha como objetivo servir a uma crescente paróquia, a de Marylebone, ali celebrando-se casamentos. Dos nomes de significado histórico que se relacionam com essa capela merece ser salientado William Boyce (1711-1779), organista da igreja de 1734 a 1736, compositor da Chapel Royal, Master of the King‘s Music (1757), e editor de obras do passado musical inglês (Cathedral Music, 1760-1778).


Tomando-a como modêlo, a igreja de Halifax insere-se, assim, em desenvolvimento marcado pela expansão urbana de Londres, representando uma comunidade em crescimento e, ao mesmo tempo, por um movimento de reconscientização de tradições e do patrimônio cultural inglês.



James Gibbs (1682-1754): arquitetura e concepções político-culturais


Devido a algumas de suas características estilísticas, derivadas da fonte de inspiração londrina, a igreja de Halifax tem sido considerada como a primeira representante do Palladianismo no Canadá. Entretanto, essa sua identificação com a tradição palladiana necessita ser diferenciada, uma vez que dá margens a imprecisões relativamente às implicações político-culturais do movimento arquitetônico da época, com consequências para a sua consideração adequada no continente americano.


Essa consideração mais cuidadosa da igreja de Halifax pode basear-se na obra arquitetônica e teórica do arquiteto da igreja que lhe serviu de modêlo: James Gibbs.


Gibbs, nascido em Aberdeen, Escócia, entrou na história da arquitetura como representante de um conservadorismo político-cultural e religioso de seu tempo. Foi um arquiteto e pensador marcado por um período de estudos em Roma, onde recebeu impulsos de Carlo Fontana (1638-1714). Esses impulsos disseram respeito não apenas a uma valorização do Barroco nas suas fundamentações católicas, mas sim também à tendência de difundir concepções segundo livros com ilustrações para servirem de modêlos. De retorno, em 1710, foi discípulo de Christopher Wren (1632-1722), que desenvolvera estudos na França, tornando-se um representante sobretudo do Classicismo no complexo de tendências de diferentes proveniências que marcou a arquitetura da Inglaterra.


Como obra principal de Gibbs considera-se, em geral, a igreja de St. Martin-in-the-Fields, construída entre 1722 e 1726. Essa construção levantou polêmica na época, por combinar um pórtico clássico com uma torre central. Hoje quase que não percebida na sua problemática estética, a sobreposição de uma torre a um pórtico representou uma audácia concepcional, apenas explicável como manifesto, como statement de uma convicção religiosa e político-cultural.


Devido à sua posição político-cultural e confessional, contrária à situação estabelecida, a arquitetura de Gibbs foi apenas valorizada para construções religiosas e residências rurais. Em 1713, tornou-se supervisor das 50 igrejas novas em Londres, realizando, entre outras, além da já citada St. Martin-in-the-Fields (1722-1726), St. Mary-Le-Strand (1714-1717) e casas de campo em Ditchley (1720-1722) e Sudbrooke Lodge (ca. 1728).


Por ocasião da fundação de Halifax, Gibbs, apesar de não pertencer àqueles integrados no desenvolvimento político predominante de sua época, já gozava de renome em determinados círculos, sobretudo conservadores, na Grã-Bretanha. Entrou na história da arquitetura sobretudo por ter projetado o teatro Radcliffe Camera, em Oxford, entre 1737 e 1749, assim como a Senate House na universidade de Cambridge. Entretanto, o seu maior significado para os estudos americanos reside nos seus projetos de igrejas emonumentos tumulares.



Relações entre Classicismo e Barroco em contextualização britânica


A combinação do Classicismo com o Barroco, exemplificada no pórtico coroado por torre na obra de Gibbs, foi amplamente difundida, influenciando a arquitetura na América do Norte. Para tal contribuiram as publicações do próprio Gibbs, onde oferece ilustrações com base em seus projetos. Assim, logo após St. Martin-in-the-Fields, publicou o seu A Book of Architecture, Containing Designs of Buildings and Ornaments (1728). Esse seria seguido por um outro tratado, em 1732, um livro de regras para desenhar partes da arquitetura.


O livro A Book of Architecture, Containing Designs of Buildings and Ornaments (Londres 1728) apresenta projetos de James Gibbs apresentados como modêlos para construções e ornamentações. A intenção de publicar um tal receituário, porém, apenas pode ser compreendida a partir de uma necessidade existente, e essa pode ser pelo desenvolvimento urbano na Inglaterra, das colonias e da correspondente procura de criação de elos de unidade.


Diferentemente de outros livros que ofereceram modêlos, Gibbs não se dirigiu com a sua obra a construtores e mestres-de-obras, mas sim a „pessoas de distinção“ que construiam, sobretudo em regiões afastadas.


Com isso, o livro de Gibbs manifesta uma intenção claramente social e sócio-cultural, como determinador de gostos, fornecedor de critérios estéticos considerados como mais cultivados, distinguindo-os do gosto vulgar, surgindo, assim, como de especial interesse para estudos de uma história da arquitetura de orientação teórico-cultural.


Dirigia-se não ao arquiteto, mas ao leigo de posses, preocupados em demonstrar cultivo e posição social. Correspondia, assim, a intentos de pessoas de posses nas colonias. Essa intenção de Gibbs dizia respeito a edifícios com as mais diversas funções, igrejas ou representativas residências, oferecendo, também, regras para arquitetura de interiores, desenhos para a ornamentação de portas, janelas, tetos e lareiras. Tratava-se, antes de tudo do „correto“ e da correção.


Na sua obra Rules for Drawing the Several Parts of Architecture (1732), Gibbs segue a tradição de livros de ordens de colunas, conservando as concepções relativas a proporções de Palladio, procurando, porém, apresentá-las de forma simplificada para a melhor compreensão do leigo.


Mediador entre o Palladianismo e o Barroco


As regras de bom gosto apresentadas na obra de Gibbs baseavam-se em conhecimentos da arquitetura italiana. Sob determinados aspectos vinham de encontro à corrente do Palladianismo, dela, porém, diferenciando-se em muitos pontos.


Como elo de continuidade pode-se ver a valorização de determinados critérios básicos do Clássico, sobretudo aqueles referentes a princípios referentes às proporções, ou seja, abstratos ou racionais-matemáticos, e à nobre simplicidade. O significado dado às proporções na procura de qualidades estéticas de beleza e graça era acompanhado por uma crítica ao sobrecarregado, ao portentoso, à multiplicidade de linhas, à riqueza e à diversidade dos materiais empregados. Não fachadas pujantes de enfeites deveriam marcar a aparência exterior dos edifícios, mas sim a nobreza da simplicidade de linhas e de proporções, salientadas apenas de forma adequada através de poucos ornamentos.


Mesmo assim, Gibbs manifestava-se contrário a uma ditadura do gosto que via na tradição palladiana, se entendida de forma rígida, não possibilitando novos caminhos. Tem-se visto, assim, em Gibbs um antecipador de uma doutrina mais liberal do gosto, tal como defendida pelo poeta Alexander Pope (1688-1744 e que afastava a idéia de simples cópias de modêlos palladianos.


Tem-se constatado, assim, um paradoxo na atitude de Gibbse dos Palladianos ingleses: estes, representando o Palladianismo, não conheciam em pormenores a prática de Palladio e não haviam feito estudos da Antighuidade; Gibbs, ao contrário, ainda que mediador entre o Barroco e o Palladianismo, possuia uma sólida formação em Roma e havia estudado monumentos antigos.


Catolicismo e conservadorismo Tory


As posições contrárias entre o palladiano Colen Campbells (1676-1729) e Gibbs podem ser compreendidas na sua inserção político-cultural da época. Gibbs, católico e conservador, adepto dos Tories, simpatizante dos Stuarts, surge como representante dos valores e concepções do absolutismo inglês.


Os seus leitores, assim, provinham sobretudo da aristocracia Tory. Seria um inadequado, assim, considerar a sua obra e as tendências estéticas que defendia como reflexos do seu tempo, uma vez que se prendia a uma situação caída. Assim, tem sido vista antes como expressão de uma inglaterra anterior às correntes consideradas como iluministas, o que correspondia à simpatia de Gibbs pelo Barroco italiano.


A transmissão de concepções e de critérios estéticos procedeu-se antes pelo caminho visual dos desenhos apresentados por Gibbs do que pelo caminho de reflexões filosóficas e de argumentações. A obra de Gibbs vinha de encontro a um grande público, pois mantinha critérios classicistas, possibilitando, porém, a recepção de diferentes impulsos. Compreende-se, assim, que tenha marcado a arquitetura da América do Norte em fins do século XVIII e início do XIX.


Local de reflexões II: Government House de Halifax


A Government House, construída entre 1799 e 1805, sob a superintendência do arquiteto-construtor Isaac Hildrith, é uma das mais antigas residências oficiais do Canada. É a casa oficial do Governador Tenente da Nova Scotia. Abriga hoje a família real quando de visita, assim como representantes estrangeiros. É sede de eventos reais e vice-reais, como a entrega de comendas e da Order of Nova Scotia, assim como recepções e jantares solenes.


O significado histórico-político nacional do edifício é salientado pelo fato de nele terem prestado juramento, em 1878, o Marquês de Lorne como Governador Geral do Canadá. A lista dos representantes da Grã-Bretanha que ali residiram é surpreendentemente longa, incluindo, entre outros, o Príncipe Edward (Rei Edward VII), em 1860, o Príncipe Arthur, Duque de Connaught e Strathearn, em 1869, o Príncipe George (Rei George V), em 1883 e 1901, o Príncipe Albert, em 1913, e, como George VI, em 1939, a rainha Elizabeth, em várias ocasiões, assim como outros membros da família real inglêsa, entre ele o Príncipe Charles, Príncipe de Gales, em 1983, com Diana e, em 2009, com Camilla, Duquesa de Cornwall.


Conservadorismo à época da Revolução Americana: Sir John Wentworth (1737-1820)


A edificação da Government House foi um dos projetos mais ambiciosos da jovem colonia pelo uso de materiais, pela qualidade construtiva e de acabamento e pelo seu estilo. A sua execução foi uma vitória do Governador Sir John Wentworth, em 1800, para substituir a casa de Govêrno então existente. O local havia sido adquirido para a Coroa para a localização da legislatura colonial, sendo agora utilizado para abrigar a residência vice-real. O Governador mudou-se para o edifício em 1805.


A construção, cujo custo deu margens a críticas, representa o intuito de representação da Nova Scotia no período posterior à independência das colonias que formaram os Estados Unidos.


Sir John Wentworth, nascido em New Hampshire, tendo governado a colonia, teve a sua marcada pela revolução americana. Após algumas vicissitudes, foi apontado Lieutenant Governor of Nova Scotia, em 1792. Foi um conservador, e os seus últimos anos marcados por conflitos com a Assembléia. Após o término da guerra com os Estados Unidos, foi substituido por  General George Prévost (1767-1816), em 1808, um militar que adquire particular interesse para os estudos culturais devido a seus elos com as Índias Ocidentais.


Estilo de residência rural inglêsa em contexto colonial


Para a construção da Government House, empregaram-se materiais de várias regiões do Canadá. Trouxeram-se pedras de Antigonish, Bedford Basin, Cape Breton, Lockeport, Lunenburg e Pictou, telhas de Dartmouth, e madeiras de Annapolis Valley, Cornwallis e Tatamagouche, outros materiais de New Brunswick e Newfoundland. Materiais mais nobres, sobretudo o mármore para a lareira, foram importados da Inglaterra e da Escócia.


Com as suas pedras de cunho rústico no andar térreo, com os seus arcos com barras semicirculares, a Government House apresenta características típicas de uma residência da aristocracia rural da Inglaterra de fins do século XVIII. A arquitetura interna foi concebida de forma a cumprir tantos fins oficiais como sociais e recreativo-culturais, incluindo salas de desenho, de jantar, de baile, assim como apartamentos para o governador.


Inserção no desenvolvimento arquitetônico da Escócia


Assim como St.Paul‘s Church, também a Government House de Nova Scotia baseou-se em modêlos de um arquiteto e autor de textos sobre arquitetura de formação escocêsa: George Richardson (c. 1736/8 - c.1813/17).


Poucas obras de Richardson foram conservadas, entre elas a igreja gótica de Stapleford, em Leicestershire, construída em 1783 para o Earl of Harborough. O seu significado, porém, não reside tanto nas suas obras, mas sim nas suas publicações, que tiveram ampla difusão entre construtores, artesãos, pintores e escultores. Entre elas, citam-se Aedes Pembrochianae (1774), Book of Ceilings (1776), Iconology, or, A Collection of Emblematical Figures, em 2 volumes (1779; Treatise on the Five Orders of Architectura (1787), New Designs in Architecture (1792), Original Designs for Country Seats or Villas (1795) e The New Vitruvius Britannicus, em 2 volumes (1802).


Constatou-se que elementos da fachada principal e traseira da Government House reproduzem modêlos oferecidos por Richardson no seu mencionado livro Original Designs for Country Seats or Villas.


Richardson insere-se na tradição da arquitetura escocêsa representada pela família Adam: William Adam (1689-1748) e seus filhos John (1721-1792), Robert (1728-1792) e James (1732-1794).


A partir de 1728, atuando em Edinburg, William Adam desenvolveu importante carreira como arquiteto de casas de campo, atividades prosseguidas pelos seus filhos, Um deles, John, herdou a posição do pai como Master Mason do Board of Ordenance da Grã-Bretanha do Norte, atuando na construção do Fort George, próximo a Inverness.


Várias residências aristocráticas foram projetadas e construidas pelos irmãos Adam, alcançando particular renome aquela de William Dalrymple, Ear of Dumfries, de 1754. Nessa tradição inserem-se importantes construções de Edinburgh, inclusive a Milton House, na Old Town, e a Adam Square, de interesse urbanístico por incluir os primeiros terraços de Tounhouses de Edinburgh. Sobretudo Robert Adam (1728-1792) recebeu impulsos de seus estudos na Itália e de antiguidades, entre elas a do palácio de Diocleciano, em Split (1757). Contribuiu, assim, à integração de elementos e concepções da Antiguidade na tradição inglêsa, superando a regidez do palladianismo e fomentando antes um classicismo de cunho mais sentimental e pitoresco ou uma orientação historicista de clássica reserva.


O significado da arquitetura dos Adams entre a aristocracia rural inglêsa, sobretudo no âmbito do tradicionalismo escocês pode ser visto na combinação de elementos denotadores de erudição e cultura, mas formulados de forma discreta e não pedante, de expressão de uma atitude de liberdade relativamente ao jogo de estilos, própria à nobreza, avesso, porém, à quebra de tradições de continuidade.


Richardson, proveniente da oficina desses arquitetos, também realizou viagens pela Europa continental, em 1760 e 1763, onde teve a oportunidade de estudar monumentos antigos, adaptando ideais e soluções da Antiguidade para fins pragmáticos. Tornou-se particularmente conhecido pelos seus projetos de clarabóias e chaminés. A respeito de clarabóias, publicou, em 1776, um livro com ilustrações de projetos em estilo grotesco antigo, em 1781, uma coleção de chaminés ornamentadas em estilos etrusco, grego e romano. Os seus desenhos de chaminés marcaram a arquitetura de residências aristocráticas do interior das ilhas britânicas, mas também nas cidades. As lareiras, em geral com frentes de mármore, de várias cores, passaram a consistuir importante elemento na arquitetura de interiores de residências aristocráticas.


Também a Government House da Nova Scotia salienta-se pelas suas altas chaminés, pitorescamente dispostas e que marcam a construção. A partir da consideração de sua inserção no desenvolvimento arquitetônico escocês da época, compreende-se o sentido sócio-cultural e mesmo político da simplicidade nobre que irradia, sugerindo, ao mesmo tempo, erudição, reserva e liberdade interna própria à nobreza daqueles que nela residiam.



Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.
Indicação bibliográfica para citações e referências:


Bispo, A.A. "Monumentos e leitura de expressões arquitetônicas do loyalism na história britânica das Américas". Revista Brasil-Europa 128/4 (2010:6). www.revista.brasil-europa.eu/128/Arquitetura-do-loyalism.html





  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.



 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________