TAITI: Espetáculos. Revista BRASIL-EUROPA 125. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

Em Papeete realiza-se, anualmente, um dos maiores acontecimentos da vida cultural da atualidade da Polinésia francesa e mesmo do Pacífico: o festival Tiurai. O termo é expressão taitiana derivada do termo inglês para julho, ou melhor, de sua pronúncia local (july). A festa é conhecida também como La Fête du Juillet. Essa festividade é a mais concorrida entre os vários eventos das ilhas, alguns de consideráveis proporções, tais como a maratona de Moorea, realizada em fevereiro, o festival de esportes Maohi, em abril, as várias corridas de canoas, inclusive aquelas realizadas entre as várias ilhas, e, sobretudo, o South Pacific Festival of Arts, realizado em diferentes ilhas.

No Tiurai participam artistas e conjuntos da capital do Taiti, de outras zonas da ilha e grupos de outras comunidades do arquipélago Sociedade. É um dos mais significativos eventos do mundo ultramarino francês, nele tomando parte centenas de artistas e milhares de espectadores. As apresentações realizam-se à noite, durante várias horas.

O festival inclui cortejos, apresentações várias de dança e canto, corridas de carros, hípicos, de bicicletas, de canos, concursos de arco e flecha, de caminhada sobre o folgo, incluindo exibições de arte, de tatuagens, brincadeiras e jogos, representações históricas no marae Arahurahu. Realizam-se concursos e competições para grupos e artistas profissionais e amadores, oferecendo-se prêmios e reconhecimentos vários para os mais aplaudidos e melhor julgados ensembles, grupos de música e dança, coreógrafos, cantores, bailarinos masculinos e femininos.

Questões de origem e fundamentos

A época de realização do festival, mês de julho, que designa o próprio evento, não apresenta de forma explícita um elo com o calendário religioso, como é o caso em geral de grandes eventos populares em diferentes países do mundo marcados pela missão cristã.

A festividade relaciona-se com o 14 de julho, data nacional francêsa em rememoração à tomada da Bastilha, lembrada também em comemorações oficiais e uma parada militar na capital do Taiti. Trata-se, assim, de um acontecimento que se refere à história da França e sugere intuitos de fortalecimento de uma identidade francesa na diversidade dos elos histórico-culturais do arquipélago ultramarino. Motivos condutores são, naturalmente, fatos históricos da época da Revolução e ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, que superam o contexto específicamente francês com o seu significado político e filosófico global. Já por essa inserção nas comemorações do dia nacional da França, o festival de julho na Polinésia adquire interesse para os estudos culturais relativos ao colonialismo e ao pós-colonialismo, assim como para os estudos culturais europeus em contextos globais, para além das delimitações geográficas da Europa.

Há, porém, uma série de questões que se colocam a respeito de suas origens e metamorfoses, e que dirigem a atenção a processos de mudança cultural do Taiti desde a chegada dos europeus, em meados do século XVIII. Essas questões dizem respeito à transformação de identidades, uma vez que aqui se trata sobretudo de cultivo e fomento de expressões culturais vistas como próprias, até mesmo características e conotadas em parte com a cultura tradicional anterior à chegada dos europeus, inseridas, porém, na história da França. A sua designação, porém, revela uma palavra derivada do inglês, a língua de seus missionários mais influentes no processo transformatório. O festival assume, assim, significado sob o aspecto da memória e dos estudos culturais do próprio Taiti.

A consideração dessas questões pode contribuir, também, em sentido mais amplo, à detectação e análise de mecanismos de processos inter- e transculturais possivelmente válidos em outros contextos, adquirindo assim significado que extrapola o universo polinésio-francês, independentemente de seu enfoque a partir da França ou do próprio Taiti. Ela pode, pelo menos, através de um estudo de caso, aguçar a sensibilidade para a percepção de possíveis ocorrências similares em processos de transformação cultural em outros contextos, levantando novos questionamentos e apontando novos caminhos elucidativos. Reciprocamente, a visão determinada por pontos de observação marcados por outros contextos e culturas de saber pode contribuir à elucidação de fenômenos culturais do Pacífico.

Transformações de expressões culturais anteriores ao contato: heiva/heava

Nas elucidações dadas às origens do Tiurai em textos de ampla divulgação e em esclarecimentos públicos depara-se frequentemente com a menção de uma origem do festival em 1882. Remontaria a uma revivicação da antiga expressão cultural designada como heiva. Essa menção desperta naturalmente o interesse do pesquisador cultural, pois parece indicar que também no Taiti, em meados do século XIX, ter-se-ia manifestado uma reconscientização de valores culturais tradicionais em época inicial do desenvolvimento dos estudos de Etnografia e Folclore, como se conhece da França e de vários outros países, inclusive também Portugal e Brasil. Muitas seriam as questões que necessitariam ser consideradas através de estudos mais pormenorizados de fontes documentais. Tratar-se-ia de uma integração de ainda existentes expressões tradicionais em oportunidade festiva da comemoração nacional francesa, ou tratar-se-ia antes de reconstruções de expressões já desaparecidas à luz do interesse da época por culturas arcaicas ou por uma arqueocivilização?

A expressão designada como heiva era conhecida na Europa desde a viagem de James Cook, (1728-1779) como uma das mais significativas manifestações culturais do Taiti. Os relatos dos viajantes a seu respeito despertaram surprêsa e admiração. A importância para a cultura local evidenciava-se no fato de que os próprios líderes taitianos haviam feito questão de que se realizasse uma dessas apresentações a Cook. Essa realização foi fixada visualmente por John Webber (1751-1793), em Otaheiti, em setembro de 1777, demonstrando claramente o cunho de exposição e representação cultural do espetáculo. Apresenta a performance, em dança e géstica, de duas jovens dançarinas ladeadas por dois jovens, esses no característico movimento de joelhos, em meio a um átrio cercado pelos lados pelos espectadores, disciplinados e atentos, tendo ao fundo uma construção coberta mas aberta à frente, onde se localizavam os músicos, distinguindo-se tocadores de tambores. A representação pictórica de John Webber deixa transparecer o cunho demonstrativo, de apresentação artística perante uma platéia.

"Oreo fêz com que se apresentasse um heava na presença de Cook, na qual tomaram parte duas jovens, muito lindas mulheres. Êle deu a seguinte descrição: 'o espetáculo foi realizado num espaço de ca. 30 pés de comprimento e 10 de largura, entre duas construções situadas na mesma direção. Um deles era um edifício espaçoso, que podia conter um grande número de espectadores, e o outro uma cabana simples, estreita, apoiada sobre uma série de pilares, aberta de um lado, onde a peça foi apresentada, fechada nos outros lados por esteiras e juncos. Um canto era acortinado de todos os lados, ali os atores se vestiam. Todo o palco era cercado por esteiras com listas pretas, muito bem tecidas. Na parte aberta da cabana víamos três tambores de diferentes tamanhos, ou seja, três pedaços de tronco de árvore escavados, cobertos com couro de Gulu: quatro ou cinco homens, que os tocavam apenas com os dedos, mostravam uma extraordinária agilidade. O maior desses tambores tinha 3 pés de altura e um pé de diâmetro. Nós já estávamos sentados por algum tempo no anfiteatro em meio às mais belas mulheres da ilha, quando as atrizes entraram: uma era Poyadua, a filha do chefe Oro, e a segundo uma jovem alta e linda, de belos traços e uma côr de pele bela para uma habitante do arquipélago do Taiti. A sua vestimenta era totalmente diferente da usual e consistia numa peça marrom, produzida na terra, ou num tecido europeu, azul, cuidadosamente envolto ao pescoço; ao redor da sua cintura apresentava uma espécie de convoluto de quatro tiras vermelhas e brancas, que pendiam até os pés; um tecido branco, que formava um saiote largo, era arrastado por todos os lados e parecia necessariamente por obstáculos a seus movimentos; o pescoço, as costas e os braços estavam descobertos, mas a cabeça era ornamentada com uma espécie de turbante, de ca. 8 polegadas de altura, feito de tranças de cabelo, chamado de Tamu e dispostos em círculos que se alargavam para cima; no centro tinha-se deixado um grande orifício cheio de flores aromáticas da gardenia ou de jasmim; toda a parte frontal do turbando era enfeitada por três ou quatro fileiras de pequenas flores brancas, que formavam estrelinhas, e que, nos cabelos negros, davam a mesma impressão que pérolas. Elas começaram a sua dança com o acompanhamento dos tambores, e como parecia, sob a direção de um velho que dançava com elas e que pronunciava muitas palavras que os inglêses, a julgar pelo tom de sua voz, suporam tratar-se de um canto. Os seus diversos movimentos e gestos deslizavam por vezes ao obsceno; entretanto, não ocorreram indecências tão graves como aquelas que os castos olhos das jovens inglêsas deparam na ópera. O movimento de seus braços era muito gracioso, e o constante movimento de seus dedos era muito delicado; contrária porém a nossos sentimentos de graça e harmonia era o costume de torcer a boca; elas a deformavam de forma tão estranha que nós não poderíamos imitá-los; primeiro, puxavam a boca transversalmente, depois atiravam os seus lábios repentinamente em movimentos ondulados, parecidos com convulsões repentinas.

Depois de terem dançado por cerca de 10 minutos, recolheram-se à parte da casa onde se haviam vestido, e cinco homens vestidos de trançado tomaram o seu lugar e apresentaram uma espécie de drama que consistia em danças bastante indecentes e em diálogo metrificado segundo um compasso; às vezes exclamavam em conjunto as mesmas palavras. O diálogo parecia adaptar-se a seus movimentos. Um deles caiu de joelhos e um segundo nele bateu, arrancou-lhe a barba e repetiu a mesma cerimônia com os dois outros; finalmente, porém, o quinto prendeu-o, nele batendo com um pau. Por fim, recolheram-se, e os tambores deram o sinal para a segunda parte da dança, executada pelas duas mulheres do mesmo modo que a primeira.
Os homens apareceram de novo; as mulheres voltaram às suas posições e encerraram o quarto ato. Sentaram-se para descansar, e pareciam estar muito cansadas, pois suavam muito. As bochechas de uma, que era bastante gorda e tinha uma côr de pela viva, estavam avermelhadas de forma muito atrativa. A segunda, a filha de Oreo, despertou admiração pela sua execução, embora estivesse cansada pelas apresentações da manhã e da noite do dia anterior."
(G. L. D. de Rienzi, Oceanien oder Der Fünfte Welttheil. Welt-Gemälde-Gallerie oder Geschichte und Beschreibung aller Länder und Völker, ihrer Gebräuche, Religionen, Sitten u.s.w. (...) Aus dem Französischen. Oceanien 2. Band. Polynesien, Stuttgart : E. Schweitzerbart's Verlagshandlung, 1837-1839, pág. 452)

Com base nessa descrição e em outras referências, os europeus do século XIX estavam conscientes da importância da dança dramática para os polinésios. Tornava-se, porém, difícil classificá-la segundo os critérios europeus. Ela não podia ser vista como expressão teatral segundo os modêlos da comédia e da tragédia na Europa, mas também não era apenas um espetáculo de dança. Os europeus do século XIX tendiam, assim, a compará-la com a ópera por ser espetáculo que reunia em si representações, música, dança e palavras entoadas. Tratava-se, porém, de uma ópera sem libreto trágico, onde a sensualidade e a graciosidade dos movimentos desempenhavam papel relevante. A importância desses espetáculos para a sociedade taitiana revela-se no fato de nela também atuarem representantes das classes mais influentes da sociedade, o que, aliás, não era desconhecido na Europa do século XVIII.

"Heava, um drama das ilhas do Taiti, onde se alternam canto e dança, assemelhava-se mais à nossa ópera do que a comédia e ao drama trágico. Os atores eram escolhidos das diferentes classes da sociedade; mesmo as irmãs do rei tomavam parte nessas apresentações improvisadas, cujo plano parece ter-se conservado pela tradição". (op.cit. pág. 451-452)

Já na época do encontro, parecia aos europeus que esses espetáculos remontavam a antigos folguedos populares, cujo significado tinha sido perdido, mantendo-se enrêdos e movimentos através da tradição. Tais expressões, inseridas originalmente em contextos que vinculavam a natureza e a religião, manifestavam, porém, uma tal sensibilidade de sentimentos, uma tal poesia que apenas podiam ser explicados pela influência de uma clima benigno na formação dos costumes.

"A dança era era uma espécie de paixão para esses povos. Não se limitava à execução de movimentos, mas apresentava quase sempre cenas de amor e de lutas. Um terreno magnífico e ao mesmo tempo gracioso era o seu teatro; pessoas acostumadas com esses folguedos pastorís, sabiam, após terem indicado a ação com movimentos simples, os sentimentos que despertavam e que expressavam por palavras, provenientes da natureza, do amor e de uma religião mais poética do que a de outros povos selvagens. Apresentações teatrais tinha, por isso, nos povos desse arquipélago, a sua origem nos folguedos que muito com êles se assemelhavam; esses folguedos apenas tinham podido tornar-se costumes sob o clima mais belo num país de abundância e do descanso. Não temos, aqui, uma prova da influência da natureza na poesia dramática? (...)". (op.cit. pág. 451)

A hipótese da insularidade na análise cultural

Essas referências documentais do passado podem contribuir a uma diferenciação de perspectivas do presente e ao exame de hipóteses de elucidação dos atuais festivais que são considerados como remontantes à tradição heiva.

Segundo David Fanshawe ("A Pacific Odyssey", World Music: The Rough Guide 1994, Londres 1995, pág. 664) o Tiiurai não seria realizado para estrangeiros, mas para o próprio Taiti, incentivando a competição na música, dança e em todas as expressões culturais em geral. Segundo esse autor, o espírito competitivo que marca esse festival corresponderia a uma profunda disposição cultural e até mesmo psíquica dos taitianos. Vivendo em comunidades separadas nas várias ilhas, tinham a necessidade, em visitas que faziam às ilhas vizinhas, de mostraar a sua excelência nas várias expressões culturais, mostrar o que sabiam e podiam.

Esse desejo de demonstração seria uma decorrência da mentalidade insular. Vivendo isolados, desenvolviam a convicção de serem melhores do que os outros nas várias práticas laborais e de lazer. Por ocasião de visitas a seus vizinhos e parentes em outras ilhas, procuravam manifestar o que podiam, dando o melhor de si nas várias expressões de sua cultura, expondo-se, porém, ao mesmo tempo, ao cotejo com os demais. A competição seria assim resultado de uma tendência a mostrar-se, a expor os próprios talentos e capacidades, de atrair e ganhar simpatias derivada das condições insulares de vida.

A comparação com os outros, também motivados pelo mesmo impulso de mostrar-se e conquistar atenções, teria levado segundo esse autor a novos impulsos de aperfeiçoamento técnico e expressivo, sem, porém, prejudicar um próprio caráter. O espírito competitivo estaria vinculado à identidade cultural das várias comunidades nas diferentes ilhas. Teria sido a insularidade que possibilitara a manutenção de forte identidade comunitária e cultural dos vários grupos, apesar da pressão sofrida por décadas por parte de missionários e agentes coloniais. O desejo de mostrar-se, de "chegar e abafar", de cativar e atrair, explicaria também, segundo essa hipótese elucidativa, a sensualidade que sempre foi constatada no passado e que caracteriza a festa Tiurai e apresentações de grupos tahitianos no presente.

"Everething is organized by competition - from building to music and it's that morale-boosting spirit of competition that I think has kept the islands' individuality through the centuries." (op.cit. 665)

Arquipélagos e uma predisposição cultural para show

A explicação do existente espírito de competição dos taitianos a partir da insularidade precisa porém ser diferenciada através da consideração de outros fatores. Essa hipótese não pode ser mantida, pois caso contrário dever-se-ia partir da suposição de que esse espírito reinaria em todas as outras situações insulares do mundo, seja nos Açores, na Madeira, no Cabo Verde e no Caribe. Tratar-se-ia antes de uma situação própria do Pacífico, devido à existência de arquipélagos com inumeráveis ilhas mais ou menos próximas, interligadas entre si graças à técnica desenvolvida da navegação polinésia.

O desejo particularmente intenso de demonstrar o próprio talento, a própria capacidade técnica e expressiva, individual e coletiva, e a otimizá-los constantemente pode ser, porém, melhor explicado sob uma perspectiva dirigida a processos de formação e transformação de identidades. Em todo o caso, possibilitou a formação de artistas de extraordinária formação técnica e grupos que se impõem pela precisão de movimentos e pelo cunho espetacular da coreografia e encenação. Tanto as referências históricas como as tentativas de análise do presente indicam que haveria uma pré-disposição cultural dos taitianos para o show. Nessa categoria de espetáculos, que distingue particularmente o Taiti no contexto polinésio, os taitianos alcançam nível de profissionalidade que os colocam à altura dos franceses e, mais especificamente, dos americanos.

Diferenças: bailados nacionais e o espetáculo taitiano


O desenvolvimento taitiano tomou um rumo diverso daquele de muitas outros países do mundo onde se constata a existência de espetáculos de danças típicas ou de esforços de criação de um bailado nacional. Com o sentido de preservação das próprias expressões tradicionais e de colocá-las a serviço da representação da identidade do país, muitas vezes com a atuação de estudiosos do folclore, surgiram, em diferentes países, ensembles que cultivam e oferecem apresentações estilizadas de danças e de música tradicionais. Com maior ou menor tendência para a inclusão de elementos de espetáculos de cunho internacional para a conquista da atenção de turistas, esses grupos procuram manter ou critérios de pesquisadores empenhados na recuperação de tradições - como em Puerto Rico -, ou reservam uma parte de suas apresentações para a demonstração quase que educativa das expressões históricas - como em Maurício.

O espetáculo taitiano diferencia-se desse tipo de bailado nacional de cunho folclorístico. Aproxima-se, antes, dos espetaculos cubanos, por exemplo da "Tropicana". Entretanto, também aqui apresenta características próprias, derivadas das singularidades da formação cultural da região, uma vez que a sua história colonial iniciou-se mais tardiamente do que os países latino-americanos. Assim, a temática das representações, com danças e movimentações de grupo, com os seus costumes e atributos vários, reporta-se a um passado remoto, anterior à transformação cultural desencadeada pela chegada dos europeus. Seria como se um show em Copacabana, voltado sobretudo a turistas, incluisse sobretudo motivos e danças indígenas estilizadas e elaboradas em forma de espetáculo, ao invés de referências a samba, batuque e outras expressões de um repertório cultural da sociedade resultante do contato.


O tradicional no exotismo dos espetáculos

Entretanto, também o show taitiano inclui expressões culturais "folclóricas", desenvolvidas a partir do contato com os europeus. Essas expressões dizem respeito sobretudo à música. Os executantes de instrumentos, muitos deles já de idade, pertencem a camadas sociais mais simples ou mesmo a grupos de música tradicionais. Utilizam-se de trajes de origem européia, com conotações rurais, derivados daqueles introduzidos pelos missionários no combate à nudez e à sensualidade, com chapéus de palha também de origem européia, aparentados com aqueles de costumes do folclórico de outros contextos culturais, inclusive da América do Sul. Utilizam-se de instrumentos nativos juntamente com instrumentos introduzidos pelos europeus.


Quando esses ensembles atuam profissionalmente, apresentando-se sobretudo a turistas, participam também na forma mais ambiciosa e elaborada dos espetáculos ou shows taitianos. Com maior número de participantes, com vestes mais ricas, cenografia e coreografia elaborada, os seus componentes demonstram expressões culturais estilizadas, dando particular atenção ao virtuosismo frenético de movimentos e gestos. São acompanhadas por considerável número de to'ere, assim como por tambores, entre êles aqueles com couro de ambos os lados (tariparau).

Há, portanto, na configuração geral desses espetáculos, complexxas interrelações de expressões anteriores e posteriores à radical transformação causada pela chegada dos europeus e pela cristianização, possibilitando ao observador identificá-las e reconhecer, apesar de toda a estilização, a vigência de mecanismos performativos de identidade. Paradoxalmente, aquelas que parecem ser expressões mais recentes, são, porém, as que representam a tradição, enquanto que aquelas que surgem como "autênticas", indígenas, representam reconstruções. Sob a condução da música e do grupo caracterizado pela castidade de seus costumes à feição colonial européia de conotação rural, expressões associadas com uma situação cultural anterior ao contato são integradas no todo, sugerindo serem elas o principal objeto da metamorfose.

Similaridades e diferenças com o carnaval e o teatro musicado

Essas observações sugerem a vigência de mecanismos de transformação cultural que lembram aqueles já analisados com referência ao carnaval. Diferentemente do carnaval, sobretudo de significado nos países de formação católica, onde se relaciona com o significado do ciclo anual, natural e religioso, de antiga tradição, o processo transformatório de natureza carnavalística num contexto marcado pela ação colonial protestante manifesta-se sobretudo na forma estilizada de espetáculos não vinculados diretamente como uma determinada época do ano.

Entretanto, também aqui a análise pode e deve ser mais diferenciada. Um dos aspectos a serem considerados diz respeito a relações recíprocas com a França. Haveria a necessidade, através de estudos de fontes, procurar detectar a recepção de correntes do teatro ligeiro parisiense, remontantes em grande parte à tradição dos vaudevilles, incluindo porém diversificadas formas de expressão, modificadas segundo épocas e contextos. Sabe-se que a recepção de motivos taitianos na história do teatro europeu remonta já a fins do século XVIII. A consideração dessas recepções poderia elucidar até que ponto ocorreu e ocorre no Taiti uma assimilação de imagens do exotismo europeu, testemunhando assim uma auto-exotização. Por outro lado, reciprocamente, dever-se-ia procurar constatar se a tradição taitiana heiva não teria influenciado o próprio teatro ligeiro europeu e suas extensões no Novo Mundo. As referências documentais acima citadas falam de vestimentas em palha ou trançado, exiguas, com muita exposição de partes nuas do corpo, de chapéus altos do qual saíam vegetais, de gestos sensuais, de participação de atores masculinos de torso descoberto, de execução de movimentos de cunho erótico com acompanhamento sobretudo rítmico, ou seja, características que podem ser encontradas em espetáculos europeus a partir de meados do século XIX e que dificilmente poderiam ser explicadas com relação à própria cultural.

Para além dos elos histórico-culturais com a França, seria necessário, a partir de procedimentos histórico-culturais em contextos globais, considerar a influência da ação norte-americana e/ou da americanização da Polinésia. A recepção de correntes derivadas do teatro ligeiro e dos espetáculos franceses parece ter ocorrido em grande parte via Estados Unidos. A influência dos musicais e do show business norteamericano, através sobretudo da indústria cinematográfica parece ter sido marcante. Ter-se-ia aqui uma situação próxima àquela que, no Brasil, se refere a uma determinada época do assim-chamado "teatro rebolado". Esse cunho norte-americano do show taitiano corresponde à expectativa do grande número de turistas dos EUA que visitam as ilhas.

(...)

Grupo redatorial sob a direção de A.A.Bispo



Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.
Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. (Ed.). "Festivais e shows taitianos como objeto de análises inter- e transculturais. Insularidade e processos performativos em expressões de um anelo ao espetacular.: significado para os estudos culturais euro-brasileiros". Revista Brasil-Europa 125/6 (2010:3). www.revista.brasil-europa.eu/125/Espetaculos_taitianos.html


  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa:
    http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.






 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 125/6 (2010:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
órgão da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2593


©



Festivais e shows taitianos como objeto de análises inter-e transculturais
insularidade e processos performativos em expressões de um anelo ao espetacular
significado para os estudos culturais euro-brasileiros




Observações na Polinésia Francesa no âmbito do programa Atlântico/Pacífico de renovação dos estudos transatlântico-interamericanos da A.B.E. em sequência a trabalhos desenvolvidos em curso dedicado à cultura musical na Austrália e Oceânia da Universidade de Colonia
sob a direção de A.A.Bispo

 















  1. Fotos: H. Hülskath 2010 ©
    Com permissão da companhia organizadora.
    No texto: imagem reproduzida por Rienzi, op.cit.

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________