George Copeland e a cultura gay. BRASIL-EUROPA 129. Bispo, A.A. (Ed.). Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

Uma das personalidades singularmente silenciadas da história cultural do século XX é a do pianista americano George Copeland Jr.. No "Ano Liszt 2011", pela passagem dos 40 anos de seu falecimento, cumpre recordar alguns aspectos de sua atuação, marcadas por pioneirismo visionário e que surge como de muito maior significado do que a ela é concedido.

Essa lembrança de Copeland surge como de particular relevância também para os estudos culturais euro-brasileiros concernentes às relações Brasil-Estados Unidos, uma vez que cada vez mais se toma consciência do papel exercido por Copeland como divulgador da música ibérica e, portanto, preparador de caminhos à recepção da latinidade e da música brasileira nos Estados Unidos.

Nascido em Massachusetts, iniciou-se no piano com Calixta Lavallée, compositor de "O Canada", hino nacional do Canadá (veja artigo). Aperfeiçoou-se no New England Conservatory com Carl Baermann (filho) (1839-1913), pianista que havia sido aluno e amigo de Liszt. Copeland insere-se, assim, numa linha de tradição que leva ao músico e compositor comemorado no corrente ano.

No ambiente de orientação européia de Boston, adquiriu uma sólida e ampla formação musical e geral. Como muitos outros de sua geração, dirigiu-se à Europa para aperfeiçoar-se. Tornou-se aluno de Giuseppe Buonamici (1846-1914), em Florença, professor com elos com a América Latina, em particular com o Brasil, um dos mestres de Henrique Oswald (1852-1931). Passando para Berlin, foi aluno da pianista venezuelana Teresa Carreño (1853-1917).

Em Paris, recebeu orientação do pianista britânico Harold Bauer (1873-1951), que havia sido aluno de Ignacy Jan Paderewski (1860-1941), dedicando-se sobretudo à música de Robert Schumann (1810-1856). Vivenciou, assim o ambiente parisiense cosmopolita de fim de século, marcado por tendências múltiplas, por um fascínio pela música alemã, e, concomitantemente, pela procura de caminhos estéticos identificados como franceses ou latinos. Emigrando para os Estados Unidos, Bauer ali fundou a Beethoven Association e a Manhattan School of Music, escola que passou a desempenhar importante papel na vida musical de Nova York.

No círculo de Bauer em Paris, Copeland entrou em contato com a personalidade e a música de Claude Debussy (1862-1818), cujo fascínio marcaria a sua trajetória como um dos maior divulgadores das obras debussynianas. Se foi Bauer que executou pela primeira vez o Children's Corner, de Debussy, em 1908, em Paris, seria Copeland que deu início à difusão de obras de Debussy na América com a execução da Deux Arabesques no Steinert Hall, em Boston (veja artigo).

John Singer Sargent (1856-1925)

Uma das mais profundas influências que Copeland recebeu do ambiente parisiense foi o fascínio francês pela cultura ibérica. Esse interesse tinha já antigas raízes, remontante  à visão romântico-historicista da primeira metade do século XIX, intensificada com as decorrências político-culturais relacionadas com a Guerra Franco-Prussiana e concomitante reconscientização de valores latinos (veja artigos a respeito em números anteriores desta revista, entre outros http://www.revista.brasil-europa.eu/121/Imperatriz_Eugenie.html e http://www.revista.brasil-europa.eu/121/Magda_Tagliaferro.html).

O seu contato mais íntimo com as expressões culturais da Espanha foi-lhe possibilitado pelo pintor John Singer Sargent (1856-1925), um dos mais destacados retratistas americanos, também hoje singularmente silenciado.

De pais americanos, nascido em Florença, e tendo passado a sua vida em viagens, Sargent surge como uma das personalidades de entre-séculos mais marcadas pelo cosmopolitismo e pela internacionalidade, com obras que levaram a críticas por aspectos ousados para a época. Como outros membros da New English Art Club, foi representante significativo dos opositores ao conservativismo acadêmico dos salões oficiais, contribuindo à renovação das artes na França.

Muitas de suas obras revelam o seu fascínio pelo mundo ibérico, compreendido ainda românticamente no modêlo do flamenco. Marcado ao mesmo tempo por uma atitude de discreta reserva, nobreza e sensualidade na escolha e tratamento de alguns de seus temas, John Singer Sargent, apesar da destruição póstuma de sua documentação escrita, teria pertencido ao amplo círculo de artistas e intelectuais cuja história hoje passa a ser recuperada no âmbito dos estudos de Gênero.

Com os impulsos recebidos por Sargent, Copeland aprofundou-se e especializou-se na música ibérica. Tornou-se um dos mais conhecidos intérpretes de obras de compositores espanhóis de formação ou de influência francesa da época, entre outros Isaac Albéniz (1860-1909), Enrique Granados (1867-1916) e Manuel de Falla (1876-1946). Copeland é visto como o primeiro pianista a ter interpretado obras desses compositores nos Estados Unidos. Um marco na história da difusão da música ibérica no continente americano foi a sua execução de três peças da suite Iberia de Albéniz, Triana, Malaga e El Abaicin em Boston, em 1909.

O aprofundamento de seu conhecimento do universo debussyano deu-se em 1911, quando Copeland passou vários meses em estudos com Claude Debussy. Em encontros semanais, trabalhou com o compositor a execução e a interpretação de toda a sua obra. Desse convívio, guardou por toda a vida profundos sentimentos de admiração por Debussy e sua música. Pode ser assim considerado como o pianista que maior autoridade possuiu quanto à interpretação adequada do repertório debussysta.

George Copeland Jr. Arquivo A.B.E.
Relevância cultural do recital no Aeolian Hall de Nova York, em 1916

Tendo como manager Loudon Charlton, o mesmo que Guiomar Novaes (1895-1979), ofereceu, diferentemente desta, recitais nos Estados Unidos onde cedo apresentou obras de Debussy. Em 24 de março de 1914, em Boston, no Copley-Plaza Hotel, executou a La Boite à joujoux, possivelmente a primeira execução mundial da obra.

Um recital memorável foi o do dia 21 de novembro de 1916 no Aeolian Hall, em Nova York, uma tarde de terça-feira, às quinze horas. O programa do recital, quando usou um piano Mason & Hamlin, foi aberto por um Bourrée de Bach, seguindo-se duas mazurcas e um estudo de Chopin. Como peça de maior envergadura, apresentou a sonata Appassionata de Beethoven.

O extraordinário significado desse recital residiu sobretudo na sua parte intermediária, onde apresentou, em primeira audição, obras de Debussy.  Na execução de En Blanc et Noir, para dois pianos, foi secundado por Elizabeth Gordon.

O programa incluiu os textos, em francês, pelo que tudo indica uma exigência do próprio Copeland, assumindo, assim, um cunho de comunicação de significados velados. A citação explícita de François Villon sugere aqui uma inserção de Copeland no universo estetico marcado pela tradição de líricos como Paul Verlaine (1844-1896) e Arthur Rimbaud (1854-1891).

Qui reste à sa place/Et ne danse pas/De quelque disgrace/Fait l'aveu tout bas (J. Barbier et M. Carré)
Prince, porté soit des serfs Eolus/En la forest ou domine Glaucus/Ou privé soit de paix et d'espérance/Car digne n'est de posséder vertus/Qui mal vouldroit au royaume de France (François Villon)
Yver, vous n'est qu'un vilain (Charles d'Orleans)

A essa obra, Copeland fêz seguir dois estudos de Debussy, o de número X, "pour les sonorités opposés", e o de número XI, "pour les arpèges composés".

Uma outra composição apresentada em primeira audição nessa ocasião foi a Esquisse, de Alexei Vladimirovich Stantchinsky (1888-1914), compositor russo cuja vida foi cercada de mistérios. Internado em clínicas por supostos problemas psíquicos, provavelmente cometera suicídio dois anos antes do concerto.

De Granados, Copeland incluiu a Danse espagnole e, terminando o recital, a composição Soleil à Midi do compositor e organista belga Marie-Alphonse-Nicolas-Joseph Jongen (1873-1953).

Esse programa de Copeland, diferindo dos recitais convencionais de muitos outros intérpretes, sugere intenções de comunicação de sentidos, ainda que velados ou enigmáticos. Ao lado de sua composição formal comum à época - peça antiga de abertura, obras românticas, em geral Chopin, peça de envergadura ("cavalo de batalha"), composições menores e obra de virtuosidade brilhante de encerramento, o programa indica ser Copeland um intelectual e esteta, transmitindo mensagens, mesmo talvez não o desejando fazer.

Uma delas, a expressa no texto do En Blanc et Noir - "Qui reste à sa place et ne danse pas...", introduzida pela Bourrée e acentuada com a inclusão da Danse espagnole de Granados, diz respeito ao significado da dança no mundo de Copeland, o que também se manifestou na sua carreira artística.

N.Y.Foto A.A.Bispo©
Latinidade a partir do fascínio pela Espanha na França: Gabriel Grovlez (1879-1944)

Outro programa de Copeland que merece ser particularmente salientado pelo número de obras de Debussy que incluiu foi o apresentado no mesmo Aeolian Hall em 1917, no dia 24 de novembro, uma quarta-feira à tarde. Os autores "antigos" de abertura foram, aqui, Rameau (L'Egyptienne, L'Enharmonique) e Bach (Sarabande, Passepied I- Passepied II). A obra de envergadura apresentada foi a Fantaisie de Mozart, seguindo-se três composições de Chopin (Valse, Etude, Ballade N° 1). O programa incluiu várias obras de Debussy: Feuilles Mortes, Danse de Puck, Et La Lune Descend Sur Le Temple Qui Fut, Ondine, Reflets Dans L'Eau, Poissons D'Or. A parte espanhola, aqui encerrando o recital, foi constituída pelas Spanish Dances - Evocation e Recuerdos, do compositor e regente francês Gabriel Grovlez (1879-1944).

A inclusão dessas danças espanholas de um compositor francês testemunha mais uma vez o fato de que a recepção ibérica na América deu-se através do fascínio pela Espanha na França. Grovlez, que estudara no Conservatório de Paris, era professor de piano na Schola Cantorum e regente da Opéra Comique, do Thêatre des Arts, e, desde 1914, diretor da Opéra. Apresentou-se em vários países, também em Portugal.

Os Isadorables

A partir de 1918, juntamente com seis bailarinos que haviam sido alunos da dançarina americana Isadora Duncan (1877-1927), criadora da dança moderna, formando um grupo designado como Isadora Duncan Dancers e conhecido sob a denominação de sentido ambivalente de Isadorables, Copeland passou a apresentar-se em várias cidades dos Estados Unidos.

Os programas, também organizados por Loudon Charlton e subsidiados pela firma Chickering Piano Company, incluiam números de dança e de piano. Também nesses programas, Debussy e compositores espanhóis faziam parte constante das apresentações.

Retornando à Europa em 1920, viveu na Italia e em Mallorca, onde participou do Festival de Chopin; apresentou-se em vários países, entre outros em Viena, em Salzburgo e em Londres. Mais tarde realizou viagens artísticas pelos Estados Unidos em 1925, entre 1928 e 1931 e 1933.

Questões de identidade: desafio de convenções

Ao retornar da Europa, Copeland destacou-se pela honestidade e coragem em apresentar-se publicamente na sua identidade de gênero. Em fotografias publicadas em programas, nas suas atitudes em palco, no uso de atributos de conotação feminina, como jóias, e em entrevistas, já mesmo antes da Guerra, não escondeu pertencer à família daqueles que tinham Oscar Wilde (1854-1900) como um de seus mais conhecidos representantes.

Nessas condições, surpreende a proximidade que existiu entre Copeland e a intérprete brasileira Guiomar Novaes, conhecida pelo seu conservativismo de concepções e modos de vida. Esta conservou durante toda a sua vida programas dos recitais de Copeland no Aeolian Hall a que assistira, fato que indica a admiração que tinha pelo pianista. Os programas de Copeland surgem como mais avançados esteticamente do que aqueles da intérprete brasileira. As obras ibéricas que este executava faziam parte ou passaram a fazer parte, nessa época, do seu repertório. As pesquisas desse singular relacionamento, porém, ainda não se encontram satisfatoriamente desenvolvidas.

Antonio Alexandre Bispo


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.. "John Singer Sargent (1856-1925) e George Copeland Jr. (1882-1971): A cultura gay na valorização da latinidade na vida artística euro-americana". Revista Brasil-Europa 129/7 (2011:1).http://www.revista.brasil-europa.eu/129/John_Sargent_e_George_Coopeland.html


  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.




 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 129/7 (2011:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2693



John Singer Sargent (1856-1925) e George Copeland Jr. (1882-1971)
A cultura
gay na valorização da latinidade na vida artística euro-americana

Trabalhos da A.B.E. no Ano Liszt. Pelos 40 anos da morte de George Copeland Jr.

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________









Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E./I.S.M.P.S.e.V.