Fim da era Szenkar no Rio. BRASIL-EUROPA 129. Bispo, A.A. (Ed.). Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Rockfeller Center NY. Foto A.A.Bispo©

O estudo cultural das relações Brasil-Estados Unidos no século XX revela os estreitos elos existentes entre essas relações e os desenvolvimentos político-culturais em contextos globais. Assim, como tematizado em outros artigos desta edição, os períodos marcados pelas duas Guerras Mundiais foram de excepcional significado para a presença do Brasil nos Estados Unidos.


As diferenças entre as condições que determinaram a recepção de artistas e expressões culturais brasileiras nos grandes centros americanos e suas consequências para o Brasil representam importante objeto de análises relativas a interações entre processos transatlânticos e interamericanos.


As décadas de 30 e 40, sobretudo os anos imediatamente anteriores e aqueles da Segunda Guerra Mundial, experimentaram uma intensificação do interesse pelos países da América Latina e sua cultura no âmbito da política da Boa Vizinhança dos Estados Unidos.


As circunstâncias que determinaram essa intensificação da receptividade americana levaram também ao privilegiar de determinadas tendências estéticas, obras e compositores, que tiveram repercussões no Brasil e lançaram as bases para continuidades no período posterior à Guerra.


Dado o estreito vínculo entre a projeção internacional de obras e personalidades brasileiras nos Estados Unidos e as circunstâncias políticas norte-americanas, determinadoras de processos de recepção, seria inadequado considerar essa projeção de artistas e intelectuais brasileiros no Exterior sem a consideração da ótica americana no processo receptivo.


Em todas as fases das relações culturais Brasil-Estados Unidos, chama a atenção o significado extraordinário desempenhado pelo jornalismo, pela imprensa, pela publicidade, pelos grandes jornais, pelas casas editoras, assim como pelas agências de difusão de informações, pelos comentaristas de jornais e pela crítica. O jornalismo, nas suas diversas modalidades, desempenhou um papel muito mais intenso na configuração das relações culturais entre os dois países do que no caso dos elos entre o Brasil e os países europeus.


Essa importância do jornalismo, nos seus elos com agentes promotores de concertos e exposições, com o comércio de instrumentos e outros aspectos pragmáticos da vida cultural corresponde a características de um sistema político e político-cultural no qual fatores relativos ao mercado surgem como determinantes.


Revisões de fatos criados à luz de releituras da musicografia


Sendo que, no caso da vida musical, uma musicografia de cunho jornalístico co-determinou fundamentalmente desenvolvimentos, marcou a projeção de artistas e obras, assim como tendências estéticas, seria inadequado, que uma musicologia no sentido mais estrito do termo considere hoje os fatos criados sem exames adequados dos seus pressupostos, dos mecanismos que os determinaram e das rêdes sociais envolvidas.


Estudos musicológicos orientados teórico-culturalmente de relações Brasil-Estados Unidos no século XX mereceriam ser menos dedicados a compositores que atingiram renome e suas obras, do que aos pressupostos de sua projeção, e, entre êles, aos musicógrafos, críticos, comentaristas, jornalistas em geral, aos managers e mediadores, assim como à análise das relações humanas e profissionais criadas.


Como tematizado em outros artigos desta edição, vários foram os musicógrafos, desde a Primeira Guerra Mundial, que não apenas registraram fatos, mas contribuiram às carreiras de artistas e mesmo as influenciaram de forma por vezes decisiva.


A maior parte desses nomes é desconhecida para os pesquisadores brasileiros e pouco considerada pelos estudos musicológicos europeus. Em ambos os casos, inadequadamente, a atenção se dirige a nomes de relêvo e a obras, a uma Guiomar Novaes ou a um Villa-Lobos. A consideração desses nomes, porém, as suas perspectivas e o contexto em que se inseriram surge como cada vez mais de importância para o desenvolvimento de estudos culturais de condução musicológica e, vice-versa, de uma musicologia de orientação teórico-cultural.


Nesse intuito de exames da produção de opiniãoes e imagens, duas situações devem ser considerados: aqueles de jornalistas, americanos e brasileiros atuantes nos Estados Unidos e aquele de correspondentes no Brasil.


Entre outros aspectos, a atenção deve ser, por um lado, dirigida aos muitos nomes de comentaristas e autores de livros de divulgação musicográfica dos Estados Unidos, cujas opiniões e valorações marcaram a vida musical americana e repercutiram no Brasil através do envio, pelos respectivos artistas, de recortes de jornais e outras informações.


A ação de jornalistas americanos no Brasil deveria também ser alvo de maior atenção, pois, sobretudo após a intensificação das relações à época da Segunda Guerra e nos anos subsequentes, passaram a enviar notícias aos Estados Unidos, ali co-determinando a imagem do Brasil e dos desenvolvimentos nas culturas e nas artes.


Ainda que tais estudos se encontrem em estado incipiente, a ação de correspondentes americanos nessa época significou uma transformação na recepção da cultura brasileira nos Estados Unidos, até então sobretudo baseada em informações obtidas de jornais ou transmitidas por agências de informação ou por artistas e intelectuais do Brasil.


Também o exame dessas informações necessitaria considerar o seu receptor, uma vez que eram enviadas com o sentido de despertar a atenção e o interesse dos leitores. Interpretando fatos segundo a ótica do receptor, essas vozes inserem-se no seu contexto, ou seja, representam uma transferência, para o Brasil, de situações culturais norte-americanas. A análise de suas avaliações de desenvolvimentos pode fornecer, assim, caminhos para a percepção de transformações nas relações entre os dois países.


Rockfeller Center NY. Foto A.A.Bispo©

O Brasil no panorama musical do globo na perspectiva americana de 1950


Como exemplo, considera-se, neste contexto, um artigo enviado do Rio de Janeiro por Lisa M. Peppercorn e que representou o Brasil numa edição do Musical America. Esse órgão da Musical America Corporation, para a abertura da segunda metade do século, considerou a situação e as tendências da vida musical de várias nações do globo.


Segundo o autor do texto que abriu a edição, Cecil Smith (1906-1956), autor com formação em Harvard, atuante sobretudo em meios acadêmicos de Chicago e crítico musical que se destacou sobretudo pelos seus panoramas gerais de situações e desenvolvimentos (Musical Comedy in America, 1950), esse número do Musical America apresentava pela primeira vez, como nunca antes acontecera, um panorama global da world's music. Significativamente, o seu texto era intitulado de "Music Around The World".



Smith salienta que todos os continentes haviam sido considerados, assim como praticamente todas as principais nações. De Estocolmo a Sydney observava-se um florescimento das atividades musicais. Nunca, na história do mundo, o fazer música havia sido tão universal e onipresente, nunca o público havia sido tão amplo e nunca os ideais e as aspirações haviam sido mais elevados. Entretanto, a visão apresentada pelos correspondentes no Exterior não era serena, pois nenhuma das nações havia deixado de confrontar-se com os efeitos da Segunda Guerra Mundial. Nenhum país deixava de experimentar os difíceis problemas de reajustamento e reorientação dos anós de após-Guerra.


A análise da situação do autor americano é fundamentalmente econômica: o progresso da música no globo passava por sérios problemas resultantes da instabilidade da moeda. Na maior parte dos países fora dos Estados Unidos, grande parte dos empreendimentos musicais era sustentada por subsídios governamentais. A desvalorização de moedas - da libra, do franco, da lira - empobrecera muitos govêrnos, e por todo o lado mostrava-se incerto o futuro econômico de uma vida musical subsidiada pelo Estado


A questão de como a música seria paga seria para Smith a mais premente questão do tempo. Orquestras estatais e casas de ópera passavam por dificuldades. A Sinfônica de Bogotá não podia pagar partituras, a Ópera de Roma e o La Scala de Milão não podiam levar novas produções. O Teatro Colón de Buenos Aires parecia ser o único do mundo ainda capaz de operar normalmente. Por detrás das linhas enviadas pelos correspondentes, poder-se-ia perceber que o Covent Garden de Londres e a Ópera Real de Estocolmo não estavam em condições de manter os seus standarts. Na Alemanha, o panorama era lamentável em comparação àquele anterior a 1933; em Paris, tanto a Opéra e a Opéra-Comique estavam bloqueadas por greves,  e o Teatro Municipal do Rio de Janeiro tornara-se comercializado e provinciano: "The opera house in Rio de Janeiro has become commercialized and provincial (...)" (Cecil Smith, "Music Around The World", Musical America, Advance Special Issue, January 15, 1950, 3 e 97, 3).


O panorama assim traçado serve como base para a exposição de uma teoria econômico-cultural por parte de Cecil Smith. Como se conhecia da história recente do Metropolitan, a realização de grandes produções, bem preparadas e realizadas, custaria mais do que as entradas poderiam oferecer, exigindo planos cuidadosos. Em casas de ópera mantidas por govêrnos, um aumento de custos de produção ou uma diminuição de subsídios causavam necessariamente crises. Nos Estados Unidos, começava-se a dirigir parte considerável da energia criativa à apresentação de óperas de menores proporções, menos dispendiosas. Entretanto, sentia-se falta dessa visão americana de adaptação das produções às possibilidades: o Rio de Janeiro e Roma continuavam a querer fazer ou grandes produções ou nada. Essa visão americana, porém, era importada da Europa, tendo os seus princípios na Alemanha e na França.


Quanto às orquestras sinfônicas, não tão dispendiosas quanto óperas, a situação parecia estar melhor. As orquestras já há muito estabelecidas estavam consolidando as suas posições e novas surgiam em cidades que não possuiam ainda tradição orquestral. Qualquer província da Austrália possuía agora a sua orquestra; as orquestras latino-americanas adquiriam fundamento e, graças à ajuda de rádios estatais, as orquestras européias saneavam-se.


A desvalorização e a queda das moedas, porém, haviam alterado radicalmente as atividades de artistas solistas. A tentação de viajar de um país para outro diminuia à medida que o artista não tinha a possibilidade de levar consigo os lucros obtidos. Se um artista europeu podia manter-se dividindo o seu ano entre vários países, o mesmo não acontecia a artistas de outros países. Para os residentes nos Estados Unidos, as atividades internacionais eram desencorajantes. A lista dos artistas que viajavam naquele ano pela Europa, América do Sul e Austrália era pequena. Os Estados Unidos continuavam a ser hospitaleiros em receber artistas estrangeiros, esses, porém, apenas podiam arcar com as despesas das viagens se apoiados por um management americano.


Apenas após essa análise econômica do panorama musical no mundo é que Cecil Smith passa para questões propriamente culturais, salientando os problemas estéticos resultantes da Guerra. Compositores do pós-Guerra tinham perdido a fé em muitos dos ideais que os haviam impulsionado. Impunha-se, assim, a responsabilidade de construção de um novo mundo. Quais seriam os novos métodos de expressão, quais as novas técnicas, quais as novas relações com audiências e com as modificadas condições sociais e políticas? O movimento neoclássico centralizado na preocupação de Stravinsky pela música como forma estava exaurido, a não ser em pequenos grupos nos Estados Unidos e na França; o sistema dodecafônico de Schönberg tornara-se dominante. Essa música, porém, não era basicamente nova, mas sim expressão de uma epoca agonizante de romanticismo tardio. Na França, Olivier Messiaen caía numa filosofia orientalizante.


Seria fácil, como salienta Cecil Smith, enfatizar o elemento universal no panorama mundial, não considerando o especial de cada nação e de cada cultura. Esse êrro não seria encontrável nos textos dos vários correspondentes, uma vez que consideravam adequadamente as singularidades dos vários países, dirigindo a sua atenção à diversidade na unidade. Entretanto, preparando os artigos relativos à cena internacional, Cecil Smith foi tomado pela preocupação que o seu próprio país, os Estados Unidos, nas suas atitudes e comportamentos, pudesse representar essencialmente uma réplica microcósmica de um todo, Entendo-se a si próprios, poderiam entender o resto do mundo, e o resto do mundo poderia ajudá-los a que se entendessem a si próprios:

"By understanding ourselves we can understand the rest of the world; and the rest of the world can help us to understand ourselves better." (op.cit. 97)


O futuro orquestral incerto do Brasil segundo Lisa M. Peppercorn


Poucos são os artigos dessa edição do Musical America que mais correspondem às apreciações de Cecil Smith do que aquele referente ao Brasil. O próprio título da matéria condensa a principal tese do editor.


A atenção foi dirigida, nesse artigo, ao futuro incerto da prática orquestral no Brasil, compreendido esse, basicamente, como aquele representado pela vida musical de sua capital. ("Brazil: Uncertain Orchestral Future", Musical America, January 15, 1950, 33). 


A autora iniciava o seu texto acentuando o fato inesperado que foi o término das atividades do regente húngaro Eugene Szenkar (1891-1977) à frente da Sinfônica Brasileira.


Em fuga ao Nacionalsocialismo alemão, tinha percorrido vários países, vindo ao Brasil em 1939 como regente do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Nessa cidade fundou, em 1940, a Orquestra Sinfônica Brasileira, à frente da qual desenvolveu intensas atividades.


Ao terminar a saison da orquestra de 1949, Szenkar iria deixar o Rio de Janeiro.


O artigo enviado do Rio de Janeiro, deixava entrever a admiração de sua autora por Szenkar e sugeria o término de uma época que havia sido marcada pela Guerra e se prolongado por alguns anos após o seu término.


Uma leitura mais cuidadosa do texto revela ter sido escrito segundo uma perspectiva americana, apreciando os acontecimentos segundo critérios vigentes nos Estados Unidos.


Szenkar teria criado um público fiel durante a década de seus serviços, formando uma audiência interessada em música sinfônica. Embora houvesse um forte movimento para que dirigisse ainda a programação de 1950, Szenkar decidira-se, por motivos econômicos, primeiramente cumprir contratos na Europa.


Nos últimos anos, regentes estrangeiros haviam frequentemente dirigido a orquestra, mas o público não apreciava maestros convidados, que raramente mantinham o nível artístico a que já estava acostumado. Muitos temiam que a partida de Szenkar causaria o declínio da orquestra. Os mais otimistas acreditavam que a orquestra tinha condições para sobreviver, mas não para uma estação completa de concertos, desde que não recebesse um regente à altura. A presença de Szenkar era uma fonte de segurança em tempos difíceis, e a sua partida poderia destruir finalmente a unidade - já pequena - que havia na organização.


Lisa M. Peppercorn tece várias conjuncturas a respeito do futuro da orquestra. Assim, os seus membros poderiam resignar e procurar encontrar posições na Orquestra Municipal, que no passado ocupara uma posição-chave na vida musical do Rio de Janeiro, nos últimos anos, porém, funcionara sobretudo para apresentações de ópera e de ballet. Essa orquestra poderia ter um futuro esperançoso, uma vez que passara-se uma petição na Câmara Municipal que proporcionava aumento substancial de salários para os músicos. Essa ação foi, porém, sentida como uma afronta à Sinfônica Brasileira, que nunca havia podido superar as suas dificuldades financeiras, apesar dos subsídios governamentais.


Devido aos altos custos de vida no Brasil, era um fato, segundo Peppercorn, que os músicos deviam ser pagos de modo que os possibilitassem a dedicar-se de tempo integral à orquestra, sem que precisassem tocar em cafés ou em teatros. Os músicos da Orquestra Municipal eram classificados em três categorias, nas quais os salários eram equivalentes, nominalmente, a 420, 362 e 304 dólares por mês. O concertmaster recebia uma adicional de 80 dólares. O maestro assistente ganhava 495 dólares. A autora salienta que os seus salários, embora inadequados quanto ao poder aquisitivo, era consideravelmente alto em comparação com aqueles de outros campos de atividades no país.


Pelo fim da estação de 1949, a administração da Orquestra Municipal ter-se-ia lembrado que em anos passados a orquestra havia dado séries de concêrtos sinfônicos. Organizou-se, assim, uma série de quatro concertos, dentro do breve espaço de dez dias. Szenkar, que tinha dado o seu concêrto de despedida, com um programa exclusivamente dedicado a Wagner, foi solicitado a dirigir a orquestra.


Em dois dos concertos, Wilhelm Kempff (1895-1991) executou os cinco concertos para piano de Beethoven. O terceiro programa incluiu o concerto para violoncelo de Khachaturian (1903-1978), executado no Brasil pela primeira vez, por Edmund Kurtz (1908-2004), assim como a Terceira Sinfonia de Brahms, o Bolero de Ravel e uma pequena composição de Villa-Lobos. O último concerto teve um programa mixto, incluindo música de câmara, música de ballet e um concerto de piano em homenagem a Chopin. A autora abandona aqui a objetividade de seu relato, manifestando a sua opinião pessoal: Wilhelm Kempff fora imprevisível e caprichoso, mudando tempos e dinâmicas a bel-prazer.


Serge Koussevitzky (1874-1951)


Desde o aparecimento de Arturo Toscanini (1867-1957) e a NBC Symphony, há muitos anos atrás, nenhum regente havia sido recebido no Rio de Janeiro de forma tão entusiástica como Serge Koussevitzky. No período de um mês, regeu a Sinfônica Brasileira em seis concertos, com quatro programas.


Com energia infatigável e paciência ensaiava a orquestra várias horas por dia, até à exaustão dos músicos. A sua tarefa não era apenas interpretativa. Precisava corrigir arcadas, eliminar notas erradas e assegurar rítmo acurado e textura limpa. Dedicou manhãs inteiras para o ensaio separado de naipes. Peppercorn salienta que Koussevitzky escolhera os seus programas inteiramente do repertório convencional, não apresentando peças americanas ou contemporâneas.


O primeiro dos três concertos consistiram na abertura Egmont e na sétima sinfonia de L. v. Beethoven, assim como na segunda sinfonia de J. Sibelius. O segundo programa consistiu da primeira sinfonia de J. Brahms e da quarta sinfonica. Na terceira noite, dirigiu a primeira sinfonia e a nova sinfonia de Beethoven.


Nas séries de subscrição, Koussevitzky ofereceu a primeira sinfonia de Beethoven e a quarta sinfonia de Tschaikosky. Repetiu-se a nona sinfonia em concerto popular. Nos primeiros compassos da abertura de Egmont teria sido inacreditável, segundo Peppercorn, que Koussevitzky tivesse dado tanta vida à orquestra: o conjunto soara transparente, os violoncelos e os contrabaixos produziram pianissimos impressiponantes e os pontos culminantes foram desenvolvidos de forma magnífica.


Eleazar de Carvalho (1912-1996). Reservas quanto a nova orientação programática


Para Peppercorn, o treinamento da orquestra por Koussevitzky ainda era perceptível quando Eleazar de Carvalho assumiu a orquestra para o primeiro dos três concertos que concluiram os concertos de subscrição de 1949.


Os seus programas seriam, porém, mais interessantes do que as suas interpretações. Haviam incluído o o terceiro Concerto Brandenburguês de Bach, "Harold na Itália" de H. Berlioz, anunciado como primeira audição no Brasil, a Outodoor Overture, de Aaron Copland (1900-1990) e o Canto do Outono, de Francisco Braga (1868-1945).


Para Lisa M. Peppercorn, no segundo dos programas de Eleazar de Carvalho, a orquestra já havia caído na "indolência" da época anterior a Koussevitzky, que agora era sentida como ainda mais lamentável. A sinfonia n° 99 de J. Haydn, executada pela primeira vez no Brasil, não teria tido precisão.


Os programas de Eleazar de Carvalho eram, para a comentarista, todos muito longos e mal configurados. O seu desejo de apresentar obras pouco conhecidas era o seu grande trunfo, mas as suas escolhas não eram sempre felizes. Teria sido difícil para ela digerir um concerto que apresentara uma sinfonia de J. Haydn, duas obras sul-americanas - um poema sinfônico de Villa Lobos e as três Estampas da compositora argentina Pia Sebastiana - além de um concerto para violoncelo de R. Schumann e do segundo concerto para trompa de R. Strauss. Mesmo assim, Eleazar de Carvalho alcançara considerável sucesso.


Florent Schmitt (1870-1958) e Walter Gieseking (1895-1956)


Comentando a presença mais recente de músicos europeus, Lisa M. Peppercorn salienta que Florent Schmitt e Walter Gieseking haviam sido recentemente convidados. Florent Schmitt viera a convite de Heitor Villa-Lobos. Dois concertos haviam sido dedicados às suas composicões, um de obras orquestrais e corais, outro de música de câmara. O primeiro, ofereceu La Tragédie de Salomé, In Memoriam à Gabriel Fauré e Ronde Burlesque, assim como três de Six Choruses para coro feminino e orquestra, e o salmo 46 para orquestra, órgão e soprano solo, interpretado por Cristina Maristani e coro mixto. A Associação de Canto Coral, a orquestra municipal e o coro do Teatro Municipal tomaram parte; Florent Schmitt e Villa-Lobos alternaram-se na regência. A sessão de música de câmara incluiu o Quarteto de Flauta opus 106, o Quinteto op. 51, os Quatro Poemas de Ronsard op. 98 para vozes e piano, as Três Danças opus 36 para piano solo e as Três Rapsódias opus 53 para dois pianos.


Peppercorn relata aos leitores norteamericanos que Gieseking havia sido contratado pela Associação Brasileira de Concertos para vários recitais. Além de Debussy, a sua especialidade, interpretara a Sonata Patética de Beethoven, a Sonata de Paradisi em fá maior; a sonata op. 11 de Schumann, a suite inglêsa em ré menor de Bach, a sonata op. 31 n° 2 de Beethoven e vários dos Momentos Musicais de Schubert.


A Sociedade de Cultura Artística trouxera Edmund Kurtz ao Brasil, promovendo uma mudança do repertório convencional de recitais de piano. Kurtz executou obras de Frescobaldi e Locatelli, de Brahms a Sonata em fá maior, terminando com peças de Milhaud, Ravel, Hindemith, Tschaikovsky e Villa-Lobos. Fora acompanhado por Leo Nadelmann.


Um concerto dedicado exclusivamente a Joaquín Turina (1882-1949) fora patrocinado pela Cultura Artística, no qual o público do Rio de Janeiro tomou conhecimento com duas obras da antiga música de câmara - um quarteto de cordas e um quinteto de piano, executados de forma refinada pelo Quarteto Haydn e pelo pianista Fritz Jank, de São Paulo.


Em curtas notícias, Peppercorn noticia que Esmeralda de Seslavine interpretara um ciclo de canções, incluindo Canto a Sevilla. Um recital de canto memorável havia sido dado por Marion Mattäus, contralto, assistida pelo pianista Otto Jordan. O programa incluiu os Vier ernste Gesänge de J. Brahms.


Texto da correspondente sob a perspectiva teórico-cultural


Não tomando o texto enviado do Rio de Janeiro para o Musical America como simples fonte de dados para o conhecimento da vida musical brasileira em 1950, mas êle próprio como indicativo de concepções e de visões de autor e da sua inserção cultural, o leitor constata uma tendência à valorização de aspectos técnicos e pragmáticos.


Chama a atenção a admiração de Lisa M. Peppercorn pelo trabalho disciplinador e de treinamento de músicos promovido por regentes como Szenkar e Koussevitzky, pela quantidade de apresentações realizadas e pelo entusiasmo que um trabalho diligente no exercício da prática musical podia criar. Ao contrário, uma orientação mais dirigida à concepção  programática, à difusão de obras desconhecidas, inclusive contemporâneas do então jovem regente brasileiro Eleazar de Carvalho é apreciada negativamente pela comentarista; os seus programas são descritos como sendo de "difícil digestão" e contraproducentes para um processo educativo e formativo desenvolvido pelos regentes anteriores.


O leitor é levado, aqui, a indagar se essa apreciação não revela perspectivas propriamente "americanas" ou de determinados contextos culturais internacionais particularmente acentuados nos Estados Unidos. A compreensão pelo conservadorismo na preparação de programas de Koussevitzky corresponde a expectativas de constatação músicos e orquestras motivados, salas de concerto bem visitadas e público formado para a apreciação de alto nível qualitativo de execução. Essas expectativas são conhecidas, por sua vez, de exames de determinados contextos nos Estados Unidos, onde, circunstâncias político-culturais condicionaram uma grande concorrência de músicos altamente qualificados vindos da Europa envolvida em conflitos bélicos (Veja artigo).


O conservativismo na configuração de programas, associada a alto nível de execução, pode ser examinado, no caso americano, também sob a perspectiva de processos culturais derivados da imigração. Como examinado em determinados contextos, impulsos integrativos em situação de instabilidade social e labilidade psicológica própria de contextos imigratórios apresentam tendências auto-afirmativas, a do ser "mais europeu do que o europeu", a do demonstrar também possuir e poder tanto quanto a Europa quanto a obras e a nível de execução. Parece ser compreensívél que músicos assim socializados, como Koussevitzky, transportassem essa perspectiva na apreciação da realidade e os respectivos critérios na compreensão do sentido e da função da atividade artística, o mesmo valendo para Lisa M. Peppercorn.


Esse seria um dos muitos caminhos para possíveis análises. A procura do sucesso, a alegria da realização  a partir de um treinamento árduo, o domínio de obras e a motivação daqui decorrentes poderiam levar a tentativas de elucidação mais profundas, mesmo sob o aspecto filosófico-cultural.


Antonio Alexandre Bispo


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.."O Brasil no panorama mundial da música no após-Guerra. Releitura de apreciações: de perspectiva americana a leitores americanos. 70 anos: Eugene Szenkar (1891-1977) e a Orquestra Sinfônica Brasileira". Revista Brasil-Europa 129/24(2011:1).
http://www.revista.brasil-europa.eu/129/Fim_da_era_Szenkar_no_Rio.html



  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.




 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 129/24 (2011:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2710




O Brasil no panorama mundial da música no após-Guerra
Releitura de apreciações: de perspectiva americana a leitores americanos
70 anos: Eugene Szenkar (1891-1977) e a Orquestra Sinfônica Brasileira


Trabalhos da A.B.E. em Nova York, Los Angeles e Boston - Ano Edward MacDowell 2010 e Ano Listz 2011

 

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