Mar e rios nos estudos culturais Canadá/Brasil. Revista BRASIL-EUROPA 128. Bispo, A.A. (Ed.). Organização de estudos culturais em relações internacionais
Revista
BRASIL-EUROPA
Correspondência Euro-Brasileira©
Mar e rios nos estudos culturais Canadá/Brasil. Revista BRASIL-EUROPA 128. Bispo, A.A. (Ed.). Organização de estudos culturais em relações internacionais
Revista
BRASIL-EUROPA
Correspondência Euro-Brasileira©
Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 128/9 (2010:6)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência
e institutos integrados
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
Doc. N° 2665
Mar e rios nos estudos culturais Canadá/Brasil
tradições imagológicas comuns no exemplo de Notre-Dame-de-Bon-Secours de Montréal
Ciclo "Indian Summer" preparatório aos 300 anos da ida ao Canadá de Joseph-François Lafitau (1681-1746)
pioneiro dos estudos culturais comparados, da Antropologia Cultural e disciplinas afins
Musée Marguerite-Bourgeoys/The Margherite Bourgeoys Museum
Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E./I.S.M.P.S.e.V.
O Atlântico, o do Sul e o do Norte, precisou ser vencido, e isso exigia competência navegatória possibilitada apenas pela experiência do homem que habitava regiões voltadas ao mar, pescadores e comerciantes marítimos, seja em Portugal, França ou nas ilhas britânicas.
O viver em constantes perigos nos mares, a sensação de se estar entregue aos elementos, a esperança da superação de intempéries, de salvamento e do retorno torna compreensível a intensidade e as expressões da religiosidade de marinheiros e pescadores.
O viajar no mar favorece a compreensão da vida do homem como uma viagem, com um porto de saída e um de chegada, devendo orientar-se para guiar a sua barca com rumo certo. Torna-se compreensível, assim, que esse estreito vínculo da experiência existencial com a sua interpretação figurada haja possibilitado a sobrevivência de uma linguagem visual e concepções de antigas origens, transmitida através dos séculos na sua reinterpretação cristã.
Os estudos dessas relações e de suas expressões, que se baseiam na observação empírica de tradições e levam, para a compreensão de seus fundamentos, a estudos imagológicos de remotas eras e às fontes bíblicas de sua prática cristã, revelam a posição de excepcional significado ocupada pelo culto a Maria.
A intensidade da veneração mariana marcou a história cultural da França e de Portugal, vinculando-se em ambos os casos com o vir-a-ser da própria identidade nacional. Portugal, a „terra de Santa Maria“, levou devoções marianas para todas as regiões alcançadas, seja a Nossa Senhora da Boa Esperança em que confiavam nas suas viagens, seja na Nossa Senhora da Assunção a que levantaram igrejas nos seus assentamentos.
A França, o país das grandes catedrais marianas, também teve sobretudo as suas regiões de portos marcadas pelo culto a Maria, como Notre-Dame-de-la-Grâce em Honfleur (Veja: http://www.revista.brasil-europa.eu/114/Dionysius-a-Nativitate.htm) ou a Notre-Dame-de-Bon-Secours de Guincamp (http://www.revista.brasil-europa.eu/114/Guincamp.htm), invocação que marcou tão profundamente a história cultural do Canadá.
França e Portugal levaram ao Canadá e ao Brasil formas de veneração que indicam sobretudo concepções fundamentadas no mistério da Assunção de Maria. Sendo assunta aos céus em corpo e alma, precedendo os fiéis na ressurreição do mar deste mundo, tornou-se modêlo venerado sobretudo daqueles que se encontram existencialmente confrontados com o perigo da vida nas águas e esperam auxílio e socorro.
O Canadá atlântico, talvez ainda mais do que o Brasil, tem a sua geografia marcada pelas águas de suas costas com muitas ilhas, de seus grandes lagos e rios, em particular o São Lourenço. A profusão de peixes no Atlântico Norte e nas costas canadenses, pela qual toda essa região do globo tornou-se conhecida e procurada, forneceu as condições para o desenvolvimento de povoações voltadas às atividades de mar. Essas circunstâncias permitem que se compreenda a excepcional força de expressões tradicionais européias relacionadas com Maria e com o mar.
Local de reflexões: Museu Marguerite Bourgeoys
Essa capela foi construida nos primeiros anos do povoamento, então denominada de Ville-Marie, às margens do rio São Lourenço. Já a sua localização, com o seu coro e, por consequência, a assembléia voltada para o rio, indica os elos do culto ali praticado com as águas e com a vida marítima.
No passado, os navios que entravam no porto de Montréal eram recebidos por uma grande imagem de Maria que, de braços abertos, recebia aqueles que chegavam. Desempenhou, assim, um papel quase que emblemático de Montréal, podendo ser comparado com outras figuras monumentais à entrada de portos e cidades.
Na sua denominação, o museu lembra aquela que é vista como a iniciadora e principal promotora do culto a Notre-Dame-de-Bon-Secours em Montréal e de sua capela, a primeira igreja sólida, de pedra, de Québec. Segundo o seu desejo, a capela foi consagrada em perpetuidade a Maria, e essa sua intenção tem sido vista como um fator que garantiu que a igreja tivesse atravessado os séculos.
A memória e a veneração de Marguerite Bourgeoys receberam impulsos recentemente com a celebração dos 350 de sua chegada a Montréal, em 2003, e com a dos 350 anos de da capela de Notre-Dame-de-Bon-Secours, considerada como a alma ou a mãe da colonia.
Atualidade e significado da pesquisa
Em publicação do museu, de autoria da historiadora Patricia Simpson, autora de Marguerite Bourgeoys and Montréal 1640-1665 e da arqueóloga e especialista em difusão de patrimônios culturais Louise Pothier, responsável por uma exposição específica em Pointe-à-Callière do Montréal Museum of Archaeology and History, salienta-se que a capela sempre desempenhou um papel central no coração dos habitantes de Montréal.
O local de culto e peregrinação definiu gradualmente um pequeno bairro ou quarteirão a seu redor, o faubourg Bonsecours. Estudar a história da capela significa, assim, estudar a história do desenvolvimento urbano e da história cultural de Montréal. Tem-se salientado que a capela representa uma espécie de microcosmo da cidade, e a sua consideração garante a tomada de uma perspectiva adequada para estudos da cidade. A história de um edifício vincula-se, assim, estreitamente com a história do contexto no qual se insere e que foi por êle determinado.
Essa área do velho Montréal foi, durante os séculos, marcada pela diversidade de sua população, onde antigas tradições interrelacionaram-se com aquelas determinadas pelos contatos próprios de um porto. Segundo as pesquisadoras, teria sido a força simbólica que a capela exerce na mentalidade dos habitantes de Montréal que garantiu a sua permanência através dos séculos.
Se a capela foi, no passado, objeto de pintores e fotógrafos, também oferecendo inspirações para reconstruções visuais dos primeiros tempos do Canadá, hoje é alvo de redescobertas históricas e arqueológicas, apresentadas sobretudo no museu instalado nas suas dependências. Corresponde, aqui, a um novo interesse que se observa pelo patrimônio constituído pelas igrejas de Montréal, após décadas de indiferença e mesmo de destruição.
A capela, assim, torna-se um símbolo do movimento preservacionista de uma cidade que já muito perdeu da configuração que a identificava devido a questionáveis transformações urbanas e arquitetônicas.
Em exposição no museu, salienta-se, também, uma outra dimensão da valorização da capela no presente. Ela diz respeito à reconscientização do significado do peregrinar. Essa exposição estabelece pontes com a história das grandes vias de peregrinação da Europa, assim como o do papel desempenhado pelas vias de peregrinação e pelas romarias na história cultural da França. A exposição salienta o sentido do peregrinar, do caminhar na vida do homem na decorrência de sua vida e suas múltiplas relações com a compreensão do mundo e do homem.
O culto a Maria e a missão indígena em relações franco-canadenses
Os escritos dos missionários jesuítas, que descreviam os seus contatos com os indígenas do Novo Mundo despertaram amplo interesse na Europa. Entre os muitos que se deixaram entusiasmar pelos ideais da missão, um deles, Jérôme Le Royer de La Dauversière (1597-1659), um coletor de taxas de Anjou, decidiu criar uma obra filantrópica, fundando uma comunidade de religiosas: as Hospitalières de Saint-Joseph.
Encontrou um parceiro para a realização dessa visão no jovem sacerdote Jean-Jacques Olier (1608.1657). Este fundou a Compagnie de Saint-Sulpice, sociedade de sacerdotes destinada à reforma do clero segundo os critérios tridentidos. A formação sólida de sacerdotes era vista como principal meio para a santificação do povo cristão. Para além da adoração da Eucaristia, o culto a Maria desempenhava papel fundamental nas concepções.
Juntamente com Pierre Chevrier, Barão de Fancamp ou Fouencamps (1608-1692), e o Barão Gaston-Jean-Baptiste Renty (1611-1649), fundaram uma sociedade com o objetivo de estabelecimento de uma povoação na Nouvelle France para a cristianização dos indígenas. Conseguindo a adesão de homens e mulheres, muitos deles membros da Companhia do Santíssimo Sacramento, à qual também os iniciadores pertenciam, criou-se a Société de Notre-Dame de Montréal.
Escolheu-se a ilha para o projeto de assentamento devido à sua localização privilegiada, com os seus muitos rios, aptos a permitir a entrada ao interior e possibilitando que os indígenas viessem à aldeia de todas as regiões. A aldeia foi, assim, projetada ao mesmo tempo como polo irradiador e foco de atração. A ilha, não habitada, foi adquirida pela sociedade de um Jean de Lauson, em 1640-41.
Na Europa, encetaram-se esforços para o levantamento de fundos e a arregimentação de colonos. A liderança do empreendimento foi assumida por Paul de Chomedey de Maisonneuve (1612-1676) e Jeanne Mance (1606-1673), ambos da Champagne. Paul de Chomedey tornou-se o primeiro governador da localidade, cuidando da defesa e da justiça, Jeanne Mance ficou encarregada da assistência hospitalar e da administração econômica.
Os colonos, na sua maior parte homens, chegaram a Québec em 1641, constatando ali oposições quanto à idéia de estabelecimento de uma povoação no interior. Uma das razões residia no conflito entre franceses e iroqueses e o pequeno número de europeus residentes no vale do São Lourenço.
O governador Charles Huault de Montmagny (ca. 1599-1654) acompanhou o grupo em maio de 1642, subindo o rio São Lourenço. Construiu-se uma fortificação em local visitado por Champlain, três décadas antes, denominado de Place Royale. Posteriormente, após a construção do castelo do governador Louis-Hector de Callière (1648-1703), em 1684, foi denominado de Pointe à Callière.
Da vida religioso-cultural dos primeiros anos tem-se notícias nas relações dos Jesuítas. Assim, no dia da festa da Assunção de Nossa Senhora, a 15 de agôsto de 1642, realizaram-se grandes solenidades e procissão. Seguiu-se uma visita à floresta, alcançando-se o monte, onde dois chefes algonquins salientaram que pertenciam àqueles que possuiam a ilha desde épocas ancestrais. Mostrou, do alto, as regiões ocupadas no passado por numerosos indígenas. Os hurõ~es, inimigos, teriam expulsado os seus ancestrais, que foram acolhidos entre os abnaquios, iroqueses, e mesmo entre os hurões. Por essa razão, a ilha tinha permanecido deserta, os seus verdadeiros possuidores, porém, eram os indígenas.
Mar e monte real: das profundidades aos altos
Em 1642, por ocasião de ameaça de uma inundação, os colonos fizeram a promessa de levantar uma cruz no Mount Royal em gratidão por terem sido poupados. Abaixando-se as águas a partir da noite de Natal, a promessa foi cumprida, levantando-se a primeira cruz no Mount Royal, sendo esta carregada por Maisonneuve em procissão.
Tem-se aqui visto uma primeira expressão de uma peregrinação, seguindo-se tradições da Europa. Não se tem salientado suficientemente, porém, que essa ocorrência apenas pode ser compreendida no contexto da devoção a Maria nos seus elos com a proteção dos homens dos perigos das águas, fundamentada na concepção de sua Assunção. Essa concepção implica necessáriamente num movimento ascensional, das profundidaas das águas ao mais alto dos montes.
Maria e o papel das mulheres na formação de Montréal
Se a maior parte dos colonos vindos a Montréal era constituída por homens, as mulheres, sobretudo a mencionada Jeanne Mance, responsável pela assistência e pela administração, desempenharam papel fundamental no desenvolvimento do povoado. Ao redor de 1645, Jeanne Mance construiu o Hôtel-Dieu, com capela dedicada o a São José, fora dos muros da fortificação, onde podia cuidar mais de perto dos necessitados, instituição sujeita, assim, mais abertamente aos riscos de ataques. Ville Marie continuou a ser a mais exposta povoação francesa no Canadá.
Ganhar novos colonizadores na Europa não era tarefa de fácil solução, e difícil era a comunicação da Sociedade Notre-Dame de Montréal com a França. Maisonneuve e Jeanne Mance realizaram várias viagens com esse objetivo. A destruição de Huronia, no fim da década de 40, causou terror na França. Em 1653, Maisonneuve conseguiu arregimentar um grande grupo de colonos, sendo essa data considerada como a de uma segunda fundação de Montréal, o „ano dos 100 homens“.
Marguerite Bourgeoys († 1700) e a capela de Notre-Dame-de-Bon-Secours
Entre as mulheres do grupo, encontrava-se Marguerite Bourgeoys, da Champagne, e que vinha como professora para as crianças que nascessem na povoação e para amparar as grávidas. Ela fundaria a Notre-Dame-de-Bon-Secours e estabeleceria a primeira comunidade de mulheres não enclausuradas e que admitia também indígenas. O culto mariano, dando continuidade, assim, a antiga tradição cultural, manifestou-se, também no Canadá, como estreitamente vinculado sobretudo com o amparo de mulheres, sobretudo na gravidez e no parto, com a formação religiosa feminina e, assim, com a educação.
Devido aos perigos de ataques indígenas na peregrinação à cruz no Mount Royal, Marguerite Bourgeoys pensou em criar um novo local de peregrinação dedicado a Maria, mais próximo ao forte. Segundo alguns, a idéia da construção de uma capela de peregrinação dedicada a Maria datou do ano de 1655; a data tradicional de sua fundação é a de 1657, quando M. de Maisonneuve cedeu a área para a sua construção.
A partir de 1657, a missão de Montréal estava a cargo dos Jesuítas, que intencionavam levantar uma igreja paroquial dedicada a Maria. Os colonos, até então, frequentavam a do forte e, desde 1654, a do Hôtel-Dieu. A aprovação para a construção da capela de romaria foi dada pelo Pe. Claude Pijart SJ (1600-1683), dedicando-a a Notre-Dame-de-Bon-Secours. A pedra fundamental foi lançada pelo Pe. Simon Le Moyne SJ (1604-1655), um dos mais destacados da missão indígena, e que desempenhava o papel de um embaixador da paz no país dos iroqueses.
A dedicação a Notre-Dame-de-Bon-Secours correspondia a antiga devoção de Troyes, cidade de origem de Marguerite Bourgeoys.
Fundamentos paradigmáticos de vida que une contemplação e atividade
Marguerite Bourgeoys inseria-se em movimento destinado a criar um novo tipo de vida religiosa para mulheres. Sem enclausaramento, comum então tanto para as religiosas contemplativas como para as ativas, as religiosas poderiam manter um contato mais estreito com o mundo exterior e, em particular, com os pobres.
Como aprendera com o seu diretor espiritual em Troyes, Pe. Antoine Gendret, havia, na tradição do pensamento teológico, um modêlo de vida religiosa que não exigia o viver encerrado em conventos, e que unia a vida contemplativa à ativa. Essas bases paradigmáticas, que apenas podem ser compreendidas como anti-tipologias de uma estrutura trina de remotas origens, parte de três modêlos: Maria Magdalena, Marta e Maria.
Se Maria Magdalena era modêlo da vida contemplativa, e Santa Marta modêlo da vida ativa, havia um terceiro modêlo, o da Virgem Maria. Nesse modêlo havia a oportunidade para as mulheres de, sem convento ou hábito, exercer e implantar uma vida religiosa nas comunidades, trabalhando e ensinando, como Maria havia feito no início da Igreja.
Marguerite Bourgeoys e Jeanne Mance passaram a procurar outras mulheres que as auxiliassem no trabalho. Em 1658, viajaram à França. Jeanne Mance retornou com três religiosas para a comunidade de La Flèche, e Marguerite Bourgeoys encontrou quatro companheiras. Passaram a ensinar as filhas de colonos franceses e indígenas. Esse grupo deu origem à futura Congrégation de Notre-Dame de Montréal.
Raízes na tradição e procura de uma justificativa para a romaria
Os dados históricos referentes a esse início das atividades de mulheres guiadas pelo modêlo de Maria em Montréal permitem que se perceba o seu enraizamento na tradição popular. Marguerite Bourgeoys o trazia do contexto cultural de Troyes e reencontrara expressões similares de suas concepções de vida nos meios mais simples do porto de Montréal, ali implantadas pelos primeiros navegadores e colonos. Todo o seu esforço em ereção da capela surge, sob essa perspectiva, como uma procura de obter reconhecimento, de „oficializar“ uma forma de vida baseada fundamentalmente na tradição. Compreender-se-ia, assim, a razão pela qual os primeiros sulpicianos chegados a Montréal ao invés de apoiá-la, mandaram suspender a construção de sua capela.
A perseverância de Marguerite Bourgeoys, porém, levou-a a procurar novos caminhos para a concretização de seus intentos. Ainda que os sulpicianos houvesse assumido a direção da ilha e a sua sociedade de Notre-Dame houvesse deixado de existir, o seu ideal permanecia vivo. Assim, em 1670, Marguerite Bourgeoys realizou uma nova viagem à França, à procura de ajuda e de uma imagem milagrosa que justificasse a criação de uma capela de romaria a Maria em Montréal.
Vínculo de Montréal com Montaigu e Maria no „carvalho“
Este intento alcançou Marguerite Bourgeoys junto ao Baron Pierre de Fancamp, que lhe ofereceu uma pequena imagem de Maria com o menino Jesus, com ca. de 15 cm de altura. Essa imagem havia sido esculpida em madeira de Montaigu, um local de peregrinação na Bélgica, e havia sido dada a Pierre de Fancamp pelos barões Denys e Louis le Prêtre, que também pertenciam à Société de Notre-Dame de Montréal. O barão de Fancamp acreditava que a imagem tinha poderes miraculosos, tenho sido êle próprio curado de séria doença. Assim, por caminhos complexos, criava-se um elo entre Montréal e Montaigu.
Montaigu, na província flamenga de Brabante, hoje conhecida como Scherpenheuvel-Zichem, possuia um importante centro de romaria, ali se construindo,no século XVII uma igreja de Nossa Senhora que representa um exemplo significativo do Barroco no contexto amplo dos Países Baixos, hoje parte da Bélgica de língua holandesa (Onze-Lieve-Vrouwe van Scherpenheuven).
Montréal insere-se, assim, no rol das cidades européias que apresentam na sua história cultural elos com o culto mariano de Montaigu, marcado pela imagem de Maria na árvore („Marien-Eiche“). Entre elas, salienta-se a da imagem milagrosa de Luxemburgo. Narrações similares existem para justificar outras capelas, tais como a de Vianden e a do convento de Marienthal.
Segundo a tradição luxemburguesa, assim como em Montaigu a imagem de Maria era presa a uma árvore, também em Luxemburgo a imagem milagrosa havia sido descoberta num orifício de um tronco de árvore.
Quando os jesuítas belgas chegaram no Luxemburgo, em 1602, alunos seus a teriam descoberto numa floresta no cume de elevado monte (Montaigu) e levado para a fortaleza. A imagem, porém, teria duas vezes retornado a seu local de origem, uma prova que Maria desejava oferecer a sua graça fora do burgo fortificado, na escuridão das florestas. Essa imagem de Maria na árvore passou a ser muito visitada pelo povo; construindo-se uma capela provisória, de madeira, ali foi colocada num altar. Posteriormente, a capela foi substituí´da por uma sólida, de pedra.
Vinculos com a época ibérica dos Países Baixos e com o mistério da Imaculada Conceição
Em 1609, a pedra fundamental da igreja levantada para a pequena imagem de Maria com o menino Jesus, com coroa e cetro, foi colocada pessoalmente por Ferdinando e Isabella, então no poder dos Países Baixos. Esses soberanos passaram a ser representados de joelhos perante a imagem. As várias províncias dos Países Baixos receberam pequenas reproduções da imagem de Montaigu. Sobretudo as instituições de ensino obtiveram essas „filhas“ do original.
Os jesuítas de Luxemburgo prenderam também uma imagem de Maria em coluna do seu colégio, simbolizando a coluna, em antiga tradição, a árvore da floresta daqueles que vivem no mundo. Também aqui - como mais tarde em Montréal - a estátua teria misteriosamente desaparecido, sendo substituída, em 1608, por uma outra. A devoção, no Luxemburgo, de Maria Consoladora dos Aflitos corresponde à de Notre-Dame-de-Bon-Secours de Montréal. A grande romaria, de dimensões nacionais, realiza-se a 8 de dezembro, sendo a sua oitava caracterizada por grandes festas. Revela-se, assim, o vínculo estreito entre os mistérios da Imaculada Conceição e o da Assunção, que permite compreender as formas de expressão do culto em Montréal.
Imagem de Montaigu em Montréal
Com a imagem que criava o elo com Montaigu e justificava peregrinações, Marguerite Bourgeoys alcançou a permissão para a continuidade dos trabalhos de construção da capela. Essa permissão foi dada pelo Vicário Geral do bispo de Québec, François Laval de Montmorency (1623-1708). Dava-se, porém, preferência a um outro local para a construção de uma capela dedicada a Nossa Sra. da Assunção. Após vésperas e procissão, a 29 de junho de 1675, implantou-se uma cruz no local, dando-se início aos trabalhos. Dentre as ofertas, salienta-se a de fundição de sino do metal de um velho canhão oferecido por Maisonneuve.
Completada em 1678, ali foi colocada a pequena imagem doada pelo Baron de Fancamp. Logo cresceu o seu significado como imagem que milagrosamente levava à cura de almas e de doenças do corpo.
Em 1669, o Bispo Laval aprovou a instituição das Filles séculières de Ville-Marie, autorizando-as a atuar no ensino na Diocese, que então abrangia toda a Nova França. Além de missões ambulantes, realizaram missões a partir de sua casa de fazenda na Ponte Saint-Charles e entre indígenas na missão da montanha em Montréal (1676). Abriram escolas em várias localidades. Ao lado das religiosas francesas, a comunidade aceitou, em fins do século XVII, duas indígenas e duas das colonias inglesas.
Nova fase de reconhecimento da veneração à „Estrêla do Mar“
A capela de Notre Dame de Bon Secours foi procurada por devotos sobretudo em fases de atribulações, salientando-se aqui as das várias epidemias. Montréal foi assolado por várias epidemias, entre elas da cólera asiática em 1832 e 1834, e, em 1847 de tifo, epidemia que teria sido introduzida por imigrantes vindos da Irlanda.
Esse recrudescimento do culto à Maria na capela às margens do São Lourenço explica a nova fase de reconhecimento oficial da tradição em fase marcada por maior zêlo religioso restaurativo de Montréal. Tendo sido também atingido pela doença, o bispo de Montréal D. Ignace Bourget (1799-1885), representante de um Catolicismo político de afirmação de lealdade a Roma, apoiou a restauração da peregrinação a Notre Dame de Bon Secours. Pensava em oferecer uma imagem para substituir a antiga, roubada em 1831; comissionou a execução de uma pintura votiva e memorial. Em 1848, publicou uma carta pastoral salientando a devoção a Notre Dame de Bon Secours. Autorizou os Sulpicianos a conduzir exercícios religiosos para fomentar os peregrinos.
Nesse ano de 1848, coroou-se solenemente a nova imagem,de bronze, conhecida como „Virgem dourada“, confeccionada em Paris. Já havia uma pintura de Maria na parede externa que dava ao porto. Essa pintura foi substituída por uma grande estátua, de 1,7 metros de altura, sob o título de „Estrêla do Mar“, obra de Charles Dauphin, que seria o artista de conhecido altar da Igreja de Santa Genoveva de Montréal (1863).
A cerimônia de sagração da estátua foi uma das maiores até então realizadas em Montréal e pode ser vista como uma das mais significativas procissões fluviais da história cultural em contextos globais. A 6 de outubro de 1848, acompanhada por um grande número de barcos, a imagem foi trazida pela nave Jacques-Cartier, cercada por uma guarda de honra. Após o canto do Veni Creator, a imagem foi transferida para a nave Saint-Louis. Após manobras impressivas dos navios, e ao som de cantos e de todos os sinos da cidade, a estátua foi levada à capela por marinheiros de diferentes navios. A 30 de outubro, foi alçada ao telhado da capela, voltada ao porto de Montréal.
Com o grande desenvolvimento do porto de Montréal, no século XIX, a capela voltou a ter intensificada a sua vocação tradicional de local de veneração da gente do mar. Tornou-se a capela por excelência de marujos. Testemunhos dessa devoção de marinheiros são as muitas representações de barcos que pendem do teto da igreja. Também aqui revelam-se os elos com antigas tradições européias, em particular francesas, como pode ser observado em capelas de romarias tais como a do litoral da Graça, em Honfleur.
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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (ed.). "Mar e rios nos estudos culturais Canadá/Brasil: tradições imagológicas comuns no exemplo de Notre-Dame-de-Bon-Secours". Revista Brasil-Europa 128/9 (2010:6). www.revista.brasil-europa.eu/128/Mar-nos-estudos-Canada-Brasil.html
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