V.Cassalho: Encontro de Verônicas. Revista BRASIL-EUROPA 128. Bispo, A.A. (Ed.). Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 


Encontro de Verônicas, Joanópolis 2010

A região Entre Serras e Águas é composta pelos municípios paulistas de Atibaia, Piracaia, Bom Jesus dos Perdões, Joanópolis, Nazaré Paulista, Bragança Paulista, Vargem, Jarinu, num raio aproximado de 100km da capital do Estado.  São povoações fundadas por bandeirantes rumo as Minas Gerais, misturados com os aldeamentos de índios Guarús, com o aprisionamento de arredios Tamoios e escravização de Temiminós, mais tarde misturados com negros africanos e muitos colonos europeus, em especial portugueses, italianos e espanhóis. De forte tradição católica romana, a região compõe-se hoje de muitas manifestações folclóricas tais como congadas, dança a São Gonçalo, festividades juninas, bons violeiros e muita festança e rezas que espalham-se pelas cidades e bairros rurais por todo o ano.

Neste contexto, a Quaresma e a Semana Santa sempre tiveram grande força e influência, quer seja pelos rituais e pela religiosidade litúrgica expressa nesse período sagrado da Igreja,  quer seja pelas crendices e tradições populares.

Assim sendo, pude colher na convivência nesta região alguns aspectos interessantes que merecem ser apresentados para o desdobramento de novos estudos e preservação da memória.


Encontro de Verônicas, Joanópolis 2010

Quaresma em de quarenta, o místico número que nos remete aos quarenta dias e quarenta noites do dilúvio, quarenta anos de peregrinação do povo judeu pelo deserto, quarenta dias e noites de Moisés no Monte Sinai, quarenta dias da tentação de Jesus, quarenta dias que Jesus esteve na terra após a ressurreição, quarenta dias da quarentena, quarenta dias da dieta pós-parto. É o período que tem inicio com a quarta-feira de cinzas e se estende até a semana santa, preparando os fiéis para a celebração da morte e ressurreição de Jesus Cristo.

A Quaresma marca o chamado calendário móvel da igreja e é determinado astronomicamente através do cálculo da lua cheia.  Bem, para entendermos isso temos que lembrar que o carnaval é o período de quatro dias que antecede a quarta-feira de cinzas, a qual é definida após o cálculo do Domingo de Páscoa. Este por sua vez é o primeiro domingo após a primeira lua cheia após a entrada do outono no hemisfério sul ou primavera no hemisfério norte (20 de março). A partir do Domingo de Páscoa define-se uma semana antes como Domingo de Ramos, quarenta dias antes do Domingo de Ramos é a quarta feira de cinzas (inicio da quaresma), a terça que antecede a quarta-feira de cinzas é a terça-feira gorda ou Carnaval; sessenta dias depois da Páscoa é o Corpus Christi (portanto sempre numa quinta-feira).  O Domingo de Páscoa equivale a regra de que é o primeiro domingo após o 14º dia do mês lunar de Nisan, ocorrendo entre 22 de março e 25 de abril; todavia, caso caia em 26 de abril, ele volta para uma semana antes, ou seja, dia 19 de abril, ou se ocorrer em 25 de abril ele volta para o dia 18 de abril.

No imaginário do povo é um período temido, de grande respeito e com o qual deve-se tomar alguns cuidados e respeitar vários tabus. Até meados da década de 60 por exemplo o carnaval encerrava-se a meia-noite da terça-feira e nesta hora todos os mascarados nos bailes e ruas deveriam retirar suas máscaras e já se prepararem para o fim do reinado da alegria para amanhecerem na quarta-feira de cinzas e após relembrarem que vieram do pó e para pó voltariam, tomando as cinzas na igreja, desenrolava-se os quarenta dias de contrição. Mesmo as rádios neste período paravam com músicas alegres e ficavam mais nas eruditas e menos barulhentas. Acabavam as festas nos bairros, as danças em louvor a São Gonçalo e os casamentos, os oratórios das casas eram fechados e os santos das igrejas cobertos de panos roxos.

Deveriam evitar as pescarias, as caçadas, entradas nas matas ou perambular por lugares ermos, em especial a noite, afinal neste período as almas estavam mais soltas, o coisa-ruim mais a vontade, os seres encantados mais poderosos e traquinas.

Para piorar a situação, sem saberem explicar, o dia 25 de março era também temido, era como diziam: Um dia grande, um dia de guarda e neste dia tinha uma hora ruim. Portanto, não comiam carne (e até hoje os mais antigos ou religiosos, mesmo a igreja liberando, não comem). Muitos nem sabiam o significado da data, apenas sabiam ser um dia grande, na verdade, exatamente nove meses após esta data é o Natal, então, este dia é o dia da Concepção, o dia em que o anjo Gabriel se apresentou a Maria e ela concebeu pelo Espírito Santo.


Encontro de Verônicas, Joanópolis 2010

No decorrer dos dias da quaresma aconteciam nas quartas e sextas-feiras a Encomedanção das Almas, existente hoje somente em alguns bairros rurais (como em Bom Jesus dos Perdões) e com número muito restrito de pessoas, porém nas décadas de 40 a 60, formavam-se verdadeiras procissões pelas estradas de encomendadores de almas ou cantadores de Alerta.

Reuniam-se pessoas junto a uma pequena igreja ou Santa Cruz, cobertos de branco ou com mortalhas, munidos de violas, matracas, berra-boi, tochas, velas e terços. Assim, iniciava-se o lúgubre cortejo pelas estradas,  todos cabisbaixo, cantando, rezando,  e jamais olhando para trás, onde segundo a tradição seguia-se uma infinidade de almas penadas ou  moradores do purgatório.


Quem encontrasse o cortejo juntava-se a reza ou sem encarar nenhum penitente deixava-o partir pela estrada à fora, tendo à frente uma cruz de madeira guarnecida de tecido branco. Rezavam pelos afogados, acidentados e toda sorte de mortes violentas ou almas sem luz.  Ao chegarem em uma casa cantavam o pé-da-chegada: -”Acorda! Acorda pecadô, pra cantá pra’s alma dos sofredô. Piedade, Sinhô, piedade pra nóis pecadô”.  Terminada a cantoria, o dono da casa acendia os lampiões e oferecia café aos fiéis, juntando-se  ao cortejo, partiam para outra casa. Finalmente na semana santa partiam várias procissões de Encomendadores de diversos bairros e todos se reuniam junto a uma igreja previamente estabelecida e enfileirados pela ordem de chegada dos grupos ajoelhavam-se, cobriam a cabeça, e iluminados palidamente pelo clarão das velas, rezavam e encomendavam as almas para o céu, os trechos da cantoria sempre lembravam “tempo é curto e a morte é certa” e “cuidado com o fogo do inferno”.

Com o decorrer do tempo e maior participação dos padres junto ao bairros rurais e dos fiéis junto a igreja, associado as mudanças de vários hábitos da sociedade, este costume foi e está desaparecendo gradualmente.

Outra data que possui seus tabus é o domingo que antecede ao Domingo de Ramos, chamado de Domingo de Lázaro e dedicado a São Lázaro que segundo a tradição era leproso e protetor de todos os cachorros. Sendo muito comum rezar para São Lázaro quando esses adoecem ou dizer que “este cachorro é de São Lázaro” impedindo assim que venha a ficar louco (adquirir raiva). Neste domingo também não se come carne, é dia de guarda e de grande respeito. Em Joanópolis, na capela de São Lázaro no bairro do Coto (Cachoeira dos Pretos) acontece visitas o dia todo e costumam levar o tradicional frango caipira que seria comido no domingo, levam-no a igreja, vivo para ser leiloado e ficar a renda para a capela, ou levam-no temperado, cozinho pronto para o consumo, porém êle é dado aos vários cachorros que lá se concentram com seus respectivos donos.  Em algumas casas chegam a fazer frango ou carne, porém é dado ao cachorro da casa.

Passado o Domingo de Lázaro chega o domingo de Ramos, abrindo a semana santa, e pela manhã passam centenas de pessoas rumo a procissão e benção dos ramos, geralmente colhido das palmeiras no dia anterior, muitos, mesmo as vezes sob crítica dos padres, trazem galhos de arruda, alecrim, guiné, os quais são usados contra mau-olhado, quebrantos e servem para benzimentos e curas.  Alguns desses, são bentos e plantados neste dia, pois segundo dizem, “pegam” mais fácil e florescem melhor e ficam mais poderosos quando bentos e plantados na semana santa.  Após as bênçãos dos ramos e finda a procissão, são levados para casas, distribuídos entre familiares e amigos. São guardados e servem para acalmar tempestades durante o ano. Bastou formar tempestades as pessoas pegam as chamadas palmas bentas e queimam no fogão a lenha,  no fogão-a-gás e até em pequenos chumaços com isqueiros, fósforos ou na vela benta (benzida na sexta-feira santa) e por vezes segue a este ritual  três punhados de sal em frente a casa, acalmando os ventos, os raios e evitando os granizos.

Finalizando o período vem a quarta-feira santa, data essa em diante que muitos já não comem mais carne, não utilizam martelos ou pregos; na roça só fazem os trabalhos necessários do dia-a-dia, na quinta-feira a noite tem inicio o luto, é uma noite triste, de medo, afinal a partir da meia-noite o coisa-ruim está solto. Nesta noite todos os amaldiçoados que detém o fadário, viram lobisomens, as assombrações vagam pela noite, o diabo está a solta! Cobrem-se os espelhos, não ligam o rádio, no amanhecer era costume não pentear os cabelos, não tomar leite. Alguns benzedores ou mais antigos levantavam antes do sol nascer e colhiam ervas medicinais, porque neste dia estavam mais fortes, temperavam o vinho a ser usado contra os vermes.  O vinho temperado era uma infusão de vinho licoroso com chifre raspado de carneiro, ruibarbo, alho, macela e toda sorte de ervas. Geralmente era ministrado às crianças pela manhã e em jejum, uma colherada já acalmava e derrubava os vermes. Outros ainda levantavam antes do sol nascer e maceravam arruda na pinga e tomavam uma talagada em jejum para tirar todos os males. O decorrer da sexta-feira era algo triste, de jejum e silêncio. Por volta do meio dia era costume defumar a casa, utilizavam a palma benta, palha do alho, pó de café, arrudas, alecrins, e tudo que pudesse gerar fumaça e espantar o mal ou abençoar a casa e as pessoas.

A noite centenas de pessoas concentram-se em frente as igrejas e todos acompanhavam em silêncio a procissão do Senhor Morto, mesmo até os dias de hoje, os padres insistindo em suas pregações que o dia mais importante não é a sexta-feira santa e sim o domingo da ressurreição ou o sábado de aleluia, a procissão do Senhor Morto, reúne muito mais fiéis do que qualquer outra. A Sexta-feira maior continua exercendo seu fascínio e o gosto pela contrição, dor, morte, luto, recolhimento e mística tão disseminado pela Contra-reforma nos séculos XVII e XVIII. Isso fica mais acentuado quando a Verônica desenrola o sudário e canta tristemente no meio do povo em latim  uma adaptação da Lamentação de Jeremias (1:12 - Não vos comove isto, a todos vós que passais pelo caminho? Considerai e vede, se há dor igual a minha, que veio sobre mim).


Encontro de Verônicas, Joanópolis 2010

Mas, o que existe por trás desta personagem vestida de preto, com um pergaminho com a estampa de um rosto ensanguentado no meio da multidão? Quem foi este ser de  luto eterno a vibrar a voz  num pranto constante no alto da escadaria da igreja e nas paradas do cortejo do caixão do Senhor?

Segundo o pesquisador Pe. Dr. José Geraldo de Souza, em “O Plangente Canto da Verônica no Vale do Paraíba”,  (Folclore Guarujá-SP, agosto/1991 nº 16), nos Atos Apócrifos (não autênticos) de Pilatos, designavam um pano por Berônica, Bernice ou Berenice. Destas formas originou-se “Verônica”  derivada de raízes etimológicas grega e latina formando “VERA EICÓN” = Verdadeira imagem, sendo este termo de uso bizantino a partir da Idade Média. Portanto o nome Verônica diz respeito ao tecido, no qual estampou-se o rosto de Cristo e mais tarde passou a designar a personagem que teria enxugado o rosto do mesmo.

              Por volta do século XII, Pedro di Nallio, comenta sobre uma antiga tradição, na qual  Jesus permitiu a impressão de seu rosto em um lenço de linho chamado Sudário (da raiz latina sudorem – suor) no momento do encontro com as piedosas mulheres de Jerusalém (Seguia-o numerosa multidão de povo e também mulheres que batiam no peito e o lamentavam - Lucas 23:27).  Deste linho (verônica ou sudário) foram feitas diversas cópias, como a da Basílica de São Pedro (Roma), da Biblioteca Nacional de Paris, da Igreja de São Bartolomeu dos Armênios (Gênova-Itália) e o da Igreja Del Gesú em Roma, venerado desde os tempos de Gregório XV (1621-1623). Todavia, já existia na Basílica de Roma, uma edícula destinada a relíquia, feita pelo papa João VII (705-707), a qual foi destruída em 1606, sendo erigido outro nicho logo em seguida. A cópia atual na tribuna da cúpula de São Pedro, foi posta em 21 de maio de 1606, estando em uma urna de prata, protegida por lâminas de cristal e véu de seda.  Consta atualmente que o Santuário de Manoppello acolhe a relíquia, conhecida antigamente como «a mãe de todos os ícones», confiada aos Freis Menores Capuchinhos, encontra-se em um pequeno povoado dos Abruzos, nos montes Apeninos, a uns 200 quilômetros de Roma.

De acordo com o cronista Grimaldi, o sudário foi entregue por testamento a Clemente I,  por volta do ano 92 a 101, porém o mesmo estava em Roma desde o ano 34.  Conta-se ainda que o Imperador Tibério foi curado de lepra através desta verônica de Cristo. Atribui-se ao Papa João XXII (1316-1334) o hino “Salve Sancta Facies” (salve santa face) consentindo indulgência a quem o recitasse olhando para ao sudário.

A citação da Verônica está presente não apenas em textos religiosos, o próprio Dante Aligheri  em “A Divina Comédia”  (1307 e 1313) faz citação sobre ela ou ainda Francisco Petrarca (1304-1374) também a cita no “Canzoniere”. O padre José Geraldo de Souza ainda comenta que a Verônica é considerada a Patrona dos Fotógrafos, pois conseguiu moldar em uma chapa (lenço de linho) os traços fisionômicos de Jesus.

A Verônica representa a compaixão, a piedade, a comoção, o amor para com o próximo e se faz presente neste período, sendo de grande importância litúrgica e nas tradições da região ora em estudo. Tanto que vêm sendo realizado todo ano, em cada cidade da região através da Comissão Paulista de Folclore o Encontro de Verônicas, onde as “Verônicas” de varias cidades se reúnem, ouvem-se, trocam experiências e são catalogadas pelo Núcleo de Folclore Pé da Serra  responsável em fortalecer, proteger e difundir esta tradição. O resultado está em que algumas cidades onde haviam acabado o cântico, voltaram a cantar e novas paróquias acabaram por introduzir esta personagem durante a cortejo do Senhor Morto. Valendo citar que existem intérpretes que estão há mais de cinquenta anos neste honroso cargo.





Ó vós omnes, qui transitis per viam,

Attendite et videte,

Si est dolor, similis,

Sicut dolor meus.

Attendite, Attendite,

Si est dolor, similis

Sicut dolor meus.


As Marias Beús (três) respondem heus!,  heus!, heus!, Dominus Salvator Nostri   (extraído da partitura de 2 de abril de 1949 de Claro Henrique de Moraes, em poder de sua filha dona Djanira Cuoco, interpretado por Maria Lucia Alexandre - Verônica por mais de trinta anos).


Além da Verônica, outra curiosidade da nossa Quaresma, diz respeito à Flor do Maracujá. Muito tempo antes dos portugueses chegarem ao Brasil, nossos índios já conheciam a bela flor roxa do maracujá, fruta essa que em tupi significa “alimento dentro da cuia”. Os jesuítas no século XVI foram os que se encantaram pela tal flor e viram nela a Flor da Paixão, catalogando-a e vendo nela os seguintes símbolos que fizeram sensação no continente europeu: interpretaram as pétalas e sépalas do cálice como os apóstolos, outras partes (anteras) as chagas de Cristo ou seja os três estigmas seriam aos três pregos na cruz, e os filamentos a coroa de espinhos, o roxo a cor da quaresma, chegando mesmo a ser enviada ao Papa no século XVII. Na tradição oral contam que a flor era toda branca, porém no momento da crucificação ela estava ao pé da cruz e o sangue de Jesus que nela caiu a tingiu toda de roxo; desabrochou com os símbolos das chagas para toda a eternidade.



O Sábado de Aleluia (Judas)


Enfim chega o Sábado de Alelua. (do hebraico – halleluiah – cântico de alegria),  as cidades de nossa região amanhecem com muitos bonecos  pendurados nas praças, postes, prédios, os quais foram postos na noite anterior, com placas alusivas a antipáticos cidadãos. São feitos de forma bem satírica e crítica, e as vezes até ofensivas. Muitos são recheados de serragem (pó de serra), palhinhas, capim e até mesmo jornais, vestidos com roupas velhas e caracterizados o mais próximo possível de quem se quer criticar.

Após as dez horas em algumas cidades e em outras ainda mais cedo, as crianças, munidas de paus arrancam o Judas e saem com ele arrastando pelas principais ruas da cidade, malhando o boneco e parando em frente a bares e armazéns pedindo balas, que são atiradas pelos comerciantes, evitando assim que tais crianças venham a malhar o Judas dentro de seus comércios, fazendo a maior sujeira. Muitos são malhados e até queimados em frente a casa daquele que foi o “homenageado”.

Antigamente o Judas era queimado na porta dos cemitérios e na frente das igrejas, em Portugal era submetido a julgamento, depois enforcado e queimado.  Apesar da função do Judas ser um ato de vingança contra a morte de Jesus (que sempre pregou o perdão e o amor) há um extravasamento do ódio ou sentimentos reprimidos contra o mal. Na queima do Judas ficava o simbólico da queima de todos os males morais, físicos, emocionais e tantos outros que assolavam e ainda assolam a população. Era um momento de enfrentamento contra as forças do mal, contras as fraquezas humanas. No entanto, este simbolismo da queima do mal, da destruição de alguém ou algo que incorpore o mal, não vem exclusivamente do pós-cristianismo, na verdade, sua origem está ligada aos cultos agrários, quando bonecos ou figuras eram queimados antes ou após as colheitas para afugentar os maus espíritos e as forças maléficas que poderiam esterilizar as plantações. Este ato quase universal tem dentro da magia simpática o uso do boneco cheio de sementes ou folhas representando o deus da vegetação e seu sacrifico junto ao fogo espalhando suas benesses as plantações.

O Judas de hoje está mais centrado à crítica, ao protesto e ao satírico do que a figura traidora da época de Jesus. Em alguns casos fazem o Testamento de Judas, escrevendo em um papel no qual um Judas personalizado como alguém deixa por ocasião de sua morte os mais exóticos e esdrúxulos objetos aos seus amigos, sendo motivo de muita gozação e gargalhadas dos presentes a cerimônia.

Como alguns ostentam tabuletas com nomes de cidadãos e as vezes de forma agressiva a moral da pessoa, muitas prefeituras mandam retirar os bonecos logo ao amanhecer coibindo assim uma das mais antigas tradições do mundo ocidental. Uma saída adotada por algumas administrações é a confecção de um Judas, recheado de balas, sem nomes e dado as crianças para serem estraçalhados, mantendo assim de certa forma este antigo costume.

A noite comemoravam o fim do período de contrição, tristeza e trevas e acontecia o chamado Baile de Aleluia, nos clubes mais tradicionais, depois da meia noite vinham as marchinha e tudo terminava num carnaval e as rádios voltavam a sua normalidade.


O Domingo da Páscoa


Enfim a Páscoa, a Ressurreição do Senhor, todos felizes na missa da manhã e nos preparativos para o almoço de Páscoa. De uns tempos para cá a preocupação central tem sido a troca os Ovos de Páscoa, de chocolate, os quais antigamente eram ovos de galinha, pintados e decorados. O almoço variava o cardápio de acordo com as posses, podendo variar desde o cordeiro nas casas mais ricas ao afogado (cozido de costelas de vaca com farinha de milho) nas casas mais simples.

Colhi um relato ainda este ano de uma moradora do Sul de Minas, a qual lembrava com carinho do sábado de aleluia a noite em sua meninice, onde ela e as pequenas amigas, colhiam flores a tarde e a noite picavam todas, despetalalavam  e espalhavam por todo o chão da casa, para no domingo de Páscoa a casa amanhecer alegre e florida e todos se cumprimentavam desejando Feliz Páscoa.  Quanta diferença do consumismo de hoje! Onde mais vale um ovo de chocolate embrulhado em ricos papéis do que o simbolismo presente em um simples ovo de  galinha decorado e dado com todo o carinho como símbolo de ressurreição e vida, ou a meiguice da menina que espalhava  flores picadas  pela casa.

Bem, mas como nasceram estes ovos de Páscoa?  Afinal quem nasceu primeiro - o ovo ou o Coelho?

Navegando pela Internet defrontei-me com Eostre. Bem, esta história é longa e entra de toca em toca nos milênios obscuros do passado. A Igreja Cristã foi grande em seu poder persuasivo de marketing e para coibir as práticas pagãs, apagar o passado e acabar com o paganismo utilizou a técnica da sobreposição cultural. Assim, sobrepôs a data do nascimento de Cristo no período do nascimento do deus pagão Mitra e outras datas sobre as datas festivas pagãs, que acabaram fundindo-se em cuja mistura sobressaiu a roupagem da cristandade.

Bem, já que entendamos a Páscoa Cristã no período da primavera do hemisfério norte, calculada como o primeiro domingo, após a primeira lua cheia, após o dia 20 de março, data em que volta o sol em sua trajetória após o inverno, trazendo nova luz ao mundo, muitos povos pagãos da Europa destinavam muitas festas nos chamados equinócios (época em que o Sol passa pelo equador, fazendo os dias iguais às noites em todo o mundo).  No final de março acontecia a festa a deusa da mitologia nórdica Eostre ou Ostera  deusa da fertilidade e do renascimento, relacionada a aurora.

O ecos das antigas tradições dizem que Eostre era afeiçoada por crianças e vivia rodeada por elas divertindo-as com sua presença e magias.  Certo dia, sentada com suas crianças, uma ave sentou em suas mãos e a deusa transformou-a em uma Lebre (não em coelho) e deu para as crianças brincarem. Porém depois de muitos dias as crianças notaram que a lebre vivia triste, saudosa de sua forma original, de seu canto e de vôo, pediram então para que Eostre voltasse a lebre em sua forma de pássaro. Eostre tentou de todas as formas e não conseguiu desfazer o encanto, por estarem no inverno ocasião em que seu poder diminuía. Assim, depois que passou o inverno e veio a Primavera e Eostre cheia de seu poder pode finalmente voltar a lebre na forma de pássaro.  O pássaro ficou feliz e botou vários ovos em agradecimento. Em celebração a sua liberdade as crianças pintaram os ovos e o pássaro novamente transformado em lebre e a pedido de Eostre saiu distribuindo os ovos lembrando que não se deve interferir no livre-arbítrio de ninguém. Para eternizar este ato, Eostre entalhou a figura de uma lebre na lua que pode ser vista até hoje. Nasceu deste acontecido o costume de presentearem-se com ovos pintados e relembrarem tal história.

Existem muitas variações desta história e vale lembrar também que ovos já eram pintados ou tingidos com folhas de cebolas e beterrabas e distribuídos na primavera no  Oriente e entre outros povos da antiguidade, com símbolo de nascimento e fertilidade. Muitos ovos após serem assimilados pela cultura cristã viraram obras de arte e jóias preciosas. O chocolate só apareceu nos fins do  século XVIII  e XIX chegando até  nossos dias com seu doce paladar.

Bem, este relato mítico  serve para mostrar tanto o ovo como um símbolo de aparente morte e cheio de vida por dentro e a  lebre como  representante da fertilidade está presente nos mais diversos povos e épocas, sendo que os símbolos adaptam-se de acordo com a necessidade do nosso imaginário ou  mística. Basta lembrar que alguns vêem nas manchas da lua um feto, outros o São Jorge e na época da bondosa Eoste viam a lebre dos ditos ovos que hoje são ovos da  páscoa cristã.


Adendo


Bem para finalizar e aliviar o peso da quaresma e sendo um colecionador de “causos”, não poderia deixar de acrescentar a este texto a Carta das almas, do meu livro Histórias do arco da velha, colhido no município de Joanópolis-SP, alcunhada de a Capital do Lobisomem.



A Carta das almas

Foi justamente numa quarta-feira de quaresma após os Cânticos de Alerta num bairro próximo, que Chico Berto, ouviu dos mais velhos a famosa história das cartas das almas. Era corriqueiro ouvir sobre pessoas que pactuavam com o diabo em troca de riqueza e juventude, porém, um único dia do ano, na Sexta-feira Maior, as Almas consentiam tais privilégios à três pessoas de coragem. Todavia, essas três pessoas deveriam buscar as tais cartas no cemitério e em seguida enfrentar as diabruras das trevas, se persistentes e ilesos receberiam as dádivas pretendidas. Chico Berto, ficou inquieto com a história, dormiu mal a noite e noutro dia arrumou dois bravos companheiros,  Mané Curió e  Tiburtino.

As  23:30h da quinta-feira santa reuniram-se em frente ao cemitério. Muita coragem e um bom litro de pinga nas mãos. Rezaram, beberam, beberam,  rezaram e beberam de novo. Quando o sino deu a primeira badalada, estavam os três em frente ao portão, receosos, bêbados e mudos de medo.

Em seguida, o portão abriu e um garboso jovem de preto convidou-os a entrar. A coragem dos três quase foi embora, de pernas bambas e de braços dados entraram e vislumbraram todos os túmulos enfeitados, iluminados e o moço de preto conduziu-os até  o acendedor de velas. Quando chegaram viram uma criança, como um dos vários anjinhos de pedra que enfeitam os túmulos, era realmente um anjo, que graciosamente entregou um envelope branco a cada um, pegaram e já foram saindo, achando a maior moleza. Mas, foram informados que deveriam comparecer até os fundos da igreja para selar os papéis. Hummmm! Isso não cheirava bem, caminharam desconfiados e deram de cara com uma criatura, meio homem, meio bode preto, bufando, rosnando, soltando fogo pelas ventas. Quase desmaiaram,  Mané Curió, depois de se urinar todo desembestou na carreira, saltando os túmulos como um atleta. Tiburtino foi mais audaz, topou se aproximar, mas quando sentiu uma gelada mão cadavérica tocar-lhe o pescoço gritou para todos os santos e saiu correndo, com uma verdadeira legião de capetinhas atrás de si. Ficou Chico Berto, que sorveu a última dose de pinga, limpou a boca na manga da camisa, pegou a carta colocou em cima da mesa e pediu para que fosse selada. O diabo, pegou a carta, abriu, escreveu algo e mandou um imenso selo colado a cuspe no papel, entregou ao Chico, que saiu de costas, a passos mansos. Atrás de si ouvia-se um tropel, gritos, palavrões, choros e estouros. Assim foi ele saindo, passo a passo, lívido e suado. Quando enfim saiu, pode respirar melhor, trêmulo e cansado, parou junto a uma pedra, tirou o envelope do bolso e viu um papel branco reluzente e escrito em tinta luminosa como um vaga-lume, a seguinte frase: -Se quiser ver seus amigos de volta, devolva esta carta.

Chico ficou louco, esbravejou, blasfemou, xingou, pensou em deixar aqueles dois covardes. Mas, eram seus amigos e fora ele quem os metera nessa encrenca, pensou alguns minutos nas riquezas, juventude, enfim.... Desconsolado, deu meia volta e correu para o portão, lá encontrou os dois do lado de dentro e um sarcástico rapaz de preto, pediu a carta de volta. Resistiu, mas viu um abismo se abrindo e o bode vindo, entregou rápido o papel, o portão se abriu e saíram correndo. Pelo caminho, Chico Berto veio batendo nos amigos e insultando-os com todos os palavrões possíveis, até que chamou atenção o suficiente para que a policia chegasse e prendessem os três por embriagues e baderna. Ao relatar o fato a policia, tomou uma surra e uma semana de cadeia por desacato.

Na venda do nhô Pedro,  Chico e os amigos contavam o caso  com veemência, todos achavam que era mais uma bebedeira de três aventureiros.


Bibliografia

Cassalho, Valter. Histórias do Arco da Velha. Ed. Vida & Consciência, 2004.

Kuryluk, Ewa. Santa Verônica e o Sudário: História, simbolismo, lendas e estrutura da imagem verdadeira. Ed. IBRASA, 1993.

S.J. Terra, J.E.M. "Bíblia e religiosidade popular". Revista de Cultura Biblica (1984), 29-30.

Souza, José Geraldo. "O Plangente Canto de Verônica no Vale do Paraíba". Folclore (Guarujá/SP), 16(1991), 5-7; 22(1997), 5-8; 23(1998), 5-8; 24(1999), 5-7.





  1. *O autor formou-se, em 1994, em História pela Faculdade de Ciências e Letras da Fundação de Ensino Superior de Bragança Paulista.  Durante os módulos científicos da Pós Graduação  (lato-sensu) na mesma faculdade desenvolveu a Pesquisa intitulada "Picando fumo", um estudo sobre a formação e costumes caipiras na região bragantina, publicada no Volume 94, nº 4/2000 da revista Cultura Vozes. Através de suas resenhas e citações, a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo aprovou a criação do dia da cultura caipira no calendário de efemérides do Estado, a ser comemorado todo dia 05 de agosto. Atual presidente do Conselho Municipal de Turismo em Joanópolis. Membro da Associação Brasileira de Folclore e Secretário da Comissão Paulista de Folclore. Autor do livro Histórias do Arco da Velha dedicado as assombrações e mitos na região e do DVD “Bate palma bate pé pra São Gonçalo com muita fé” e do livro “São Gonçalo um santo violeiro ou um violeiro santo?” (2009/2010). Em 2008 foi agraciado com a Comenda Governador Pedro de Toledo, pelos relevantes serviços prestados a preservação histórica e divulgação da Revolução Constitucionalista de 1932.




Indicação bibliográfica para citações e referências:


Cassalho, Valter. "VII Encontro de Verônicas: A Quaresma na região Entre Serras e Águas e o Canto da Verônica". Revista Brasil-Europa 128/28 (2010:6). www.revista.brasil-europa.eu/128/Encontro-de-Veronicas.html






 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 128/28 (2010:6)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2684




VII Encontro de Verônicas, Joanópolis 2010
A Quaresma na região Entre Serras e Águas e o Canto da Verônica


 












Fotos: Reinaldo Meneguim e Valter Cassalho,
20 de março de 2010



 


Valter Cassalho*

Comissão Paulista de Folclore



Projeto


O cântico triste da personagem Verônica na Sexta-feira da Paixão vem se extinguindo aos poucos, principalmente no Vale do Paraíba e na região Bragantina, onde criou forças e atravessou séculos de existência. Cantando em latim o verseto 12 de Lamentações de Jeremias (Lamentações l2:1), esta curiosa personagem, vestida de preto, desenrola o sudário com o rosto de Jesus em frente ao  esquife do Senhor na Sexta-feira da Paixão.  Seu curto e lamentoso cântico somente pode ser apreciado uma vez ao ano e sua intérprete orgulha-se de poder faze-lo, chegando a exercer por décadas este honroso ofício.


De acordo com o pesquisador Dr. José Geraldo de Souza,  em seu estudo intitulado „O Plangente Canto da Verônica no Vale do Paraíba",  nos Atos Apócrifos de Pilatos, designava-se este pano por Berônica, Bernice ou Berenice. Destas formas originou-se „Verônica"  derivada de raízes etimológicas grega e latina, formando „VERA EICÓN" = Verdadeira imagem, sendo este termo de uso bizantino a partir da Idade Média. Portanto, o nome Verônica diz respeito ao tecido, no qual estampou-se o rosto de Cristo e mais tarde passou a designar a personagem que teria enxugado o rosto do mesmo, estando imortalizada na sexta estação dos quadros da via-sacra de todo o mundo.  Segundo o que se supõe, este cântico em latim, como tradicional no Vale do Paraíba, não pertenceria  Vulgata, podendo ser derivado do latim comum do século XII.


Objetivos

1)    Resgatar, catalogar,  incentivar e divulgar esta antiga tradição no Estado de São Paulo;

2)    possibilitar o encontro  dessas intérpretes, uma vez que nunca tiveram oportunidade de ouvirem-se, já que cada uma canta no mesmo dia e horário em cidades diferentes;

3)    permitir a troca de informações entre as intérpretes e os pesquisadores do assunto;

4)    comparar os cantos, melodias e letras para desenvolvimento de novos estudos

5)    criar um encontro sui-generis  reunindo música, história e tradição.


Estratégias

a)     Convite a antigas e atuais Verônicas da região Bragantina.

b)     Convite a Verônicas tradicionais na cidade de São Paulo.

c)     Palestra com o pesquisador Pe. Dr. José Geraldo de Souza (+).

d)     Presença de musicólogos e folcloristas.

e)     Interpretações simultâneas das Verônicas convidadas, devidamente paramentadas.

f)      Mesa redonda sobre  a tradição das Verônicas.

g)     Fotografias através do Clube da Fotografia de Atibaia, das indumentárias, sudários e personagens, para futura exposição em São Paulo.


Local do Primeiro Encontro: Igreja do Rosário, na cidade de Piracaia, ponto de encontro entre o Vale do Paraíba e região bragantina. Considerada "cidade dos papas", por ser a Igreja Matriz de Santo Antonio a única do país com todos os papas pintados em seu teto.


A Igreja do Rosário data do final do século XIX, tendo sido restaurada e possuindo dois púlpitos, revestimento em madeira e boa acústica.  Além disso, é em Piracaia que acontece uma das mais belas encenações da Paixão de Cristo na região. Também nesta cidade aconteceu a primeira reunião para formação do núcleo micro-regional de Folclore Pé da Mantiqueira, sendo este encontro o primeiro evento deste núcleo.


Data do Primeiro Encontro: 24 de agosto de 2002

Idealizador e palestrante: Valter Cassalho

Coordenação: Valter Cassalho, Lilian Vogel e Neide Gomes

Apoios: Comissão Paulista de Folclore e Núcleo de Folclore Pé da Serra




Desde 2002, realizaram-se vários Encontros de Verônicas na região Entre Serras e Águas do Estado de São Paulo: Piracaia (1), Atibaia (2), Jarinu (1), Bom Jesus dos Perdões(1), Itatiba(1) e Joanópolis. O próximo Encontro será em Nazaré Paulista.


Relação das Verônicas participantes do VII Encontro, Joanópolis, 2010:


Francisca  Simões Petrucci, Atibaia

Maria  Aparecida Ferreira dos Santos, Jarinú

Maria  Lucia Aparecida Machado Chinaglia, Piracaia

Rita de Almeida Pinto dos Santos, Piracaia

Lucia  Amélia Cuoco Cardoso, Joanópolis

Maria  Aparecida Machado José, Atibaia

Fátima  Maria Lanfredi Rosa, Caçapava

Filomena  Maria Lanfredi Mendes, Caçapava

Marina  Mira, São José dos Campos

Fernanda Alves, Joanópolis

Lucimara  S. Pereira Gonçalves, Joanópoplis

Clarice P. do Lago Camargo, Joanópolis

Rosa  Melchior - Maria Beú, Atibaia

Maria  Cristina Anselmo Paladini - Maria Beú, Itatiba

Claudia  Fernanda Camargo Tafarel - Maria Beú, Itatiba

Edina  Aparecida Vicentini Nogueira - Maria Beú, Itatiba

 

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