Espiritualidade em Schumann e Hermenêutica. Revista BRASIL-EUROPA 127/17. Bispo, A.A. (Ed.). Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

No âmbito dos trabalhos desenvolvidos pelo Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa pela passagem dos 200 anos de nascimento de Robert Schumann, realizou-se uma sessão de reflexões e meditações em Wechselburg, localidade marcada por dois monumentos da arquitetura religiosa da Saxônia próximos entre si, uma igreja protestante e outra católica, a do convento beneditino de Wechselburg.


A atmosfera desses locais pareceu ser particularmente apropriada para o tratamento de questões relacionadas com a religiosidade ou espiritualidade em Schumann e em suas obras.


Essas questões, que vêm despertando atenções no contexto das comemorações do bicentenário, são de particular relevância para os estudos relativos à recepção e ao significado das obras de Schumann no Brasil. Devido ao fato de ter composto quase que exclusivamente música não destinada ao culto, voltando-se apenas no fim de sua vida a formas sacro-musicais, a questão das relações entre Schumann e a religião apresenta-se à primeira vista como distante e sem maior significado.


O fato de ser um compositor de formação protestante e ter uma obra preponderantemente "profana", pode explicar uma recepção relativamente tardia de sua obra em países de formação católica, como o Brasil, ou o seu cultivo sobretudo em círculos de imigração alemã e marcados por tradição protestante.


A questão das relações de Schumann com a religião tem sido tratada a partir de notícias que indicam ter êle sofrido de mêdo ou pavores, de uma profundo anelo interior expresso muitas vezes em termos de aspirações e saudades, o que poderia ser interpretado como aspiração a redenção. Sabe-se, também, que utilizava-se de fórmulas oracionais em momentos de desespêro, sobretudo no fim trágico de sua vida.


Essas tentativas, porém, esbarram com problemas inerentes a interpretações psicológicas de personalidades históricas realizadas com base em dados documentais. Um outro caminho, mais promissor, se abre através de um direcionamento  antes teórico-cultural da pesquisa e levando em consideração mais cuidadosa o desenvolvimento do pensamento religioso e os movimentos espirituais de sua época, tanto no Catolicismo como no Protestantismo.


Primeiro local de reflexões: convento de Wechselburg (Zschillen)



Esse convento, com a sua basílica, é hoje habitado por monges vindos da Abadia Ettal, que refundaram-no a 28 de agosto de 1993. Tornou-se, assim um dos centros da intensificação religiosa do Leste da Alemanha, após o término da República Democrática Alemã. Visitado por peregrinos, o convento passou a abrigar um centro dedicado em especial à juventude, com intensa programação espiritual e cultural.


Remontando a uma fundação conventual de Dedo de Rochlitz-Groitzsch, - com o seu sepulcro e o de sua mulher Mechthild na igreja, consagrada ao redor de 1168, o convento seguia a regra de Santo Agostinho, sendo povoado por monges vindos de Petersberg, da região de Halle.


Em 1196, o convento foi aprovado pelo Papa Celestino III (1191-1198). Em 1210, extinguiu-se a estirpe dos seus patronos, na linha masculina.


Sob o conde Heinrich "der Erlauchte", o convento dos Agostinhos foi extinto e entregue, em 1278, à Ordem Alemã de Cavaleiros. Em 1543, o convento foi secularizado pelo duque Moritz da Saxônia, sendo entregue à família de Schönburg, em troca de algumas localidades que atualmente se situam na assim-chamada "Suíça saxônica". Essa troca ou câmbio foi a origem da atual denominação de Wechselburg, ou seja,o „burgo de troca“.


Durante a Guerra dos 30 anos, os seus proprietários construiram um palácio barroco sobre as bases do convento, sendo que a basílica passou a ser usada como igreja evangélica palacial. Com a conversão dos seus proprietários ao Catolicismo, em 1869, a igreja voltou a ser católica.


Conteúdo espiritual da linguagem visual na Idade Média e conteúdo poético em concepções românticas


O convento, com a igreja, é um dos edifícios românicos mais significativos do patrimônio arquitetônico centro-europeu da região ao Leste do rio Saale. Construido com pedra de lava do monte de Rochlitz, impõe-se pela tonalidade de seus muros.


A basílica, com traço em forma de cruz, com três naves e colunada, apresenta uma parede divisória entre o corpo da nave e o coro. Este doxale, pela sua configuração plástica e pelo programa teológico das figuras, representa uma obra de extraordinária relevância para a história da arte do século XIII.


A basílica de Wechselburg, na sua austeridade, e para além do programa teológico representado pelas figuras esculpidas, dirige a atenção à ornamentação das colunas, de capitéis e de molduras do doxale.

O observador constata aqui que motivos profanos na sua aparência, vegetais ou geométricos, atuam como sinais que dirigem a atenção para um sentido outro, espiritual. Aquele que contempla é levado a procurar, a tentar decifrar um significado intendido, um todo espiritual e que lhe surge como enigmático.


Que essa linguagem se insere num todo de concepção simbólica isso o indica a representação de animais no tímpano do portal de entrada.


Aquele que contempla, procura ler, assim, um sentido por detrás de figurações que, aparentemente, não possuem vínculos explícitos com a religião.



O observador constata, assim, que esse procedimento hermenêutico apresenta similaridades com aquele que, à época do Romantismo do século XIX, esperava-se do ouvinte e mesmo da obra de arte, que deveria ser criada como invólucro ou aparência exterior de um conteúdo espiritual ou imaterial, então compreendido como poético.


Segundo local de reflexões: igreja protestante de São Otto, missionário dos Pomeranos


Essa igreja é supra-regionalmente conhecida sobretudo pelo seu órgão de J. J. Schramm, de 1780/81, discípulo de Gottfried Silbermann (1683-1753), um dos mais famosos construtores de órgão da Saxônia. Possui 1679 tubos de estanho e 202 de madeira.



Entretanto, também sob o ponto de vista arquitetônico e histórico-cultural, a igreja protestante de São Otto é um monumento de importância da Saxônia. É a igreja que mais se insere no conjunto urbano da pequena cidade, uma vez que o convento beneditino é dela separado por muralhas.


As origens dessa igreja estão estreitamente relacionadas com o nome de São Otto e com a história da colonização e da cristianização do centro e do leste da Alemanha.


São Otto, bispo de Bamberg, que atuou como missionário dos Pomeranos, foi santificado em 1189. A sua veneração no local remonta à vinda de colonos da sua região, a Francônia. Essa colonização, incentivada pelo  conde Dedo de Wettin, devia possibilitar a construção de um convento e de uma igreja como local de sepultamento para a sua família. A igreja foi construida em 1168.



Conteúdo espiritual da linguagem alegórica no Protestantismo


No início do século XVII, a antiga igreja de São Otto foi destruída por um incêndio, apenas restando os muros externos. Apenas em 1730 deu-se início à atual igreja barroca, com o apoio do conde Franz Heinrich von Schönburg, tendo sido concluída em 1737.


Trata-se de um edifício marcado pelo Barroco, porém adaptado às concepções protestantes. A igreja apresenta a forma de ampla sala.



O altar, com uma grande imagem de Jesus Crucificado, é ladeado por três figuras alegóricas, representando a Fé, a Esperança e a Caridade. Referências alegóricas são encontradas em outras partes do edifício, profusamente ornamentado. A decoração do teto é particularmente notável nas frisas dos condes de Schönburg. No teto da nave central vê-se o olho de Deus, - o triângulo do qual irradia raios - e o monograma de Cristo.



Uma particular atenção merecem os dizeres pintados nas paredes da Igreja e as suas relações com as respectivas funções dos espaços. Sobre o altar, lê-se, em hebraico, Jahwe, e sobre o órgão, Halleluja. Textos e expressões elucidam ou especificam imagens; assim, sobre a figura do amor, lê-se o texto Mihi omnis Iesus. Duas inscrições surgem como de particular relevância para a compreensão de sentido da linguagem visual. Na tribuna do órgão, lê-se lauda a lauda, indicando que tudo o que tem odem deve louvar ao Senhor. Também pode-se ler virtude artificis, no pedido a Deus para abrir a boca daquele que ora para o louvor.



Diferenças de concepções quanto à linguagem visual e seu significado na discussão


O emprêgo das alegorias em imagens e em palavras, assim como a especificação verbal de significados representados visualmente demonstram diferenças de concepções em confrontos com a próxima igreja católica do convento medieval de Wechselburg.


Embora de cunho barroco, aqui como „estilo do tempo“, a linguagem visual da igreja de São Otto manifesta concepções reformadas. Trata-se não de um sentido oculto, a ser percebido ou desvendado por detrás de figurações, geométricas, vegetais ou animais, mas sim de um sentido explícito, a ser lido literalmente. Mesmo alegorias são especificadas com texto, evitando-se assim associações ou conotações mais amplas ou não intendidas teologicamente.


Percebe-se, assim, uma repercussão na própria criação artística de diferenças confessionais de compreensão e leitura dos textos bíblicos. A linguagem visual da igreja protestante de São Otto, com as suas referências musicais, apresenta um cunho de exortação ao louvor no espírito salmódico daquele que as lê. A musicalidade da linguagem visual da igreja medieval de Wechselburg é antes inerente à própria pedra que louva, e esse conteúdo deve ser captado, percebido, ainda que de forma indefinível, por aquele que contempla.


A confronto dessas duas igrejas, tão próximas, dirigem a atenção à existência de princípios distintos de concepções de leitura e de suas expressões na criação artística. Poder-se-ia talvez até mesmo ousar a inversão de perspectivas, não se partindo da diferença confessional, mas sim de diferentes compreensões de significado de leituras e percepção de sentidos.


Sob esse aspecto, pode-se estudar sob nova luz as concepções estéticas relativas ao conteúdo poético de Schumann e seu círculo. A rejeição da alegoria e a expectativa de se procurar perceber um sentido recôndito por detrás da realidade acústico-sonora não correspondem a uma tradição de compreensão literal de texto. Refletem antes anelos do Romantismo marcados por uma sensiblização pelo universo do passado medieval, por uma outra cultura de leitura, fundamentada na acepção de uma dimensão da realidade não perceptível pelos sentidos mas intuível, ainda que de forma secularizada e vaga.



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Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A.."Da religião e espiritualidade em Schumann e hermenêutica nas concepções e na análise". Revista Brasil-Europa 127/17 (2010:5). www.revista.brasil-europa.eu/127/Wechselburg-Hermeneutica.html



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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 127/17 (2010:5)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2650





Da religião e espiritualidade em Schumann e hermenêutica nas concepções e na análise

No bicentenário de Robert Schumann. Ciclo de estudos Saxônia-Brasil em cidades entre Zwickau e Leipzig - Vale do Mulde. Wechselburg
Pelos 25 anos do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa
(
Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes, ISMPS e.V.)

 














  1. Fotos A.A.Bispo 2010©Arquivo A.B.E.


 

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