Projeções do Orientalismo no Sudeste da Ásia. Revista BRASIL-EUROPA 127/4.  Bispo, A.A. (Ed.).Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

O desenvolvimento de Estudos Culturais em contextos internacionais sob particular focalização dos Direitos Humanos exige a análise de concepções e normas envolvidas e suas transformações no decorrer da história.


O reconhecimento e a análise desses fundamentos normativos exigem, por sua vez, o estudo de respectivos edifícios imagológicos, uma vez que foram transmitidos nem sempre de forma verbal, explícita, literal e conscientemente expressa, mas sim através de imagens.


Considerá-las adequadamente no sentido de compreender e revelar as suas normas condutoras apesar de todas as atualizações históricas nas suas expressões representa conditio sine qua non para o entendimento de situações no presente e para intentos de mudanças de seus aspectos reconhecidos como questionáveis.


Re-significações e mudanças de princípios normativos inerentes a edifícios conceituais predominantemente transmitidos através de imagens pressupõem o seu estudo diferenciado.


Singapura, internacionalmente conhecida pelo seu multiculturalismo, pela diversidade de sua constituição ética, pela sua pluralidade religiosa, e, ao mesmo tempo, pela sua inserção privilegiada em processos globalizadores e pelos problemas frequentemente apontados relativos a Direitos Humanos, apresenta situações que a colocam em situação privilegiada para o desenvolvimento desses estudos.


Esse significado de Singapura para os Estudos Culturais revela-se, na sua abrangência e profundidade, sobretudo a partir de uma perspectiva portuguesa e brasileira. Reciprocamente, o seu estudo pode contribuir à elucidação de potenciais riscos inerentes a princípios vigentes no patrimônio imagológico de Brasil e de outros países marcados pela ação lusitana e ibérica em geral.


Foram os portugueses que desencadearam processos de encontros entre o Ocidente e o Sudeste da Ásia com a tomada de Málaca, em 1511, confrontando-se com uma situação de poderio islâmico na região, ou seja, com uma configuração de poder que correspondia àquela de outras regiões do globo com as quais Portugal estava conflitantemente envolvido. A luta contra o Islão, a sua expansão no Ocidente e a Reconquista das áreas conquistadas haviam marcado profundamente a história e a identidade das nações ibéricas, e tinha o seu prosseguimento, nos mares e nas terras extra-européias alcançadas à época das grandes navegações.




Locais de reflexão:
1) Mesquita do sultão
Masjid Sultan



Das numerosas (71) mesquitas de Singapura, escolheram-se duas para o desenvolvimento das reflexões. Ambas testemunham diferentes aspectos do desenvolvimento histórico-cultural da população muçulmana de Singapura nos seus elos com a história colonial sob a égide dos inglêses.


A primeira, a assim-chamada „mesquita do sultão“, documenta, assim como o palácio (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Afonso-de-Albuquerque.html), a continuidade com o passado malaio-muçulmano, testemunhando, porém, as transformações por que passou essa cultura com o novo desenvolvimento colonial.


Ao transferir a sua Côrte a Singapura, Hussein Mohamed Sha, em 1824, cuidou que logo se construísse uma mesquita, obra realizada entre 1824 e 1826. Essa mesquita tornou-se o centro da população muçulmana, símbolo religioso da autoridade malaio-islâmica da região.


O desenvolvimento extraordinário de Singapura sob a gestão britânica, que levou a que ali se estabelecessem comerciantes provenientes de várias partes do mundo islâmico, fêz com que a cidade se transformasse no decorrer do século XIX num dos mais importantes centros da cultura islâmica do Sudeste Asiático.


Projeção de concepções do Oriente e internalização


Em 1924, pela passagem do centenário de fundação da mesquita, e considerando-se o seu significado para Singapura e para o Islão em geral, decidiu-se construir um novo edifício, de proporções monumentais e mais representativo do ponto de vista arquitetônico.


A construção, realizada segundo projetos do arquiteto Denis Santry, da firma Swan e McLaren, autor do projeto do Victoria Memorial Hall, inspirou-se, porém, não na tradição malaia, mas, nos seus minaretes, parapeitos e grades sobretudo em modêlos conhecidos da costa da Índia.


A mesquita do sultão representa, assim, um projeto criado a partir de uma visão do Oriente. Insere-se no espírito romântico da valorização da história e das tradições dos povos do Historismo inglês. É nesse contexto algo paradoxal que se explica a fascinação que essa mesquita exerce na sua aparência de exotismo oriental de „mil e uma noites“.


Desde 1975 considerada como monumento nacional, a mesquita Masjid Sultan de Singapura é o principal centro de orações dos muçulmanos da cidade e um dos mais relevantes centros culturais do Islão no Sudeste Asiático, promovendo cursos e conferências.



Locais de reflexão:
2) mesquita
Jamae (Chulia)



O segundo local de reflexões escolhido, a mesquita Jamae (Chulia), dirigiu a atenção a outro aspecto da história cultural islâmica de Singapura. Já a sua localização, na Telok Ayer Street, no bairro chinês (Chinatown), onde se encontram também as mesquitas Nagore Durgha (Shahul Hamid Durgha) e Al-Abrar, indicam a sua inserção na história imigratória causada pelo desenvolvimento de Singapura como posto comercial no início da década de 20 do século XIX. Se a mesquita do sultão documenta elos de continuidade com o passado malaio-islâmico, a mesquita Jamae testemunha elos com a Índia islâmica através da ação colonial inglêsa.


A mesquita Jamae, desde 1974 considerada como monumento nacional, é, hoje, um dos emblemas de Singapura. O calendário festivo da cidade é marcado por uma de suas principais festas, aquela realizada no décimo dia - Haria Raya Haji - do mês Dhul-Hijjah, o último do calendário lunar moametano, quando os muçulmanos celebram o término da peregrinação anual à Meca.


A mesquita Jamae adquire um especial significado cultural por representar uma nova fase da história do Islão no Sudeste asiático, marcada pela vinda de muçulmanos da Índia à Singapura. Nesses primeiros anos da ação inglêsa, para ali se transferiram numerosos Chulias da costa do Coromandel no sul da Índia, tamilos muçulmanos da dinastia Chola de Tamil Nadu, e que atuaram sobretudo como comerciantes e e agentes cambiais em Singapura.


Esses indianos islâmicos construiram a mesquita Jamae em 1826, ou seja, à mesma época em que se edificava a mesquita do sultão. Essa origem do sul da Índia manifesta-se na decoração do portal de entrada da mesquita. A sua arquitetura revela, porém, a época de sua ereção em circunstâncias coloniais, sobretudo em traços neoclássicos que indicam a influência da obra do arquiteto George Coleman.


Diferenças nas relações do Ocidente com o Islão: inglêses e portugueses


As reflexões que suscitam o palácio malaio, a mesquita do sultão e a mesquita Jamae sul-indiana em Singapura dirigem a atenção às diferenças entre o desenvolvimento derivado da ação inglêsa e aquele de duzentos anos atrás suscitado pelos portugueses em Málaca. Embora tanto portugueses quanto inglêses tenham sido guiados por interesses econômicos e estratégico-comerciais, os seus tratos com os detentores de poder islâmicos da região foram diferentes e levaram a resultados totalmente diversos.


O procedimento dos inglêses, sob Thomas Stamford B. Raffles (1781-1826), para além de seu pragmatismo no salientar interesses comuns, alcançou sucessos sobretudo por meios diplomáticos. O procedimento dos inglêses levou à permissão de assentamento e ao desencademento de uma dinâmica de interações mútuas que culminaram com a nomeação de um sultão para Singapura pela própria influência dos inglêses.


A análise de processos culturais em Singapura depara-se aqui com a singular situação de que aqueles que cederam a área passaram a receber nela local de acomodação, continuando a ser honrados na sua posição, subordinando-se, porém, ao poder colonial estabelecido. Não se deu uma integração de europeus no universo malaio-islâmico, mas, ao contrário, foram os muçulmanos locais que passaram a se orientar segundo expressões culturais do Ocidente, como o demonstram traços neo-clássicos de construções.


Com a vinda de imigrantes de outras regiões da Companhia Britânica da Índia Oriental, a ação britânica levou ao aumento da população islâmica local e à transformação de sua configuração cultural e étnica. Paradoxalmente, foi justamente sob a égide colonial de europeus que uma cidade de fundação recente do Sudeste Asiático tornou-se um dos principais centros do comércio, da cultura e da religião do mundo islâmico.


A égide britânica determinou também a perspectiva sob a qual esse processo foi compreendido e expresso. Levou à criação de uma imagem da cultura islâmica marcada por visões românticas do Oriente, ainda que inseridas em contextos indo-malaios.


O procedimento dos portugueses, sob Afonso de Albuquerque, no início do século XVI, foi marcado, ao contrário, por ação diplomática de funestas consequências. Levou à eclosão das beligerâncias, ao combate e à conquista militar. A questão que aqui se coloca é se o seu procedimento foi resultado de infeliz desconhecimento cultural e da hipersensibilidade ou obscuridade muçulmana, ou se foi premeditado, representando uma afronta mascarada em gestos diplomáticos. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Afonso-de-Albuquerque.html)



Aspectos sumários da discussão


Tem-se salientado que Afonso de Albuquerque, nas regiões conquistadas, respeitou os costumes e expressões culturais das populações locais, desde que não fossem contrários a princípios cristãos. Proibindo a prática do queimamento de viúvas na Índia, agiu de acordo com critérios do Direito Natural que podem, no caso, ser considerados como passo significativo numa história dos Direitos Humanos nas relações entre a Europa e o mundo extra-europeu.


Também tem-se salientado que Thomas Stamford B. Raffles, no século XIX, respeitou costumes e religiões dos diferentes grupos da população, lançando as bases para a convivência multicultural que passou a caracterizar Singapura.


Apesar da similaridade que aqui se possa constatar, inúmeros são os aspectos que diferenciam os métodos inglêses daqueles dos portugueses do passado. Estes favoreceram mais casamentos mixtos, criando novos grupos populacionais e de liderança vinculados por lealdade de parentesco tanto ao meio original quanto aos europeus.A identidade cristã garantia a perpetuação da imagem condutora da Reconquista, da luta entre „cristãos e mouros“.


Os inglêses, diferentemente, utilizaram-se de potentados islâmicos, ganharam-nos através de promessas de vantagens e honrarias, interveniram em políticas internas, formando elites dependentes, dirigidas em atitude de paternalismo condescente e benévolo. Em linhas toscas, poder-se-ia dizer que foi sobretudo no relacionamento com a cultura islâmica que o procedimento inglês mais se distinguiu do português.


Várias são as tentativas de elucidação para essa diferença de procedimento. Em primeiro lugar, naturalmente, deve-se considerar a distância histórica entre a  época da chegada dos portugueses em Málaca e aquela da fundação de Singapura. O portugueses ainda estavam por demais inseridos na história da Reconquista ibérica, e que se prolongava em ações na área do Mediterrâneo, em particular no Norte do África.


O combate de cristãos e mouros, porém, não representava apenas resultado de um desenvolvimento histórico, resquício e extensão da Reconquista, mas correspondia a imagens de antiga tradição, integradas em edifício de concepções de fundamentação bíblica. Também os inglêses  guiavam-se por essas imagens, da mesma forma parte integrante de seu patrimônio religioso-cultural, interpretaram-nas porém de forma diversa no no contexto histórico-cultural da Restauração.


A revalorização romântica do passado medieval, o fascínio pelo Oriente, pelo exótico e pelas tradições populares levou a uma transformação de sentidos da imagem que havia tido uma de suas concretizações históricas na da luta entre os cristãos e mouros.


Essa revalorização sentimental do passado, das tradições mouriscas e o fascínio orientalista do século XIX marcaram um Orientalismo distinto das imagens do Oriente da Era das Descobertas. Esse Orientalismo romântico teve consequências em regiões sob influência colonial, como o demonstram obras construídas por arquitetos europeus em contextos de fundamentação islâmica.


Constata-se a tendência de se ver apenas em monumentos e edifícios de evidente inspiração ocidental, sobretudo naqueles de traços estilísticos neo-clássicos e neo-góticos, a influência da Europa no Sudeste da Ásia. Esquece-se, muitas vezes, que também edifícios que surgem como não-europeus aos olhos dos ocidentais também foram resultados de projeções e de visões do Oriente. O Exotismo orientalista ou o Orientalismo exótico não apenas deixou traços na cultura européia do século XIX, mas sim também agiu em culturas do próprio Oriente.


É tarefa dos estudos culturais dar prosseguimento a essa análise diferenciadora de concepções do Oriente e do Exótico em geral, de suas difusões e, mesmo internalizações.



Todos os direitos relativos a texto e fotos reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.
Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A.(ed.). "Islão no Sudeste da Ásia e imagens européías do Oriente. Papel do sultão de Singapura na diplomacia cultural inglês em contejo com a portuguesa em Málaca". Revista Brasil-Europa 127/4 (2010:5). www.revista.brasil-europa.eu/127/Orientalismo-colonial.html



  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 127/4 (2010:5)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2637





Islão no Sudeste da Ásia e imagens européias do Oriente
Papel do sultão de Singapura na diplomacia cultural inglêsa
em cotejo com a portuguesa em Málaca

Ciclo „Direitos Humanos, Estudos Culturais e História Diplomático-Cultural“ da A.B.E.
Preparatórias à passagem dos 500 anos da tomada de Goa e de Málaca pelos portugueses

Asian Civilisations Museum, National Library e Majid Sultan
25 anos de fundação alemã do Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.

 




  1. Singapura
    Fotos A.A.Bispo 2010
    ©Arquivo A.B.E.

 

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