Saúde mental de Schumann e revisão de imagens. Revista BRASIL-EUROPA 127/15. Bispo, A.A. (Ed.). Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

Pela passagem dos 200 anos de nascimento de Robert Schumann, o Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS), que comemora os seus 25 anos de fundação alemã, decidiu dedicar uma de suas sessões a reflexões sobre novos aspectos que veem sendo salientados por médicos relativamente à doença mental de um dos maiores compositores do Romantismo alemão e que despertam debates polêmicos no seu ano comemorativo.


Essa questão poderia parecer à primeira vista sem maior relevância para os objetivos do Instituto, sobretudo considerando-se os esforços da Musicologia em diferenciar-se, como pesquisa científica, de uma literatura por demais centralizada em vultos e em romances de vida que caracterizou a produção musicográfica do passado de muitos países, sobretudo os latinos.


Entretanto, com as tendências mais recentes dirigidas a uma orientação teórico-cultural da pesquisa musicológica e um certo distanciamento crítico relativamente à análise de textos musicais no seu sentido convencional, a focalização de personalidades, histórias de vida e contextos reassumem novo interesse.



Os aspectos agora salientados surgem como significativos não apenas como testemunhos de um relacionamento interdisciplinar. Trazem sobretudo implicações consideráveis relativamente á imagem do compositor, a questões de história cultural, de estética e interpretação, também a respeito da imagem de sua mulher, Clara Schumann (1819-1896), com consequências para os Estudos de Gênero na História da Música.


Sob a perspectiva do ISMPS, trata-se aqui das consequências dessas posições e contra-posições da pesquisa neurológica, psiquiátrica e psicoterapêutica para a imagem do compositor e de sua mulher em contextos globais, em particular euro-brasileiros.


No Brasil, a imagem de Schumann foi sempre acentuadamente marcada pelos seus problemas mentais. Mesmo em contextos nos quais a sua música pouco é ouvida e executada, sabe-se que foi um compositor que teria sofrido de doença mental.


"Todos sabem como morreu Schumann. As lufadas do inconsciente que sopram na fantasia exaltada da genial Kreisleriana mostram quão próximo andou sempre Schumann da introversão descontrolada." (1937-38) (Andrade Muricy, Caminhos de Música,  Curitiba: Guaíra, s/d, 145)


Local de reflexões: Casa de Schumann em Endenich


A clínica do Dr. Richartz, hoje Casa Robert-Schumann, com biblioteca e museu a respeito do compositor, situa-se em Endenich, cidade que é integrada na cidade de Bonn, abrigando vários institutos da Universidade Renana Friedrich-Wilhelm.

O bairro, hoje um pouco mais movimentado pela vida estudantil, procura superar uma imagem de sua história marcada por fatos negativos, dos quais a internação de Schumann foi apenas um. Na Segunda Guerra, o mosteiro das beneditinas local, „Maria Auxiliadora“, foi confiscado pelos nazistas e utilizado como estação de internação de judeus que seriam enviados para os campos de concentração do Leste.

O bairro surge, assim, marcado por lembranças de destinos infelizes, de pessoas injustamente levadas à exclusão e à morte. Como fundamento dessa imagem poderia ser visto o culto de mártires que marcou a espiritualidade local.

É uma localidade de antiga história, remontante aos anos 814/815, como reza um documento de doação de área é ocupada atualmente em parte pela capela de S. Lamberto. Esta foi primeiramente mencionada em documento de 1131, quando o Papa Inocêncio II confirmou os direitos de propriedade. 

O principal monumento histórico de Endenich, o burgo, sede dos „senhores de Endenich“, foi erigido ao redor de 1200.  Um século mais tarde, construiu-se a igreja de Santa Maria Magdalena, reconstruída nos séculos XVIII e XIX.

Data importante da história cultural de Endenich foi a sagração de uma Capela dos Martírios, aos pés do Monte Calvário. Essa Capela foi dedicada aos soldados romanos que morreram martirizados por serem cristãos, Cassius e Florentius. Esses mártires, hoje padroeiros de Bonn, mantiveram vivo o culto e a idéia do martírio nessa região, estreitamente vinculada a uma espiritualidade de romeiros que peregrinavam ao morro do Calvário próximo.

Segundo a tradição, Cássio e Florêncio, provindos de regiões egípcias do Império Romano, foram soldados em legião contra os Bagaudes, na Gália. Os muitos cristãos dessa legião negaram-se a lutar contra cristãos. Cássio e Florêncio, em grupo com sete ou doze companheiros, foram executados em Bonn. Isso ocorreu ao pé do monte Calvário, onde posteriormente se levantou a capela do assassínio ou a capela do martírio. Os seus corpos foram recolhidos por Santa Helena e as relíquias conservadas na catedral de Bonn.

Schumann, embora protestante, passou os seus últimos meses e faleceu em ambiente de cidade pequena, predominantemente de cultura católica, sendo católica a maioria de sua população. Confrontou-se, assim, constantemente, com calvários, com cruzes em encruzilhadas e com o culto do martírio na religiosidade local.

Schumann em publicações para médicos alemães


O periódico alemão para médicos Deutsches Ärzteblatt (107/22, 4 de junho de 2010) publicou, poucos dias antes da passagem do bicentenário de Robert Schumann, um artigo no qual o diretor da Clínica de Neurologia, Psiquiatria e Psicoterapia da Universidade de Colonia, Prof. Dr. med. Uwe Henrik Peters, procura esclarecer o inigma da doença mental de Schumann.

Esse texto foi precedido, nessa revista por artigos de Ulrich Skubella (DÄ 40, 1999) e Caspar Franzen (DÄ 30/2006), que também haviam tratado do tema da doença de Schumann. O autor publicou outros trabalhos a respeito, entre êles Robert Schumann - 13 Tage bis Endenich (Köln: ANA Publishers, 2009); Gefangen in Irrenhaus (Köln: ANA Publishers 2010) e, com Caroline Peters, O' könnt'ich Euch noch einmal sehen. Robert und Clara Schumann - Anfang und Ende einer Ehe (Köln: ANA Publishers, 2010). A publicação levou a tomadas de posição críticas de musicólogos e de médicos, publicadas como cartas ao leitor, a do Dr. Gerd Nauhaus, presidente da Robert-Schumann Gesellschaft Zwickau e.V. e a do Prof.Dr.Dr. Theo R. Payk, de Bonn („Nur Theorien“ e „Falsche Diagnose“, DÄ 107/39, 2010, B 1636-7).

Revisão de um lugar-comum: genialidade e loucura

O autor lembra que devido à suposta doença, Schumann tem ocupado os psiquiatras mais do que qualquer outra personalidade da história, não só da história cultural. Já na década de sessenta do século XIX, o compositor surgia como prova de uma proximidade entre a genialidade e a loucura. Foi considerado como prototipo de um distúrbio bipolar, marcado por melancolia e creatividade. A questão de que sofrera de sífilis ocupou musicógrafos e levou a conjecturas várias. Musicólogos teriam até mesmo procurado indícios ou reflexos de problemas mentais na sua obra, explicando assim determinadas ocorrências técnicas não convencionais.

O autor, afirmando ter revisto fontes documentais antigas e novas, manifesta a sua convicção de que nenhuma dessas diagnoses seria correta. Schumann não sofrera de doença mental. Sob o ponto de vista psiquiátrico, teria tido um problema alcoólico, o que sempre teria sido silenciado ou relativado, também pela sua mulher. O que os seus dois médicos teriam interpretado como doença mental, em fevereiro de 1854, teria sido um ataque de delírio alcoólico que durou vários dias. 

Após o delírio, em 4 de março de 1854, Schumann fêz-se transferir por conta própria a uma clínica, o do Dr. Richarz, em Bonn-Endenich. Esse passo, o compositor o deu supondo que seria por pouco tempo. Entretanto, foi impedido de abandonar a clínica. Apesar de ter feito várias tentativas e esforços ingentes, não foi deixado em liberdade, consumando-se o seu falecimento em maio de 1855.

Abandono, desespêro e resignação

Aqui, o autor vê um elo com a sua última carta à sua espôsa, Clara, de 5 de maio de 1855, quando a comunicação entre ambos foi cortada. Clara havia escrito, a 3 de maio, uma carta ao médico, recusando admitir novamente o seu marido em casa. A 4 de maio, Schumann, querendo realcançar a liberdade, ameaçou contratar um advogado. Entretanto, sem o seu conhecimento, as suas cartas foram censuradas. No dia 6 de maio, reclamou ao médico das "perseguições da mulher má". Clara, que recebeu a carta de seu marido no dia 7 de maio, passou esse dia alegremente na casa de Schumann, acompanhada do jovem Johannes Brahms (1833-1897).

O autor, após traçar esse panorama, descreve que, a partir daí, o estado orgânico e psíquico de Schumann piorou cada vez mais. Abandonou as suas tentativas de alcançar a liberdade, uma vez que não via mais caminhos. O autor salienta a tragédia e a tristeza do fim de Schumann no contexto de um drama de relações matrimoniais, abandonado em solidão e aprisionado no hospício.

Assim, segundo o autor toda a história de vida de Schumann, assim como a de sua mulher, necessitaria ser reescrita. A imagem pública da relação entre Clara e Robert Schumann, determinada pela imagem que a própria Clara teve o cuidado de criar, precisaria ser modificada. Não se tratou de um par unido pelo grande amor, mantido em fidelidade até o fim da vida. Seria, antes, um casal no qual cada parceiro lutou para realizar a sua carreira. O autor pergunta-se, porém, se os meios utilizados por Clara Schumann teriam sido lícitos.

Tragédia da morte de Schumann e revisão de imagens

Segundo esse autor, fim de Schumann no hospício teria sido trágico. Êle não teria morrido em estado de inconsciência, mas consciente e sabendo de tudo, ou seja, da atitude inqualificável de sua mulher. A medicina, assim, ofereceria aos estudos culturais uma nova imagem de Robert e de Clara Schumann. A questão que se colocaria, porém, é se essa nova imagem seria ou não aceita, uma vez que muitos prefereriam manter concepções românticas de um casal feliz e de uma personalidade feminina exemplar e nobre, mãe de muitos filhos, sacrificada na sua carreira para apoiar a do marido .

O autor oferecer uma breve súmula da história do relacionamento entre Robert Schumann e Clara Wieck desde a sua juventude. Clara tinha apenas 12 anos de idade quando se conheceram e entraram em contato. Clara já era uma pianista de reconhecida capacidade técnica e interpretativa. O fascínio que despertava a sua arte de execução, refinada e nobre, levou a que o seu próprio pai, que a ensinara, se tornasse procurado como professor de piano, podendo viver do ensino do instrumento. Clara Wieck, para libertar-se do seu dominante pai, ter-se-ia utilizado de Robert Schumann, jovem romântico, idealista, sem ambições materiais, muito sensível e influenciável.

Antes do casamento, ambos escreveram cartas registrando o que esperavam da união. Clara desejava que Schumann escrevesse, compusesse e que renunciasse ao álcool. Schumann desejava que a sua mulher levasse uma vida doméstica, dedicada à família, praticando a música no lar, compartilhando com êle os ideais. Essa expectativa de vida teria correspondido inicialmente àquela de Clara, como os vários filhos do casal o comprovaram. Com o passar dos anos, porém, Clara constatou que, sob essas condições, não podia dedicar-se à sua profissão. A respeito da capacidade técnica e interpretativa de Clara Schumann não pode haver dúvidas, nem a respeito do fascínio que a sua execução despertava. Os seus conhecimentos e a sua cultura geral, porém, ficavam muito aquém às de Schumann. Este, que a valorizava como excepcional pianista, muito superior a êle próprio, abrira-lhe perspectivas literárias e estéticas, ensinara-lhe, transmitira-lhe idéias, que nela encontraram terreno fertil. A recepção de ideais e impulsos, porém, nela despertou-lhe ambições de produzir na mesma direção, de demonstrar a sua capacidade e mesmo superioridade.

Consequências de uma crise profissional e pessoal

Uma particular atenção é dada no estudo ao período em Düsseldorf. Convidado pelo seu amigo Ferdinand Hiller (1811-1885) a ocupar o cargo de Diretor Musical de Düsseldorf, foi ali recebido de forma entusiástica. Tratava-se de uma situação aparentemente ideal, uma vez que também a sua mulher tinha ali a possibilidade de dedicar-se à vida de concertos. Schumann, porém, com a sua natureza introspectiva e pouco realista, inapto a questões administrativas, não possuia as qualidades para regente de coro e orquestra, assim como para a organização da vida musical. Esse período de estabilidade econômica possibilitou a Schumann dedicar-se com mais tranquilidade à composição. Entretanto, o seu pouco interesse e aptidão para questões pragmáticas levou a descontentamento de músicos e cantores.

Segundo o autor, Schumann, confrontado com esses problemas com o meio que o cercava, foi assolado por problemas nervosos e psicosomáticos, o que levou ao aumento do seu consumo alcoólico. A própria intensidade com que se dedicou à composição teria representado uma tentativa de fuga, retirando-se para o seu mundo interior. A situação agravou-se com uma nova gravidez de Clara e, além do mais, com a recisão do contrato.

Schumann teria experimento com as decepções e com o desemprêgo uma quebra da sua auto-estima. Essa situação critíca acentuou problemas de uma relação de casal que não era sólida. Nesse estado, já não tinha motivação para compor, dedicando-se apenas a colecionar materiais para futuras publicações. No período de carnaval, sofreu então o delírio alcoólico.

Mesmo o relato de que Schumann se teria atirado nas águas frias do Reno com intenção de suicídio, retornando em meio a alegres carnavalistas, um quadro tão frequentemente pintado na musicografia de cunho de difusão, não seria verídico. Na época nem mesmo teria havido carnaval de rua em Düsseldorf. A verdade seria outra: Clara abandonou o seu marido na segunda-feira de carnaval, levando todos os seus filhos. No seu diário, deixou anotado que logo o jovem Johannes Brahms iria estar constantemente a seu lado.


Endenich 1: Fase de exclusão voluntária

Os dois anos e quatro meses passados na clínica de Endenich são divididos pelo autor em dois períodos. O primeiro, o de verão de 1854, foi passado em recuperação, longo dormir, passeios e leituras. O compositor procurou superar interiormente as suas decepções e feridas, reaver o equilíbrio emocional. Entretanto, já nessa fase foi abandonado pelos seus. Assim, o seu médico familiar, desde a sua entrada no sanatório, nunca mais teve contato pessoal com o seu paciente, tratando apenas com o psiquiatra.

O compositor passou a ser desde então totalmente isolado de sua família, nem mesmo recebendo notícia do nascimento de seu filho Felix. Segundo Clara, os médicos não teriam permitido que visitasse o seu marido, sendo assim responsáveis pelo isolamento de Schumann. Isso, porém, segundo o autor, não seria verdade, e ela poderia tê-lo procurado em todo o momento.

Endenich 2: Fase de entendimento da situação

A segunda fase em Endenich começou no fim de outono de 1854. Nessa época, Schumann, percebendo a situação em que se encontrava, passou a exigir de forma cada vez mais acentuada o seu direito em abandonar a clínica e retornar para casa. Passou a escrever longas cartas, demonstrando a sua saúde mental. Como o seu psiquiatra defendia a teoria de que todo o paciente deveria ser visto como doente mental enquanto a sua saúde não fosse demonstrada de modo irrevogável, não encontrava outro caminho para comprovar a sua normalidade se não o da escrita de cartas bem estruturadas e redigidas.

Clara não dava autorização de visita a seu marido a nenhuma pessoa, exceto os seus leais amigos Johannes Brahms e Joseph Joachim (1831-1907). Uma exceção foi a poetisa Bettina von Arnim (1785-1859), e esta testemunhou que a êle nada faltava, a não ser a liberdade.

Endenich 3: Fase de solidão, desespêro e resignação

A terceira fase da vida de Schumann em prisão na clínica foi marcada por completa solidão, por abandono e falta de perspectivas. Passou a alimentar-se cada vez menos, obtendo edemas de fome e, por fim, pneumonia.

Só três dias antes da morte do compositor deu-se um encontro do casal. O decorrer do encontro é descrito de forma contraditória. Segundo Clara, Brahms teria constatado um gesto que poderia ser uma insinuação de um abraço por parte do compositor. O pessoal médico, porém, nada percebeu nesse sentido.

Segundo o autor, o médico e Clara tinham interesses comuns. Juntos, possuiam o monopólio de informações, mantendo todas as fontes. O interesse do médico era financeiro e de prestígio, o de Clara, a separação de fato do marido. O procedimento do médico não teria sido correto. Enquanto Schumann viveu, não apresentou nenhum diagnóstico e negou que o compositor sofria de sífilis. Logo após a sua morte, porém, publicou que o compositor fora sifilítico, fato comprovado por uma alegada obdução.

Significado e crítica das conclusões

A interpretação de composições de Schumann, segundo o autor, deve ser repensada e corrigida. Com base no diagnóstico médico e na história transmitida por Clara Schumann, a certeza da doença mental de Schumann levou a que pesquisadores vissem em certas  irregularidades técnicas de suas composições reflexos de sua mente doentia. Essas tentativas elucidativas seriam errôneas, e as causas de possíveis irregularidades deveriam ser procuradas talvez na sua formação, uma vez que, quando jovem, o compositor fora avesso a estudos teóricos.

As vozes em contrário a essas posições acima mencionadas salientaram que as provas documentais apresentadas pelo autor não são novas, mas já ha muito conhecidas (Bernhard R. Appel, Robert Schumann in Endenich, Krankenakten, Briefzeugnisse und zeitgenössische Berichte, Mainz e.o 2006, publicado na série Schumann-Forschungen 11).

Os críticos recusam o cerne da argumentação, que seria o alcoolismo de Schumann. Já o sogro do compositor havia tentado demonstrá-lo em tribunal, não alcançando sucesso. Também a idéia de uma cumplicidade de sua mulher com Brahms e com os médicos já teria sido sugerida por outros autores e deveria ser afastada. Schumann não teria sido alcoólatra, mas mostraria de fato todos os sintomas de uma neurolues como resultado de uma infecção sifilítica.

„Loucura“ em sentido figurado

O que parece não ter sido levado suficientemente em consideração no debate é a interpretação figurada de „loucura“. Aqui deve ser visto como fator determinante a concepção estético-filosófica, de combate aos filisteus, também na música. A concentração à correção técnica segundo preceitos escolares da teoria e da harmonia, a delimitação da obra criadora por uma excessiva atenção a regras e normas, criticada em determinados compositores de sua época, surgia como expressão de Filisteísmo na música.

O que foi visto, assim, como expressão de uma labilidade seria resultado de uma atitude refletida, contrária ao academismo que sufocava inspirações e a criação de obras de conteúdo poético. Os êrros diagnósticos e a construção falsa de imagens teria prejudicado, assim, o entendimento de um posicionamento estético dos „seguidores de David“ inserido em sistema de concepções sobre o mundo e o homem de antigas origens, revitalizado no Romantismo.

Assim, não se considerou na sua fundamentação filosófica adequada uma atitude de distanciamento com relação ao ensino convencional de determinados professores de harmonia e composição que, produto do Romantismo, e baseada em antigas imagens e concepções, manteve-se viva no século XX.

Relevância para os estudos brasileiros

Também no Brasil constata-se a continuidade, no tempo, de uma certa antinomia na vida musical, de uma lado mestres vistos como por demais atentos a exercícios técnicos e tratadistas teóricos apenas preocupados na observação rigorosa de normas, por outro de músicos inspirados, criativos, abertos a novas tendências e experimentações. Essa dicotomomia, ainda que nem sempre verbalizada, influencia a valoração de nomes e obras, marcando a musicografia. Muitos nomes de compositores e professores, que desempenharam importantes papéis na vida musical de sua época caem assim em esquecimento ou tornam-se apenas referências em notas marginais.

O panorama histórico-musical orienta-se segundo aqueles que não se sujeitaram ou se libertaram dessas delimitações do ensino acadêmico. A literatura que assim surgiu e que determinou correntes de pensamento e de avaliação estética que se perenizaram traz ela própria cunho romântico. Nela são valorizados artistas que não obtiveram ou se recusaram a obter ensino regular, que foram avessos aos estudos, salientando-se, assim, a sua genialidade.  Ao contrario, aqueles que realizaram estudos regulares e que atentaram à solidez técnica de fatura de obras, são silenciados ou vistos como acadêmicos.

O termo „loucura“ passou a ser usado mesmo na linguagem quotidiana, trazendo conotações de genialidade. Muitos que salientam a própria „loucura“, procurando enfatizar empenhos, atividades e comportamentos não explicáveis pelo bom senso e pelas normas, sugerem, ainda que de forma involuntária, a ação de seu gênio. Para um observador externo, parece singular a frequência com que se ouve a afirmação de que se é louco, expressa com intenções e conotações positivas.

Não se tem em geral a consciência de que aqui se trata de uma permanência de situações do Romanticismo, da luta „dos aliados de David“ contra o Filisteísmo. Essa continuidade, em diferentes contextos, deveria ser vista como um fenômeno cultural, da história das idéias, e assim ser analisada sob perspectivas teórico-culturais. Esta surge como uma tarefa de difícil consecução, devido à internalização de critérios valorativos e da posição depreciativa de tudo que surge como filisteístico, entendido como academicista, escolar, não-inspirado.

Essa tarefa surge, porém, como necessária, pois a literatura das várias áreas dos estudos culturais desenvolvidos com esse espírito criou um panorama altamente romântico da história cultural, marcado por grandes vultos de artistas e intelectuais inspirados, de gênios, mesmo em situações que foram caracterizadas por intuitos de superação do Romantismo. Ainda que aparentemente paradoxal, muito do Modernismo surge como expressão de profundas concepções internalizadas do Romantismo daqueles que se sentiram ou ainda se sentem como „aliados de David“ contra os Filisteus.

Significado sob a perspectiva ético-estética e para a Educação

A análise dessa situação, tarefa verdadeiramente teórico-cultural, não se justifica apenas através do intuito de se fazer justiça a muitos nomes e intuitos caídos no esquecimento ou silenciosamente acusados de estreiteza filisteística. Também não se justifica apenas pela necessária reconsideração de panoramas histórico-culturais e de edifícios de imagens construídas por pensadores profundamente românticos, ainda que anti-românticos, uma vez que esses quadro culturais não podem satisfazer uma ciência história que e preocupa em refletir sobre o seu próprio procedimento e seus paradigmas.

Ela se justifica sobretudo pelas suas implicações para a atualidade e o futuro. A consciência do „ser aliado de David“ na luta contra filisteus levou não apenas à época de Schumann de uma síndrome do ser-se eleito, de ter-se legitimação ética para um combate contra os espíritos vistos como menores. Essa auto-consciência explica atitudes de militância e de posições pernósticas marcadas por uma arrogância de eleitos e menosprêzo dos designados como filisteus.

Trata-se aqui, assim, de um lado de Direitos Humanos desses assim qualificados, que se vêem combatidos e marginalizados na vida cultural e intelectual  e, sobretudo, silenciados na literatura que marca o panorama de sua época. De outro lado, trata-se de uma questão de necessária auto-reflexão daqueles inseridos no trabalho intelectual, assim também de um problema da sociologia da ciência.

Esse complexo de questões tem consequências amplas, pois influencia a vida cultural e, sobretudo, a Educação. Uma atitude de combate de eleitos ao filisteísmo fundamentou correntes de pensamento marcadas pela crítica a instituições de ensino, a conservatórios e a academias de belas-artes. Levou não apenas à modificação de programas e métodos, mas à erosão de estruturas de ensino, à perda de prestígio de formação sistematicamente orientada em várias esferas da criação artística. Colocam-se aqui problemas ainda não totalmente solucionados relativamente ao valor da formação e das qualificações oferecidas por essas instituições, da sua existência, da legitimidade de serem mantidas e, assim, para o sistema educacional em geral.

Nos estudos relativos a esse campo de tensões herdado do Romantismo não se pode deixar de constatar que se tratou, na época, de uma revitalização de antiga imagem - a de David e dos Filisteus - , no contexto da época e interpretada sob o aspecto da literatura e das artes. A atenção da analise teórica deveria ser assim dirigida ao fato de ter-se aqui uma imagem ou configuração apta a ser atualizada em diferentes condições históricas e cujo sentido imanente  necessita ser captado e estudado.



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Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. e Hülskath, H."Medicina, construção de imagens e suas consequências para as reflexões histórico-culturais, estéticas e para a interpretação: significados do debate a respeito da saúde mental de Schumann". Revista Brasil-Europa 127/15 (2010:5). www.revista.brasil-europa.eu/127/Endenich-saude-mental-de-Schumann.html



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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 125/ (2010:3)
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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2648





Medicina, construção de imagens e suas consequências para as reflexões histórico-culturais, estéticas e para a interpretação
Significados do debate a respeito da saúde mental de Schumann



No bicentenário de nascimento de Robert Schumann. Endenich: na clínica de internação de Schumann
Pelos 25 anos do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa
(
Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes, ISMPS e.V.)

 














  1. Fotos A.A.Bispo 2010©Arquivo A.B.E.

 

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