Atmosferas mórbidas no Romantismo. Revista BRASIL-EUROPA 127/20. Bispo, A.A. (Ed.). Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

Por motivo da passagem dos 200 anos de nascimento de Robert Schumann (Zwickau 1810 - Endenich 1856), o Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS e.V.), que comemora em 2010 os 25 anos de sua fundação oficial alemã, e a Academia Brasil-Europa realizaram um circuito de estudos na Saxônia, região de nascimento e da juventude do compositor.

Esses trabalhos focalizaram sobretudo temais relativos a Direitos Humanos e à Ética, correspondendo a outros trabalhos paralelamente desenvolvidos pela organização. Veja „Tema em debates“ e outros artigos nesta edição)

Um dos locais escolhidos para as reflexões foi Colditz, cidade na região do vale do Mulde, entre Zwickau e Leipzig. A razão da consideração especial de Colditz reside no significado que desempenhou, a vida de Robert Schumann uma família procedente dessa cidade, a do médico Dr. Carus.

Levantou-se, porem, uma outra questão relacionada com a cidade e o seu castelo: a da sua imagem marcada por doenças mentais, pela exclusão e internação, ou seja por associações com sofrimento e fins trágicos da vida que parece ter co-determinado um estado de espírito do círculo romântico de Schumann e talvez mesmo a mente sensível do compositor. No seu castelo, será ínstalada a Academia Estadual de Música co Conselho de Música da Saxônia. (Landesmusikakademie des Sächsischen Musikrates e.V.)


Local de reflexões: Colditz
Colditz e seu castelo possuem são impregnados pela história medieval, correspondendo, portanto, aos anelos historicistas de conscientização do passado da Idade Média à época de Schumann.

O seus fundamentos remontam à época de colonização alemã da região, habitada por povos eslavos, que passaram a ser submetidos. Nessa época poderiam ser localizadas bases de uma tensão profunda, de um sentimento de tristeza e perda determinada pela experiência dos eslavos.

Já no seculo XI, Heinrich III passou a área do futuro burgo à sua mulher, em 1803, Heinrich IV a Wiprecht von Groitzsch, que ali construiu um burgo. Friedrich Barbarossa, em 1158, transformou-o em propriedade, Império sob a égide de Thimo I, dando-lhe, como meios de subsistência, Colditz e ca. de 20 outros povoados eslavos da região.

Ao lado das aldeias eslavas desenvolveram-se povoados de colonos, e a diferença cultural manifesta-se ainda hoje nas denominações das cidades: ao lado de nomes eslavos, tais como Zschetzsch, Zschadrass, Zollwitz, Terpitzsch e Koltzschen, encontram-se nomes alemães, tais como Schönbach, Hohnbach, Thierbaum e Ebersbach.

Em 1404, Colditz foi adquirido pelos Wettiner. No desenvolvimento político-administrativo, passou a ser parte do Marquesado de Meißen.

O castelo foi repetidamente incendiado e reconstruído. A Renascença foi marcada por novas edificações, e dessa época passou à históría sobretudo o período entre 1553 e 1586, quando ali residiram o Príncipe August e a sua espôsa Anna, Princesa da Dinamarca, cujas armas se conservam no portal que se abre à ponte de entrada do castelo.

Em 1577, os trabalhos foram intensificados, com fundamentais renovações, mantendo-se partes do gótico tardio erigidas entre 1464 e 1524, de elevado valor histórico-cultural e artístico, uma vez que ali atuou, entre outros, o artista Lucas Cranach, o Jovem (1583).


Da temporalidade do florescimento e da tragédia existencial

A cidade experimentou um período de florescimento a partir de 1603, como residência da Côrte e centro administrativo sob Sofia, viúva de Christian I. De 1622 a 1753, serviu como castelo de caça e residência de viúvas principescas da Saxônia.

A essa fase de relativo brilho, porém, seguiu-se um período em que o castelo foi abandonado, uma vez que o rei August, tornando-se rei da Polônia, passou a preferir outras moradias. Foi visitado pela última vez em 1753 e teve o seu mobiliário vendido a leilão em 1787.

Uma atmosfera de decadência e melancólico abandono tomou conta do lugar, surgindo o castelo como marca de um passado encerrado. Se já à época das viúvas que ali residiram e que se dedicavam aos pobres o castelo havia uma aura de tristeza, essa quase que sina do edifício intensificou-se com a instalação ali, em 1800, do asilo dos pobres do distrito de Leipzig. Após uma fase em que serviu de abrigo de trabalhadores, foi transformado em hospital para doentes mentais incuráveis, em 1829.

       

Fantasmagorias e o Trítono no pensamento simbólico: ABEGG

A razão da consideração especial de Colditz reside no significado que desempenhou, na vida e na obra de Robert Schumann, uma família procedente dessa cidade, a do médico Dr. Carus.

Quando, ao falecer o seu pai, em 1826, parecia ser mais responsável e realista que o jovem Robert Schumann não seguisse a carreira musical, opinião de sua mãe e de seu preceptor, foi Agnes Carus, a espôsa do Dr. Carus de Colditz, que o influenciou em dedicar-se à música. Já esse fato indica o significado que deve ser dado a Agnes Carus nos estudos schumannianos.

Agnes Carus era excelente cantora, pianista e possuia amplos conhecimentos de música. Schumann teve contato com membros dessa família em Zwickau, sua cidade natal. Na casa do tio de Agnes Carus, em encontros musicais domésticos, praticaram música de câmara e o repertório vocal. Ali, Robert Schumann conheceu quartetos dos grandes compositores clássicos e, sobretudo as canções e a música para piano a quatro mãos de Franz Schubert (1797-1828). Esse conhecimento do repertório foi de significado relevante para a sua obra criadora. Nessa época, compôs os primeiros Lieder que dele se conhecem, assim como um concerto para piano em fá menor, que se perdeu.

Parece ter sido Agnes Carus aquela que mais despertou em Schumann o fascínio por Schubert e pelo repertório schubertiano do Lied, um compositor que, ao lado da influência literária de Jean Paul (1763-1825), marcou a sua atividade como compositor.

Foi nesse ambiente que parece ter-se cristalizado em Schumann o intuito de encontrar uma linguagem musical pela qual pudesse transmitir aos ouvintes sentidos inexpressáveis por palavras, vivências interiores, sentimentos, concepções de vida e anelos. Essa intenção procurou realizar inicilamente com os meios de um simbolismo musical mais generalizadamente conhecido, aquele relacionado com o intervalo do tritonus.

No ensino teórico-musical mais rudimentar manteve-se através dos séculos fragmentos de um edifício de associações de significado relacionadas com intervalos, de antigas raízes numéricas e de concepções matemáticas. Na sua reinterpretação cristã, o trítono passou a ser associado com qualidades demoníacas e denominado de diabolus in musica. Certamente conhecido por Schumann nessa designação, surpreende que este o tenha usado com função motívico-temática na sua primeira obra impressa, as Variações ABEGG op. 1 em Fá Maior, composta em 1829/30).

Essas letras, designando tons (la, sib, mi, sol, sol), criam um conjunto de relações intervalares marcadas pelo trítono B - E. Esse intervalo representa uma transposição do trítono A - Es (la-mib), que Schumann tirou literalmente do nome de Agnes Carus (A(gn)es). A tensão expressa nesse intervalo, inerente assim ao próprio nome de Agnes Carus, tem sido explicada como uma expressão da tensão de amor que Schumann quis manifestar que sentia por Agnes, um sentimento que seria proibido, uma vez que se tratava de uma mulher casada. Não se pode esquecer, também uma outra interpretação possível desse procedimento, ou seja, o se indicar a tensão lucifera, de demonismo genial inerente ao próprio nome. A obra é, assim marcada na sua estruturação musical e no seu sentido poético pela figura de Agnes, sendo fictiva a sua dedicatória a uma „condessa Pauline d‘Abegg“.

Círculo de Agnes Carus em Leipzig e o doentio em Heinrich August Marschner (1795-1861)

O convívio com a família do Dr. Carus manteve-se e aprofundou-se em Leipzig, para onde se transferiram, vindos de Colditz. Agnes Carus passou aqui a reunir em torno de si intelectuais e artistas, tornando-se centro de um círculo de personalidades com afinidades de pensamento e humanas. Também aqui deu Schumann prosseguimento ao conhecimento e ao estudo da obra de Jean Paul e de Schubert, sobretudo a sua obra vocal, para piano e música de câmara.

Nesse ambiente, que poderia ser comparado a situações conhecidas de outros países, sobretudo dos salões franceses regidos por personalidades femininas, Robert Schumann conheceu, entre outros, Heinrich August Marschner, regente e compositor de canções, mestre-capela em Dresden e Leipzig, mestre-capela real em Hannover, assim como o mestre-capela Gottlob Wiedebein (1779-1854), de Braunschweig, Johann Gottlob Friedrich Wieck e sua filha Clara Wieck (1785-1873).

Schumann pôde, aqui, constatar a magia das execuções dessa menina prodígio, convencendo-se da capacidade de formação musical de seu pai, que a ela ensinava piano, teoria, canto e violino. Nessa época, o fascínio que despertava a menina, a atração inexplicável que irradiava as suas interpretações contribuía a que seu pai adquirisse renome como professor de piano. O contato com a família Wieck determinou a sua vida futura, uma vez que se tornou aluno de Friedrich Wieck e casou-se com Clara Wieck.

Dessa época dos encontros sob a égide de Agnes Carus em Leipzig remontam várias obras de Schumann que denotam o culto que se rendia a Schubert nesse círculo, entre elas uma coleção de 11 canções (op. II), aproveitadas posteriormente em obras para piano (op. 4, 11 e 22), polonaises para piano a quatro mãos (op. III), mais tarde aproveitadas em parte nos Papillons op. 2, as perdidas Variações para piano a quatro mãos sobre um tema de Louis Ferdinand e um quarteto com piano em do menor.

Gottlob Wiedebein desempenhou um papel significativo na vida de Schumann, que o admirava como compositor de canções. Essa admiração era tão alta que para êle Schumann enviou algumas de suas próprias composições para obter o seu parecer. A opinião positiva de Wiedebein representou um incentivo decisivo para que Schumann resolvesse dedicar a sua vida às artes.

Sobretudo Heinrich August Marschner merece, neste contexto, particular atenção. Marschner adquirira o seu renome sobretudo com a ópera Hans Heiling, com libreto de Philipp Eduard Devrient (1801-1877). Uma das melodias dessa ópera seria utilizada por Antonín Dvorák (1841-1904) na sinfonia Aus der Neuen Welt, obra que se tornaria emblemática na história das relações musicais entre a Europa e o Novo Mundo.

O seu nome dirige a atenção a um complexo de questões até hoje pouco considerado e que pode elucidar certos aspectos da atmosfera cultural e mental da época. Nas suas óperas, surgem com frequência tipos humanos misteriosos, com traços demoníacos, heróis com personalidades desintegradas ou doentias. Essa fixação em problemas mentais surge como particularmente significativa à luz da imagem de Colditz.



Colditz: fantasmas de doenças mentais e exclusão


A família do médico Dr. Carus trazia de Colditz não apenas o interesse pela literatura e pela música, mas sim também o de uma cultura local marcada pela imagem do hospital instalado no antigo castelo que domina a cidade.

Esse elo de Colditz com moléstias mentais e pacientes incuráveis encerrados por detrás dos muros do castelo transformado em hospício necessita ser levado em consideração nos estudos do mundo psiquico de Robert Schumann. A sua vida foi marcada por mêdos, por casos de doenças mentais na família e por receios do próprio adoecimento e exclusão, por depressões e pensamentos de suicídio.

Essas idéias fixas relacionadas com doenças mentais culminariam de forma trágica no próprio término de sua vida, quase que concretizando expectativas e receios há muito existentes. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Endenich-saude-mental-de-Schumann.html)

O hospital no castelo de Colditz continuou a marcar tragidamente a família de Schumann. Ali foi internado o segundo filho mais jovem de Robert Schumann, Ludwig Schumann (1848-1899). Esse filho, o primeiro que sobreviveu dos filhos do compositor, após um período escolar marcado por dificuldades, adoeceu mentalmente. Provavelmente com esquizofrenia, com apenas vinte anos, foi enviado ao hospital de Colditz, ali passando a sua vida encerrado.


História negra do castelo de Colditz no século XX e memorial


Em 1933/34, o castelo de Colditz sediou um campo de concentração da SA para opositores do Nacionalsocialismo. Entre 1936 e 1937, serviu como como campo de trabalho forçado e, de 1940 até o fim da guerra, como prisão para oficiais.


Ali foram aprisionados oficiais da Grã-Bretanha e dos países da Commonwealth, da França, Bélgica, Holanda e Polonia.


Nos últimos anos da Guerra, houve ali um posto externo do Campo de Concentração de Buchenwald, no qual trabalharam 450 prisioneiros judeus na produção de armas. Muitos morreram nessa atividade ou na "caminhada da morte", em abril de 1945.


Hoje, o castelo de Colditz assume significado simbólico como memoral, lembrando de como Direitos Humanos podem ser desrespeitados e dos muitos e complexos caminhos que levam à criação de situações que fazem com que o desrespeito à vida passe a ser considerado como normalidade e como inerente ao mundo da existência. A analise desses pressupostos torna-se, assim, tarefa relevante para os Estudos Culturais.




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Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A.(ed.)."De atmosferas marcadas por insanidade mental e pela fantasmagoria no Romantismo. Dr. Carus e Agnes Carus de Colditz na vida de Schumann". Revista Brasil-Europa 127/20 (2010:5). www.revista.brasil-europa.eu/127/Colditz-Carus-e-Schumann.html



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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 127/20 (2010:5)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2653





De atmosferas mórbidas e da fantasmagoria no Romantismo
Dr. Carus e Agnes Carus de Colditz na vida de Schumann

- e o problema da „normalidade“ na manutenção de estados atentatórios aos Direitos Humanos -



No bicentenário de Robert Schumann. Ciclo de estudos Saxônia-Brasil no Vale do Mulde: Colditz
Pelos 25 anos do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa.
(
Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes, ISMPS e.V.)

 












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