Concepções schummanianas e Canto Orfeônico. Revista BRASIL-EUROPA 127/13. Bispo, A.A. (Ed.). Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

Comemorou-se, em 8 de junho de 2010, a passagem dos 200 anos de nascimento do compositor Robert Schumann, um dos maiores vultos do Romantismo musical. Essa data motivou internacionalmente novas publicações, concertos, conferências e exposições, trazendo à consciência o amplo espectro de significados de sua obra, capaz de suscitar continuamente revelações e dar novos impulsos a reflexões musicológicas e teórico-culturais.

O Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS), que comemora em 2010 os seus 25 anos de fundação alemã, decidiu dedicar a Robert Schumann um ciclo de estudos, desenvolvido em regiões da Alemanha significativas para a sua vida. O contato direto com paisagens, cidades e monumentos quis favorecer a percepção de contextos e abrir novas perspectivas para a consideração de sua personalidade e obra. 

Duas regiões principais foram escolhidas, aquela situada entre a sua cidade de nascimento, Zwickau, e a de seus estudos e de juventude, Leipzig, na Saxônia, e a região do Reno, onde alcançou o ponto alto de sua vida profissional e a sua morte, sob circunstâncias trágicas.

O ambiente natural e os inúmeros vestígios da época que viveu, da história que a precedeu e dos memoriais que a ele se levantaram após a sua morte facilitam dirigir a atenção a processos históricos no qual o compositor e também o observador se inserem. 

Procurou-se estudar as correntes que marcaram o seu pensamento e a sua criação artística, as imagens que o guiaram e a atualização de sentidos que essas imagens tiveram no seu mundo. A atenção foi dirigida também e sobretudo à permanência dessas imagens, na reconfiguração a elas dadas por Schumann, no pensamento da posteridade e suas consequências.

Significado de Schumann para estudos culturais em relações internacionais

O que justifica que um instituto voltado à estudos da cultura musical do mundo de língua portuguesa dedique especial atenção a um compositor que é por alguns considerado como um dos mais „alemães“ de todos os grandes nomes do Romantismo? 

A ampla difusão da obra de Schumann no mundo - também em Portugal e no Brasil - não é a razão principal. A presença de Schumann em programas de concerto, em gravações e em programas de ensino justifica, sem dúvida, o estudo da História da Música européia. As diferentes épocas, os caminhos da recepção de sua obra nas diferentes regiões necessitam ser estudados. A influência que a sua obra exerceu em muitos compositores, dos mais diversos países, deve ser considerada e analisada diferenciadamente. 

Sem dúvida, o estudo da difusão da obra e da influência de Schumann na música de muitos países é de particular relevância para o estudo da irradiação da cultura alemã no mundo e, portanto, para as múltiplas possibilidades de estudos de relações bi-laterais, em particular, no cas, entre a Alemanha e o Brasil. 

Nos países que receberam grandes contingentes de colonos alemães, como é o caso do Brasil, o papel desempenhado pelos imigrantes na difusão e no cultivo de composições de Schumann surge como de significado para os estudos relativos à manutenção de elos culturais com a antiga pátria e aos caminhos de integração na nova sociedade. Consistui, assim, um objeto de estudos promissor para estudos voltados a transformações culturais.

Esses estudos permitem ampliar a área dos estudos histórico-musicais convencionais. Schumann não surge apenas como um dos vultos de uma História da Música limitada às fronteiras geográficas da Europa e concentrada na Alemanha, França e Itália, mas sim de uma História da Música que considera adequadamente esferas da expansão européia fora dos limites continentais. 

Não se trata, porém, apenas de se suplantar delimitações geográficas que pragmaticamente dividiram o mundo em domínios disciplinares - Europa e Estados Unidos para a História da Música e países extra-europeus para a Etnomusicologia - o que dá margens a incoerências metodológicas e inadequações de perspectivas. Trata-se de uma orientação teórico-cultural da musicologia que contribua, ao mesmo tempo, para o desenvolvimento de uma culturologia em dimensões internacionais.

Schumann representa, neste sentido, uma personalidade de excepcional significado. Embora tendo entrado na história e estar presente no senso comum como músico, foi intelectual de grande erudição, de vastos conhecimentos de filosofia e literatura, um homem antes mais nada do pensamento, que fundou e manteve um periódico de renovação de grande influência e que até hoje se mantém. 

Não foi um literato, mas um homem do pensamento. Schumann foi um guia antes mental de um círculo que, renovando antiga imagem, considerava-se integrado numa „aliança de David“ (Davidbündler). Êle e seus companheiros não representavam David, o Cantor, Tipo do Logos, mas sim aqueles que por êle eram regidos, que dele obtiveram a Lira. 

Reflexões no túmulo de Robert Schumann em Bonn

O Cemitério Velho de Bonn (Alter Friedhof) é uma das necrópoles européias que se salientam pelo número de vultos da história que ali se encontram sepultados. Estabelecido em 1715, possui hoje monumentos que refletem a história da arquitetura mortuária desde o século XVIII. Os nomes inscritos nas lápides demonstram o significado de Bonn como cidade universitária e cidade musical. Dentre os nomes da história das idéias que ali se encontram, salientam-se August Wilhelm Schlegel (1767-1845)  e Ernst Moritz Arndt (1769-1860), além de vários professores da universidade e colecionadores de arte. Sob o ponto de vista dos estudos americanos, cumpre salientar o túmulo da mãe de Balduin Möllhausen (1825-1905), escritor que tratou de temas relacionados com indígenas. Ali jazem a mulher e o filho de Friedrich Schiller (1759-1805), a escritora Mathilde Wesendonk (1829-1902), amada de Richard Wagner (1813-1883), a mãe de Beethoven, Maria Magdalena (1746-1787), o seu professor de violino, Franz Anton Ries (1755-1846), além de pianistas e compositores. 

Pouco desses túmulos podem ser comparados, na sua monumentalidade e no cuidado dispensado à sua concepção artística, ao de Robert Schumann. Situado em local dominante, no encontro de dois caminhos, o monumento, levantado em 1880, reflete o fascínio despertado pela memória de Schumann em fins do século XIX. 

A linguagem visual da plástica e dos ornamentos, acentuada pela géstica das figuras e culminando com a própria efígie do compositor indica o significado intencionado por aqueles que o conceberam e oferece sugestões para interpretações e, assim, para início de reflexões. O túmulo transforma-se em memorial, sendo visitado por sociedades de amigos de Schumann, pesquisadores e admiradores.

A dinâmica da configuração plástica dirige a atenção do observador à imagem do compositor, que é representado sobre um cisne que alça vôo. Incompreensível para os visitantes que já não mais dominam o repertório das imagens clássicas da mitologia, o cisne é emblema apolíneo. Schumann surge, assim, como personificação do tipo de Apolo, o guia das musas, - representantes das várias esferas de saber -, que as dirigia ao som da lira, instrumento que recebera de Hermes. Schumann é interpretado assim a partir do tipo de uma personificação do pensamento iluminado que rege todas as ciências e artes. Tem-se, assim, um estabelecimento de relações entre o „aliado de David“ e Apolo.


O tipo apolíneo na formação musical e o Canto Orfeônico no Brasil
Constata-se, nos estudos do pensamento e das imagens empregadas por Schumann e seu círculo a existência de um conjunto de concepções que, de antigas origens e atualizadas nas circunstâncias de sua vida e época, dizem respeito à compreensão do Homem. Elas manifestam idéias e ideais valorativos, de aperfeiçoamento interno e de formação. Há, de forma intrínseca à imagem da aliança com David um modêlo a ser seguido. 
Essa dimensão antropológica do pensamento e da obra de Schumann abre novas perspectivas para os estudos da história das concepções educativas do século XIX, em particular do movimento orfeônico que se desenvolveu sobretudo nos países latinos, em particular na França. 
Similaridades e aproximações de imagens da antiga mitologia e da tradição bíblica permitem aqui análises supra-nacionais de desenvolvimentos e tendências. Os „aliados de David“ do círculo de Schumann correspondem aqui aos seguidores de Orfeu. O David bíblico e o Orfeu mitológico surgem como diferentes expressões culturais de conteúdos afins, o que se manifesta em ambos os casos pelo símbolo da lira. Em ambos os casos fala-se de aliados em plural, ou seja, os Davidbündler e os orfeonistas constituem um coletivo, uma comunidade.
Neste contexto, pode-se considerar com mais profundidade o singular significado de obras de Schumann no movimento do Canto Orfeônico no Brasil, vinculado sobretudo ao nome de Heitor Villa-Lobos (1887-1959). 
Assim, deixa de surgir estranho o fato de Villa-Lobos ter êle próprio arranjado a Reverie de Schumann para coro mixto a seis vozes, sem letra, publicado na sua Coleção Escolar pela Casa Arthur Napoleão e adotada oficialmente no Orfeão de Professores do Distrito Federal e em Cursos de Orientação e aperfeiçoamento do Ensino de Música e Canto Orfeônico do Departamento de Educação.
Outras obras de Schumann foram arranjadas por F. Albuquerque da Costa, professor de Orfeão do Instituto Nacional de Música. A coleção „Orpheão Escolar“, por êle organizada, e que incluia coros em português a 2, 3 e 4 vozes a capella, vistos como apropriados ao ensino do canto coral nos conservatórios, escolas normais, colégios, escolas primárias e outras instituições, incluia as seguintes peças schumannianas: Lavrador, Berceuse, Canto do Segador e Pobre Orphãosinho. 
Esta última composição, para quatro vozes femininas, com palavras de Maria Augusta Bittencourt, caracteriza-se pelo um profundo sentimentalismo trágico do seu conteúdo:
 „Eu não tenho mãe! Eu não tenho pae! Como hei de cantar? Se na vida eu vou Sob um ceo sem luz, Sem o teu olhar, mamãe, Sem teu braço varonil, papae, Sem o sorriso teu mamãe?! Quem me déra que minha edade em flor podesse eu cantar! Oh! que bom seria O destino meu de feliz folgar...Mas, não! Aves que sem ninho cantam só,  Como a flôr sem brisa, morrem... Eu sou como a flôr Avezinha que mais não cantará....Por que se cantar, logo, á sua voz, longo pranto correrá...“
Em São Paulo, a Biblioteca Orfeônico Escolar, editada pela casa Ricordi, e que salientava ser controlada por uma „Comissão de Autoridades Escolares“, incluiu 5 canções a 3 vozes femininas de Robert Schumann, com acompanhamento de piano, revistas por Martin Braunwieser (1901-1991): Canção op. 29 n.2; Canção de fiar op. 79 n° 24; Nênia op. 114 n. 1; Tercêto op. 114 n. 2 e Sentença op. 114 n. 3.  
Também os orfeonistas de São Paulo cultivavam aqui não apenas um repertório altamente romântico, mas eram formados segundo uma determinada visão do mundo e do homem. 
Esse fato manifesta-se sobretudo no texto da Sentença, a peça de encerramento da coleção: „Querendo o mundo perturbar os teus sentidos, olha para o ceu eterno, onde as estrelas não erram.“ 
Crianças, jovens e professores eram, assim, como orfeonistas, aliados de David no sentido de Schumann, aqueles que não deveriam olhar para a realidade das aparências, que leva a êrros, mas para uma dimensão outra, a-temporal. Esse texto não era apenas cantado, mas objeto de ensino, internalizado pelos orfeonistas segundo o ideal de formação de comunidade unida por laços do movimento do Canto Orfeônico.
Os estudos do movimento orfeônico e da ação pedagógica de H. Villa-Lobos têm sido conduzidos à luz das concepções do Estado Novo. Essa necessária contextualização histórico-política deveria incluir a consideração do singular romantismo que se depreende do repertório cultivado. 
Objeto de pesquisa deveria ser aqui a transformação de significados que esse repertório experimentou na sua atualização nos anos 30 e 40. Se Schumann foi instrumentalizado na Alemanha nacionalsocialista, passando a ser visto como „compositor alemão por excelência“ (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Machern-Pilgerfahrt-der-Rose.html), a sua obra também serviu a concepções educativas do Estado Novo brasileiro. 
As singulares similaridades e também incoerências desse fenômeno em contextos culturais tão distintos chamam a atenção para a necessidade de diferenciações na interpretação de imagens. 
O David e os aliados de David da época de Schumann e Orfeu e os orfeonistas, os seus correspondentes na linguagem mitológica, transmitidos através dos séculos na sua inserção em edifício teológico, experimentaram, com a sua revitalização secularizada à época de Schumann, uma intensa indeterminação de sentidos, inicialmente apenas expressa na vagueza do ideal poético. 
Com o decorrer das décadas, não o tipo da Sabedoria ou o Logos, como no contexto marcado pela tradição religiosa, passaram a ser vistos como guia da comunidade dos aliados, mas sim o do Homem forte, o do lider ou guia.






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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "A imagem do Homem nas concepções schumannianas e a sua presença no movimento orfeônico do Brasil". Revista Brasil-Europa 127/13 (2010:5).http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Bonn-Schumman-e-o-Canto-Orfeonico.html 


http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Machern-Pilgerfahrt-der-Rose.htmlhttp://www.revista.brasil-europa.eu/127/Machern-Pilgerfahrt-der-Rose.htmlhttp://www.revista.brasil-europa.eu/127/Machern-Pilgerfahrt-der-Rose.htmlhttp://www.revista.brasil-europa.eu/127/Bonn-Schumman-e-o-Canto-Orfeonico.htmlhttp://www.revista.brasil-europa.eu/127/Bonn-Schumman-e-o-Canto-Orfeonico.htmlhttp://www.revista.brasil-europa.eu/127/Bonn-Schumman-e-o-Canto-Orfeonico.htmlshapeimage_1_link_0shapeimage_1_link_1shapeimage_1_link_2shapeimage_1_link_3shapeimage_1_link_4shapeimage_1_link_5

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 127/13 (2010:5)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2646




A imagem do Homem nas concepções schumannianas
e a sua presença no movimento orfeônico do Brasil



No bicentenário de Robert Schumann: no túmulo de Schumann, Bonn
Pelos 25 anos do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa
(
Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes, ISMPS e.V.)

 












  1. Fotos A.A.Bispo 2010 ©
    Arquivo A.B.E.



 

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