Vulcões na cultura. Revista BRASIL-EUROPA 126. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

Não possuindo problemas causados por vulcões, o vulcanismo e suas relações com a cultura parecem não ter relevância para estudos referentes ao Brasil. Esse não é o caso, porém, uma vez que vulcões e atividades vulcânicas marcaram profundamente o edifício de concepções e imagens recebido da Europa no decorrer da colonização e da história missionária.

A falta da experiência direta com a magnitude aterrorizante de erupções, da energia e do poder da coluna de fumo que se eleva e tudo escurece, do mar convulsionado, do fogo que jorra das profundezas e da terra calcinada pode prejudicar o entendimento de usos metafóricos de fenômenos vulcânicos na linguagem visual da antiga mitologia, da sua reinterpretação cristã e de suas relações com concepções da geografia e da antropologia simbólicas.

Para a compreensão mais profunda dessas concepções, transmitidas através dos séculos também de forma subjacente em expressões culturais, torna-se necessário considerar o Brasil no contexto de relações transcontinentais e -oceânicas.

Muitos dos imigrantes que participaram da colonização do Brasil trouxeram consigo experiência viva de situações existenciais marcadas por atividades vulcânicas. Este é o caso, em época mais recente, de italianos, portadores de um repertório cultural e devocional impossível de ser totalmente libertado de vínculos e associações com o Vesúvio e o Etna. Nessas expressões, continua a vigorar, ainda que de forma subjacente, reinterpretada e metamorfoseada, complexos de imagens do mundo antigo, em particular da área mediterrânea, entre êles aqueles relacionados com Hephaistos/Vulcano e com Demeter/Ceres.

Atlântico vulcânico: Açores

Há, porém, uma corrente imigratória ainda mais significativa para os estudos euro-brasileiros: aquela proveniente da esfera insular atlântica. Em particular os açorianos, que desde os primeiros séculos participaram intensamente da colonização do Brasil, vieram marcados por experiências vulcânicas das ilhas, trazendo um patrimônio cultural e religioso que indica a procura do homem em situar esses fenômenos em edifício integral de visão do mundo.

Oito das nove ilhas maiores dos Açores tem origens vulcânicas (Corvo e Flores na parte ocidental, Faial e Pico, São Jorge, Graciosa e Terceira no grupo centro, São Miguel na parte oriental). A mais elevada montanha de Portugal no seu todo é o vulcão da ilha Pico (2351 metros de altura).

Se ao emigrarem para o Brasil não encontraram vulcões, o mesmo não se deu com os grupos de açorianos que se dirigiram ao Havai na segunda metade do século XIX. O estudo das expressões religioso-culturais açorianas no Havai, manifestando de forma mais evidente relações entre o mundo natural e aquele da cultura espiritual, pode contribuir à compreensão do sentido da linguagem visual de tradições trazidas pelos açorianos ao Brasil.


Pacífico vulcânico: Havaí

Nas considerações relativas aos vulcões na história cultural, o arquipélago do Havaí assume um significado especial por ser constituido por uma rêde de vulcões. De seus cinco vulcões (os quase inativos Kohala e Mauna Kea, os ativos Hualalai e Mauna Loa, assim como Kilauea), um deles é o maior do globo, com 9753 m do fundo do mar até o seu cimo (Mauna Loa), outro, o Kilauea, o mais ativo vulcão da atualidade.

A lava do Mont Kilauea, cuja erupção mais recente deu-se em 1983, flui constantemente para o mar, onde, com o encontro com as águas, se solidifica. A lava corre não da cratera principal, mas da cratera Pu'u-'O'o, fluindo em parte subterrâneamente.

A evaporação das águas e o levantamento de nuvens torna-se particulamente impressionante ao cair da tarde e à noite, oferecendo um dramático espetáculo de relações entre forças elementares. A presenciação dessas forças torna compreensível o significado que divindades especialmente relacionadas com vulcões adquiriram na mitologia do Havaí. Este é o caso em particular de Pele, a deusa mais conhecida da antiga cultura religiosa havaiana.

Pela ação vulcânica, a paisagem da região encontra-se em constante transformação. Assim, até 1924, havia um lago na cratera Halema'uma'u, dentro da Caldera, e que secou-se antes da erupção, então acompanhada de explosões e de jorros de blocos de rochas. Essa cratera Halema'uma'u era vista como sede da deusa Pele.


Conhecimento de vulcões do Havaí na Europa do século XIX

Dados a respeito dos vulcões do Havaí haviam sido transmitidos desde a sua descoberta em textos de viajantes e missionários. Um panorama dos conhecimentos existentes na primeira metade do século XIX oferece a obra enciclopédica de Grégoire Louis Domeny de Rienzi (1789-1843) (Oceanie ou cinquième partie du monde: revue geographique et ethnographique de la Malaisie, de la Micronesie, de la Polynesie, et de la Melanesie, Paris: Firmin Didot Frères,1836-38); Oceanien oder Der Fünfte Welttheil. Welt-Gemälde-Gallerie oder Geschichte und Beschreibung aller Länder und Völker, ihrer Gebräuche, Religionen, Sitten u.s.w. (...) Aus dem Französischen. Oceanien 2. Band. Polynesien, Stuttgart : E. Schweitzerbart's Verlagshandlung, 1837-1839).

Nessa obra, constata-se que os europeus tinham tido há muito notícias sobre o mito de Pele. Menciona-se, assim, que o vulcão Kiro-Ea teria sido escolhido por essa divindade e outros deuses dos vulcões como a sua moradia mais digna; as crateras seriam os seus palácios, ali se divertiam e o seu folguedo mais comum era o de nadar na lava e nos redemoinhos de fogo sob a música dos trovejamentos produzidos pelo vulcão.

Explica-se que a origem dessas concepções fundamentavam-se na idéia de uma situação original de caos sob as trevas da "grande noite" do início do mundo. Com o início das transformações, ter-se-ia dado a primeira erupção do vulcão. No relacionamento da história do homem com o início, afirmava-se que as primeiras explosões teriam ocorrido sob o reino de Ke-Ua. Os nativos explicariam o surgimento de lava no litoral através de caminhos subterrâneos abertos na montanha por Pele.Toda a área seria tabuizada, permitindo-se ao homem que apenas desse dez passos para dentro dos limites do território. O desobediente incorreria infalivelmente em castigos. (op. cit. ed. alemã 97-98)


Atualidade do interesse sobre vulcões à época da imigração

Em fins do século XIX, textos em periódicos ilustrados divulgavam conhecimentos sobre os vulcões em panoramas gerais, históricos e culturais.

Revistas alemãs de larga difusão ofereciam visões gerais das recentes erupções, em particular daquelas do Vesúvio e do Etna. Salientava-se o incremento de erupções nos últimos séculos. Se de 1036 a 1500  teriam ocorrido apenas cinco erupções, ou seja, uma por século, nenhuma delas muito forte, a situação mudara-se com a explosão de 1631, a maior desde o ano 9 DC. Desde então, as erupções haviam-se tornado mais frequentes, poucas vezes passando 20 anos sem explosões.

As atenções dirigiam-se sobretudo para o Oriente e a área do Pacífico. O mais alto grau de energia constatava-se na parte central do arquipélago malaio, cuja história era marcada pelas explosões do Papandayang (1772), do Sumbawa numa ilha à frente de Java (1822) e, no mesmo ano, o do Galongoon. Esse século de erupções parecia ter-se encerrado com as grandes erupções do Krakatz numa ilha na rota de Sunda, entre Java e Sumatra. Em agosto de 1883, porém, o Krakatau se manifestou.

Salientava-se, nessas publicações, que todo o grupo das ilhas havaianas era de origem vulcânica, constituído por lava. As forças vulcânicas, sempre ativas, manifestavam-se de forma perene na configuração do terreno e na sua movimentação. A ação morfológica dos vulcões apresentava-se aqui de modo grandioso e singular.  Salientava-se o Mauna Loa, ativo, com a sua grande cratera de Mokiawerwer, com uma dimensão de 4200 a 1560 metros e com correntes de lava que atingiam um comprimento de cinco a sete milhas. As suas erupções de 1832 e 1843, e sobretudo aquele que iniciara-se em agosto de 1866 e que durara ininterruptamente 10 meses haviam sido observadas e registradas com precisão. A última dessas erupções deixara uma corrente de lava de 16 milhas de comprimento, uma milha de largura e de 3 a 33 metros de espessura.

Esse vulcão, o maior do Mar do Sul, teve outras erupções nos anos anos de 1868 e 1877. A sua singularidade residia no fato der não ter cimo de cinza e a sua lava ser tão fluida que as gotas eram levadas pelo vento, transformando-se em longos fios de vidro. Esses fios eram chamados pelos nativos de "cabelo de Pelus" (Pele).

Também o Kilauea era considerado em pormenores nas revistas da época por se tratar de uma das maiores crateras ainda ativas. A sua erupção de 1832 havia sido bem observada e registrada. (Hermann Bischoff, "Vulkane", 1794-1818, Vom Fels zum Meer: Spemann's Illustrierte Zeitschrift für das Deutsche Haus,  I (1888-1889). Stuttgart: Kröner, 1889).


Estudos mitológicos: vulcões na antiga cultura havaiana


O mito de Pele tem sido estudado sob vários aspectos, há, porém, a necessidade de pesquisas e interpretações mais diferenciadas. Reconhece-se, na narrativa mitológica, uma rivalidade entre duas divindades, duas irmãs, Namaka, a mais velha, divindade do mar, e a sua rival, Pele. Abandonando o Taiti (Kahiki) por ordem de seu pai, chegou ao Havai de canoa, onde criou vulcões em várias ilhas com uma vara mágica (pāoa).

Essa narrativa sugere que Pele não deveria ser considerada como corporificação do vulcão, mas sim como a sua criadora. A sua irmã, perseguindo-a, combateu-a com as suas torrentes de água. Em Maui, nas encostas do Haleakala, travou-se uma grande luta, onde Pele pareceu ter sucumbido, sendo lamentada pelos seus familiares. Entretanto, continuou a desenvolver as suas atividades vulcânicas. Outras narrativas tratam de seus casos amorosos e de lutas.

Vulcões no processo de transformação cultural

No processo de transformação cultural do Havaí, desencadeado pelo contato com os europeus e, sobretudo, pela ação dos missionários, um momento decisivo foi a superação da crença nas divindades e do respeito e temor de seus poderes.

A transgressão de preceitos, a demonstração de que a quebra de tabus não tinha as consequências até então temidas, e de que portanto as divindades não tinham o suposto poder, foi, em geral, o ato que marcou a erosão de todo o sistema de concepções e imagens da cultura tradicional, seguindo-se a destruição dos locais e objetos de culto. Esse ato demonstrativo de mudança de convicção e sinal de mudança a ser seguido por todos coube aos líderes (Veja artigos no número anterior desta revista).

No Havaí, não poderia ter havido ato de maior poder simbólico do que o do desrespeito aos vulcões e às forças personalizadas em Pele. Segundo a crença transmitida dos antepassados, corria-se aqui o risco de explosões incontroláveis, de correntes de lava que poderiam tudo destruir. A prática desse ato de descrença por parte de um chefe representava assim a maior prova de conversão à nova religião, pois colocava em perigo o seu país e o seu povo.

Esse ato foi praticado por uma mulher, a chefe Kapi'olani (ca. 1781-1841) , uma das primeiras convertidas ao Cristianismo, mãe de Liholiho ou Kamehameha II (1797-1824), o rei que esteve no Rio de Janeiro, em 1824. (Veja artigo a respeito nesta edição)


Vontade de comer bananas e emancipação

A chefe Kapi'olani  é uma dos maiores nomes femininos da história do Havaí e o mais significativo exemplo do papel preponderante desempenhado por mulheres na conversão do arquipélago por missionários americanos e na destruição da antiga cultura.

A sua conversão e o seu ato simbólico marcaram o início oficial do Havaí de identidade protestante. Utilizou-se da autoridade de sua ascendência, de seu cargo e da força da sua personalidade para levar à erosão do sistema social e cultural consuetudinário e assumir papel dominante na política do arquipélago, ainda que á sombra da influência missionária. Marcou, assim, o início do periódo dominado por pastores norteamericanos no Havai e desencadeou o processo que levaria por fim à anexação do Havai aos EUA.

A sua autoridade era resultado sobretudo do fato de ser aparentada com famílias de chefes de várias ilhas do arquipégalo, sobretudo de Kaua'i, Maui e Havaí, devido à política de casamentos de seus antepassados. O seu pai Keawemauhili era chefe da área de Hilo, na ilha de Havaí (Big Island) e meio-irmão do rei da ilha à época da visita de James Cook (1728-1779), quando este foi morto. A sua mãe era uma das mulheres de Kamehameha I (ca. 1758-1819).

Kapi'olani vivenciou, assim, o período das primeiras vindas de europeus, das guerras de unificação e do período de união sob Kamehameha I. Cresceu com uma tia, em Keali, na área de Kona, nas proximidades dos centros religiosos da baía de Kealakekua. Recebeu, assim, uma formação nas tradições e práticas da antiga religião do Havaí, fundamentada no sistema de preceitos que ordenavam a vida social (kapu).

Uma experiência negativa na sua vida com relação ao tabu de comer bananas para mulheres parece ter marcado de tal forma a sua vida que a levaria a empenhar-se na abolição daqueles tabus existentes para mulheres ao preço de trair e destruir a cultura tradicional havaiana: o rapaz por ela enviado para colher bananas foi prêso e sacrificado. Esse impulso de transgressão de algo para ela tabuizado criou uma situação psicológica que a levou a atos posteriores que destruiram as bases tradicionais do papel masculino na sociedade e ao aumento de sua influência e poder, a preço da destruição da própria cultura e da entrega do país e do seu povo aos missionários.

Ainda que possivelmente casada com o chefe Kuakini, governador da ilha, manteve ligações com muitos homens de esferas de liderança, aumentando assim a sua influência. À época da morte de Kamehameha I°, em 1819, a sua ambição de poder, à frente de outras mulheres descontentes com a situação na cultura tradicional, inclusive com o preceito que impedia que homens e mulheres comessem juntos, levou a que ostentativamente recebem bem concepções de missionários norte-americanos que colovam em questão a validade da antiga religião e suas regras.

Receptividade a missionários como estrategia feminina

Kapi'olani já tinha tido contatos a cultura européia a partir da estadia de George Vancouver (1757-1798) na baía de Kealakekua, em 1793 e 1794. Em 1820, ali chegou o missionário norte-americano Asa Thurston (1796-1868), que a encontrou, segundo as suas palavras, tomando banho de sol e passando óleo de coco no corpo "tal como uma vaca marinha", com os seus dois maridos, todos nús, em estado de "intoxicação sensual".

Com tais palavras, esse missionário salientou a vida sexualmente livre que as mulhes gozavam na antiga tradição. O rancor de Kapi'olani pelos homens que desempenham papéis de liderança no antigo sistema e o seu desejo de superação eram tais que a levou a seguir os missionários a Honolulu, em 1821, quando ali fundaram uma escola.

Foi uma das primeiras a aprender a ler e a escrever, o que a colocava em posição vantajosa. Teve que constatar, porém, que o Protestantismo desses missionários dela exigiam muito mais e colocavam muito mais normas do que aquelas do antigo sistema. O caminho, porém, já havia sido traçado e o poder de Kapi'olani dependia de seus elos com os missionários. Para alcançar os seus intentos de abalar a autoridade dos homens de seu povo, abandonou até mesmo a liberdade sexual que havia fruido, passando a viver com só um marido. Tornou-se, assim, apoio de novos missionários.

Para a cristianização da maior ilha do Havaí, o missionário inglês William Ellis (1794-1872) e os missionários americanos idealizaram a formação de uma rêde de estações. Em 1823, auxiliou a William Ellis em escolher locais para estações missionárias, apontando, entre outros, o povoado de Ka'awaloa na baía de Kealakekua.

Nessa ocasião, visitando o vulcão Kilauea, William Ellis comeu algumas amoras silvestres que ali cresciam. Essas frutas eram, porém, consideradas como dedicadas à Pele. O seu consumo deveria ter sido precedido por orações e ofertas. Apesar dos receios dos nativos que viam na lava do vulcão sinais do descontentamento da divindade, Ellis foi protegido por Kapi'olani.


O vulcão no início da estação missionária de Waiakea

A primeira missão na partre oriental da ilha do Havaí (Big Island), a Hilo Station, hoje conhecida como Haili Church, foi a missão de Waiakea na área de Hilo. Em 1824, abriu-se a primeira igreja do American Board of Commissioners for Foreign Missions sob o pregador Joseph Goodrich, tendo como professor Samuel Ruggles (1795-1871).

Em 1824, Kapi'olani construiu uma pequena casa para servir de sala congregacional. Os serviços de culto iniciaram-se em abril desse ano. Com esse ato de construção de uma igreja por nobre nativa, a primeiro da ilha, Kapi'olani fazia uma manifestação de seu desafio aos líderes do seu país, demonstrando que, emancipadamente, levantava uma casa para homens estrangeiros que não aceitavam os preceitos e os regulamentos por aqueles impostos, e que lhe permitiam comer bananas.

Os missionários norte-americanos não tiveram maiores escrúpulos em utilizar-se dos ressentimentos de Kapi'olani e de sua ambição de poder para induzí-la a cometer o ato que desmoralizou todo o sistema tradicional de concepções e levou à destruição completa da antiga cultura havaiana.

Como haviam constatado que o comer de frutas dedicadas à divindade Pele muito representava aos nativos no seu respeito e temor pelas forças naturais, criaram uma situação de coerção na qual Kapi'olani deveria cometer o ato de transgressão, uma vez que êles próprios, para isso, não tinham coragem.

Já em dezembro desse ano, Joseph Goodrich encontrou-se com a chefe Kapi'olani no vulcão Kilauea para o seu ato de demonstração da nova fé.

Uma das principais dificuldades encontradas para levar os nativos a abandonar a sua antiga religião era o respeito e o temor que sentiam pelas forças vulcânicas, uma vez que muitos haviam perdido familiares na erupção de 1790. Nessa época, já muitos locais de culto haviam sido destruídos, mas o povo guardava ainda uma especial veneração pelo do vulcão Kilauea, uma vez que continuava ativo.

Os missionários explicaram a Kapi'olani que não precisaria ter mêdo, pois o Deus que pregavam era o Criador de Tudo e aquele que criara e colocava regras, acima de todos os tabus.

A concepção de Deus como Aquele que ordena e regra, que dá regras às regras passou a ser essencial no mundo anteriormente marcado por tabus. Para dar-lhe coragem, ensinaram-lhe hinos religiosos que, como orações cantadas, deviam ser por ela entoados ao cometer o ato. Ela foi esperada à base do vulcão pelo pastor Goodrich, da missão de Hilo. Apesar de advertida pelos guardiães do local que deveria fazer as orações tradicionais para não correr risco de morte pela violência do vucão, Kapi'olani entoou o hino cristão em lugar do canto dedicado a Pele.

"Ela colheu as amoras sagradas das margens do vulcão, desceu até a lava fervente e ali, cantando hinos cristãos, atirou-as no lago de fogo. Esse foi o ato que quebrou para sempre o poder de Pele, a divindade de fogo, no coração do seu povo." (Liliuokalani, Havai's Story by Havai's Queen, Honolulu: Mutual Publishing 1990, 1-2)

Esse ato foi realizado antes de Kapi'olani ter sido batizada (!), em outubro de 1825, o que coloca em luz ainda mais desvantajosa os missionários da época, que utilizaram de seus ressentimentos e ambiçoes e a colocaram em perigo. Com o poder adquirido na nova situação, e com a sua personalidade dominadora, passou a controlar as suas áreas de Big Island, ao sul de Kona e Ka'u.

A literatura que heroiza a ação dos missionários acentua que ela visitava também os menos privilegiados da sociedade, o que não seria comum na ordenação anterior da sociedade.

Entre os muitos processos de graves consequências desencadeados por Kapi'olani deve-se contar também aquele que levaria à entrega gradativa do chão de seus antepassados aos norte-americanos. Assim, pelo fato de Samuel Ruggles, em 1828, ter achado que o litoral era muito quente, dela conseguiu terras elevadas, em local que antigamente havia sido utilizado para a plantação de taro, necessário à alimentação do povo. Por fim, em 1829, cometeu o último ato simbólico de destruição da antiga cultura: retirando os restos dos chefes ancestrais de Pu'uhonua o Honaunau, deu ordem a que esse último templo fosse também destrúido.

A inversão da situação de poder no Havai demonstrou-se no fato de que agora foi Kapi'olani que passou a morar nas proximidades de casas de missionários. Passou a viver segundo o modo de vida dos estrangeiros, adotando os seus modos alimentares, para o qual criou um jardim onde plantou árvores, verduras e frutas da Europa e dos Estados Unidos, entre elas goiabeiras e laranjeiras. Aprendendo a tomar café, plantou também mudas que se encontram no início da história cafeeira dessa zona do Havai, conhecida hoje pelo seu "Café Kona". A sua condescendência para os missionários foi tão grande que, nos seus terrenos, o pastor Cochran Forbes (1805-1880) levantou uma grande igreja sólida, de pedras, em 1839: a igreja Kahikolu.

Atividades vulcânicas no Havai de identidade cristã

Mesmo após a destruição do antigo edifício religioso, narrativas e imagens míticas permaneceram vivas em contos e cantos do Havai. Os vulcões continuaram a exercer o seu fascínio, sendo visitados por membros das famílias de chefes.

Na sua obra sobre a História do Havai, a última rainha do país, Liliuokalani testemunha o significado dessas excursões reais. Um dos capítulos de seu livro é dedicado ao Mauna Loa.

Quando, em 1880, recebeu a visita de Helen Aldrich de Berkeley (1818-1915), California, com ela aparentada, Liliuokalani realizou uma excursão à grande ilha de Havai para visitar o vulcão considerado como uma das maiores maravilhas dos mundo. A sua chegada foi precedida pelos primeiros sinais da erupção do Mauna Loa e que se tornou a maior e mais duradoura até então conhecida.

"As though to illuminate in honor of my visit, on the night preceding our ascent of the mountain a bright glow was seen on the top of Mokuaweoweo. This was the portent which preceded that great flow of lava which soon commenced from Mauna Loa, and took its course down the sides of that mountain towards the city of Hilo. We were thus witnesses from the very beginning of one of the most extensive and long-continued eruptions which has ever been recorded in history, for it was protracted over a period of eleven months." (op.cit. 69)

A excursão da rainha dirigiu-se à cratera do Kilauea, descrevendo as suas peculiaridades quanto às erupções.

"The eruptions are not usually from the summit, but generally through fissures in its sides. One of these is the crater lake of Kilauea, a region of perpetual fire, of an activity more or less pronounced, yet never entirely extinct, and situated some twenty miles or so east from the summit, ant an elevation of about four thousand feet.  It is one of the few, if not the only one, of the volcanoes in the world which can be visited at the periods of its greatest displays without the least danger to the observer; because it is always possible to watch its bubbling fires from a higher point than their source. It is not the lava from the burning lake which makes its way down the mountain, but that from other places where the concealed fires of Mauna Loa burst forth."

A rainha e as suas acompanhantes esperaram o cair do sol para poder melhor apreciar o espetáculo, da mesma forma que os visitantes da atualidade:

"After our refreshment, darkness quickly succeeded the setting of the sun (there being no long twilight, as in more northern climates); so we spent the evening in watching the fiery glow in the crater, the brilliance of which seemed to be spreading along the level floor or surface of the pit.

(...) but at two o'clock we were all awakened by our host to see an exhibition such as has seldom been furnished for the inspection of any of the many tourists who visit that region. This was a most brilliant illumination at the summit of Mauna Loa itself; and far from lessening, its manifestation seemed to render more vivid, the fires of the crater of Kilauea." (op.cit. 70-71)

Persistência de práticas no "folclore"

Sob essa impressão da erupção do Mauna Loa, a rainha Liliuokalani documenta a persistência de práticas de culto à Pele, apesar do Cristianismo havaiano. Toma cuidado, porém, de salientar que aqui se tratava já apenas de práticas tradicionais, sem maior significado religioso, comparando-o com aquelas dos cristãos, tais como o atirar arroz em recém-casados.

"They were all provided with some offerings to Pele, the ancient goddess of fire, reverenced by the Havaian people. This custom is almost universal, even to the present day. Those born in foreign lands, tourists who scarcely know our ancient history, generally take with them to the brink of the lake some coin or other trinket which, for good luck, as the saying is, they cast into the lava. Our people, the native Havaians, have no money to throw away on such souvenirs of the past; but they carry wreaths of the pandanus flower, leis, made like those seen aboard the steamers at the daparture of frieds, necklaces, and garlands of nature's ornaments, which are tossed by them into the angry waves of the basin. As I have mentioned this incident, my thoughts have gone back to that paragraph wherein I wrote of the overthrow of the superstitious fears of the fire-goddess through the brave acts of my aunt, Queen Kapi'olani, when she defied the power of the elements at this very spot. So, to prevent misunderstanding now, perhaps it would be well to notice that this propitiation of the volcano's wrath is now but a harmless sport, not by any means an act of worship, very much like the custom of hurling old shoes at the bride's carriage, or sending off the newly wedded couple with showers of rice; usages which form a pleasant diversion in the most highly cultivated and educated communities." (op.cit. 72)

Banda de música em visita real ao vulcão e bases teológicas

Um de seus primeiros atos quando Liliu'kalanai assumiu a Regência, durante a ausência de seu irmão Kalakaua (1836-1891), apesar das dificuldades então existentes de viagens, foi a de visitar Hilo e o vulcão vivo da grande ilha. Em grande comitiva, fêz-se acompanhar pela Banda de Música Real, constituída por músicos nativos, transformando a excursão em verdadeiro acontecimento cultural para os habitantes.

"(...) I had a desire to visit Hilo again; and so, with a large company of retainers, as was fitting to my regency, I startet on this excursion. (...); and I invited the Royal Havaian Band of native musicians to form part of my music forms to me a great part ot the enjoyment of life, but because I wished to bring with me, to my friends and my people on that island, a delight which I knew to them was quite rare, and in which I was quite sure all would find much satisfaction.

It was in the month of August, six months after I had watched the commencement of that lava flow which is now celebrated in the history of that region of wonders. I found Mauna Loa was still alarmingly active, and that three streams of molten fire were creeping down its sides, so that the good people of Hilo were living in daily apprehension that the fiery element would reach their doors, their houses be consumed, and their lives, perhaps, imperilled by the rivers of flame. It was a grand and beautiful sight, in spite of the suggestion of danger, as you rode along the borders of the lava stream, which had chosen the channels of the water courses or filled the basins where these had formerly spread themselves out into pools of refreshing fluid; the molten masses retained the heat of the source of their origin, even when rolling along, or falling as a great cascade into some hollow, which was soon filled up with the melted elements of the earth's centre, making one levelplain where had been channels or pits in the earth's surface.

O relato da rainha Liliuokalani não é apenas uma das mais expressivas páginas dedicadas a vulcões, à grandiosidade ao mesmo tempo fascinante e aterradora de suas atividades e de suas consequências para a população local. As suas palavras demonstram os elos entre a religião e o mêdo despertado pela demonstração de poder das forças ctônicas e do fogo. Elas testemunham a onda de religiosidade que tomou conta da cidade em perigo, a realização de serviços de orações e culto e a intensa atividade de pastores. Indicam que o acalmamento do vulcão após alguns dias foi por estes divulgado como sendo resultado das orações que haviam promovido.

(...) The residents of Hilo, who lived in their handsome houses constructet of wood and so easily inflammable, on finding that time did not abate the extent or volume of the flow, lived in terror of losing life and property, dreading at any moment to see the fiery river turn its course towards their dwellings. Consequently the churches were opened, meetings were held, and earnest prayers offered to the Almighty Ruler held, and earnest prayers offered to the Almighty Ruler of the elements that he would spare the people from the great misfortune which threatened to overtake them. To one of these prayer-meetings I received a special invitation, and attended with my suite. In the course of about a week thereafter, there was no doubt in the attitude of the volcano; its flow had been stayed, and the volume of the lava was diminishing, although for another week sparks of light or streaks of flame were here and there to be seen, but the great danger was over. Naturally, devout men remembered the days of fervent prayer, and said that the God to whom they had cried at the moment of peril hat listened to the supplications of his people, and delivered them from threatened evil." (op.cit. 81-82)

As palavras de Liliuokalni indicam, também, que a erupção do vulcão havia sido vista como uma demonstração de forças diabólicas e dos elementos; esses porém, são dominados pelo Todo-Poderoso. Essa interpretação de Liliuokalani revela o mecanismo de transformação cultural posto em vigência com a cristianizacão do Havai e que é conhecido de outros contextos, desde a Antiguidade: os elementos não devem ser venerados ou temidos, pois o homem, ainda a eles sujeito enquanto vive, já está libertado para o Deus que os criou e os controla. Se os homens não se orientam segundo o Onipotente, mas sim se sujeita aos elementos, esses tornam-se demônios. As divindades do antigo Havai transformaram-se, assim, ou em elementos de narrativas lendárias, de folclore, ou em entidades diabólicas.

Vulcões e o Divino Espírito Santo dos açorianos

O estado de espírito que reinava em Hilo após a grande erupção do vulcão e a constante presença dos riscos representados pela lava foi aquele encontrado pelos açorianos que vieram para o Havai e dos quais muitos se estabeleceram em Hilo.

Esses imigrantes traziam consigo todo um patrimônio cultural e espiritual marcado pela adoração ao Espírito Santo como uma das pessoas da Santíssima Trindade. Os fundamentos bíblicos que explicam o significado especial do culto ao Espírito Santo em contextos marcados pelo vulcanismo encontram-se nas frases primeiras do livro Gênesis. A tradição secular da interpretação dessas frases, e que marcou as mais diversas correntes de pensamento, a mística e as expressões culturais, é a de que o Espírito, que tudo transpassa, tudo vivifica e movimenta. A movimentação das águas e da terra originaram-se do Espírito que por tudo passou, e, na contemplação da natureza, pode-se ler vestígios - apenas traços indicadores - de sua passagem na movimentação do todo e de suas partes.

Compreende-se, assim, que os açorianos, nas suas relações com um meio ambiente e social marcado pelos receios eruptivos e pelo fluxo da lava orientassem-se sobretudo pela adoração do Espírito Santo e na qual se fundamentavam as suas principais expressões culturais. O eterno fluxo de fogo e terra que se dirige ao mar e com êle se confronta deixando que se eleve portentosas colunas de vapor dirige o pensamento ao Espírito que se movimenta e que tudo movimentou o que é movimentado. A perspectiva teológica dirigida ao Espírito Santo, fundamenta uma cultura baseada em expressões de fogo de amor ao próximo, caridade e espírito comunitário.

Diferenças de cultura religiosa: católicos portuguêses e protestantes havaianos

As considerações feitas pela rainha Liluokalani acima citadas indicam uma cultura religiosa cristã com outras conotações, derivada da missão protestante das ilhas. A atenção dada nas suas reflexões de cunho teológico é ao Deus que tudo ordena, regulamenta e governa. A visão é dirigida a aspectos da ordem, da forma, da governança, das leis.

Não parece, porém, que essa diferença de concepções seja expressão de outro entendimento do pensamento teológico-filosófico da leitura de sentidos da natureza segundo vestígios da passagem do Deus Uno e Trino. Segundo esse pensamento, a percepção de princípios de ordenação e regras no mundo perceptível pelos sentidos seriam sinais indicadores da passagem do Filho.

Fluxos de vulcões, erupções, tremores de terra, caldeiras de fogo não sugerem, muito pelo contrário, princípios ordenadores. A explicação dessa tendência teológica da religiosidade Havaiana - tal como expressa no texto de Liliukalani - não tem significado filosófico-teológico profundo como se fosse uma concepcão mais intensamente cristocêntrica do que aquela dos imigrantes católicos.

Ela foi resultado simplesmente das circunstâncias culturais encontradas pelos missionários e do seu pragmatismo no alcance de seus fins. Tendo constatado que a antiga sociedade havaiana - e a sua visão do mundo e do homem - baseava-se de forma particularmente intensa em conceitos de preceitos e normas, regras a serem guardadas, observâncias, tabus, e a sua transformação apenas poderia ser alcançada com a demonstração de que esses preceitos eram vãos, os missionários procuraram sobretudo salientar uma concepção de Deus como o supremo governante e legislador.

A transformação do Havai não foi, assim, marcada tanto por um direcionamento do pensamento e das ações ao amor e è caridade, mas sim antes por um pêso dado a concepções de ordem, de governança, de criação de regulamentação judicial e penitenciária, de divisão de terras e de outras medidas antes reveladoras de um cunho mais racional e pragmático da cultura de seus enviados do mundo anglo-americano.

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Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. (Ed.). "Vulcões na história das transformações culturais no Pacífico e no Atlântico
Hinos na desacralização do Kilauea pela chefe Kapi'olani (ca. 1781-1841)
e significado do culto ao Espírito Santo no contexto vulcânico dos Açores". Revista Brasil-Europa 126/7 (2010:4). www.revista.brasil-europa.eu/126/Vulcanologia-e-cultura.html



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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 126/7 (2010:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2614




Vulcões na história das transformações culturais no Pacífico e no Atlântico
Hinos na desacralização do Kilauea pela chefe Kapi'olani (ca. 1781-1841)

e significado do culto ao Espírito Santo no contexto vulcânico dos Açores



Pelos 25 anos da oficialização alemã do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa
(
Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes (ISMPS e.V.)


 

















  1. Mount Kilauea e Hilo
    Fotos A.A.Bispo e H. Hülskath©

 

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