Serenatas e serestas: Havaí. Revista BRASIL-EUROPA 126. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

Em estudos que procuram relacionar o Brasil e o Havaí, o observador constata o significado das noites tropicais e suas expressões culturais em ambos os contextos. Ainda que naturalmente não delimitada ao Brasil e ao Havaí, a atmosfera vespertina e noturna em clima quente, ao cair do sol e à luz do luar, sobretudo à beira-mar, favorece o estar e o passear ao ar livre, ao fruir despreocupado do bem sentir-se, da tranquilidade, da paz interior, do convívio humano e dos sentimentos ternos de amor.


Não apenas em regiões de praia, mas nas praças de cidades do interior, com o "footing" nos jardins, as horas vespertinas proporcionam ocasiões para relacionamentos sociais livres de obrigações impostas pelas necessidades e pelo trabalho, de namoro e de um estado de espírito receptivo à música e a outras expressões culturais.


Não apenas as apresentações de bandas de música em coretos do interior, mas também os pastorís, os presépios, as barcas e outras tradições brasileiras, sobretudo no Nordeste do Brasil, adquirem um fascínio especial e um poder de doce emotividade graças à atmosfera amena das noites de verão e que representam um refrigério em dias de sol tórrido e de calor abafante.


Paralelamente, as "noites havaianas" surgem como pontos altos na vida social das ilhas e na sua representação no Exterior. O dourado do céu e das águas ao pôr-do-sol, sob palmeiras das praias, em barcos ou em bares de Honolulu ou em Maui constitui motivo constante em publicações de turismo e marca uma imagem romântica das ilhas havaianas.




Essa imagem no Exterior tem consequências para a própria vida sócio-cultural do Havai, uma vez que passam a ser procuradas por visitantes que segundo ela se orientam e que procuram nas ilhas a realização de sonhos e aspirações. Sobretudo Waikiki transformou-se em local privilegiado para noivados e casamentos, com celebrações e festas ao ar livre, em hotéis à beira-mar, alguns deles trazendo a aura do período monárquico havaiano. Neste sentido, o que o Taiti é para os europeus, sobretudo os franceses (Veja número anterior desta revista), o Havai é para os norte-americanos e japoneses.


A música foi um dos veículos privilegiados de difusão dessa imagem do Havaí, de suas noites tropicais e de versões exóticas de sonhos de noites de verão. Significativamente, um dos conjuntos que mais contribuiram à criação e à propagação dessa visão do Havai na Europa de fins dos anos 30 e da década de quarenta foi o de Felix Mendelssohn (+1952) e seus Hawaiian Serenaders.


Serenaders e Serenade/Seresteiros e Seresta


Estudos referentes à Serenata iniciam-se em geral com a consideração do próprio termo. Lembram de seus elos com o fim da tarde e a noite (italiano sera), significando uma prática de execução musical nessas horas noturnas, correspondendo a outros tipos de atividades após o dia de trabalho e antes do dormir (por ex. serão, seroar, seroada, serenim).


O termo tem relações com sereno (lat. serenus), relacionado com a noite e com o estar ao ar livre, ao orvalho ou relento (por ex. ao sereno, sereno do luar, tomar sereno), e também com serenidade, calma, tranquilidade, mansidão, sossêgo, paz, tanto no sentido atmosférico e da natureza (por ex. céu sereno, tempo sereno, mar sereno) como no sentido de um estado de espírito calmo, cheio de paz, de doçura, sem perturbações e inquietações.


Tem-se, assim, um complexo de significados e associações que envolvem determinado período do dia, do ciclo do ano - aquele que permite execuções ao ar livre à noite - e com um estado de espírito e expressão.


Alguns autores salientam, correspondentemente, o especial significado da prática da serenata nos países mais quentes da Europa, sobretudo aqueles do Mediterrâneo, onde as noites agradáveis de verão convidam à fruição da atmosfera mais fresca ao ar livre em passeios e divertimentos, sobretudo em regiões marcadas pelo mar. Assim, Veneza tornou-se particularmente conhecida pela prática da Serenata.(Owen Jander,"Serenata", Musik in Geschichte und Gegenwart 16 Supplement, Kassel: Bärenreiter 1979, 1691ss.) 


Tem-se, aqui, um elo com o folgar após o dia de trabalho, com o prazer de atividades que não representam obrigações e que não são forçadas pela necessidade. Compreende-se, assim, que a Serenata surja na história da música, vinculada a composições que trazem a designação de Divertimento.


Dimensão antropológica: o Homem sereno


O que tem sido pouco considerado, porém, é a dimensão antropológica desse complexo de significados. A serenidade como qualidade de um ânimo sereno indica um estado do homem interior que não se deixa abalar perante as tempestades e os perigos da vida ou das forças das ambições e paixões. O homem que alcançou a serenidade é aquele que não é mais dominado por essa orientação segundo as necessidades impostas ou impulsionadas pelo mundo exterior ou perceptível pelos sentidos, que não é escravo, mas livre. Tornou-se um instrumento, uma caixa de ressonância no qual podem vibrar as cordas de sua alma.


Nessa liberdade interior, tem a possibilidade de dirigir a sua atenção, os seus sentimentos e a sua vontade para o alto, para o honrar do objeto de sua admiração e afeto. Representa o início de um processo ascensional.


Compreende-se, assim, a relação da prática da seresta com o olhar ao alto, com músicos que cantam para amadas ou em honra a mulheres admiradas abaixo de janelas, ou de grupos que louvam personalidades de nível mais elevado na sociedade. Em ambos os casos, representam atitudes de cortesia e homenagem. Pode-se entender, assim, a razão pela qual a Serenata também serviu à prestação de honras no decorrer de sua história, em particular por ocasião de datas comemorativas de nobres, visitas de autoridades estrangeiras ou outras solenidades de Estado (Complimento, Cantata, Festa teatrale, Dramma per musica, Abendmusik).


Neste contexto, compreende-se o significado do uso popular do termo "cantar" no sentido de "dar uma cantada", seja amorosa ou de bajulação.


Simbolismo da barca e do navegante


O homem que conseguiu alcançar na sua vida um estado interior de serenidade pode ser comparado com aquele navegante que, após tempestades em mar agitado, experimenta a tranquilização das ondas, podendo a sua nave prosseguir a viagem em mar calmo, em direção ao porto e à terra firme. Essa linguagem figurada permite que se compreenda a imagem da barca, também constatada em expressões da Serenata (G. Carissimi, I Naviganti; A. Stradella "Qaul prodigio è ch'io miro", Il Barcheggio). O grupo protagonista, ao som da música, andava pelas ruas em nave simbólica ou um conjunto de metais executava uma Serenata numa barca, de modo que o som, distante, alcançava apenas suavemente os ouvintes.


Não é necessário salientar-se a antiguidade dessa imagem, tanto na mitologia como na tradição bíblica. Poder-se-ia lembrar aqui da nave Argo, da arca de Noé e do seu anti-tipo cristão, a nave da Igreja. É uma linguagem visual que permanece viva em várias expressões culturais em vários países, entre êles o Brasil, e na qual o homem surge como marujo em viagem pelo mar.


Essa imagem da viagem do homem pelo mar da vida pode ser interpretada também no sentido do perigo que representa a vinda de tempestades marítimas para a nave e seus marinheiros. O homem experimenta figurativamente esse mar sereno em idade infanto-juvenil, quando ainda não é convulsionado pelas ambições e escravizado ao trabalho, quando vivencia a liberdade e o despertar de sentimentos ternos e afeições. A imagem serve, assim, para lembrar que o homem não deve cair em situação comparável ao mar agitado, deve manter ou recuperar a liberdade de sua primeira juventude, ou seja, rejuvenescer-se interiormente.


Compreende-se, assim, que são sobretudo jovens que participam em expressões tradicionais marcadas por essa imagologia. Em estreito relacionamento com esse complexo de significados pode ser considerado o elo da Serenada com a tradição pastoral e bucólica, onde se decanta de forma idílica a pureza e a ingenuidade.




Estado de liberdade do Homem e ar livre


O complexo de significados do termo Serenata indica primordialmente ocasiões para execuções musicais, ou seja à noite e ao ar livre, podendo incluir diferentes gêneros musicais, formas e formações instrumentais. Seria, assim, inadequado considerar-se a Serenata - e a Seresta - sob o ponto de vista morfológico no sentido convencional do termo.


Sob Serenata designaram-se diferentes configurações musicais e práticas de execução, composições vocais e/ou instrumentais, canções, formações camerísticas e orquestrais, apresentações de cunho cênico, sendo difícil tentar diferenciá-la de obras designadas com outros termos, tais como já citado Divertimento e Cassatio. Na estruturação da Serenata pode-se compreender o predomínio de um princípio de Suíte, incluindo três ou quatro peças, em geral de danças. O termo Serenata foi empregado para a designação de obras com caráter de Suíte por autores do Barroco, do Pré-Classismo.


O vínculo com expressões musicais populares já se manifestou na primeira composição conhecida por essa designação, no Il Primo Lib. de Madrigali a 6 vozes de Alessandro Striggio (1560). Em W.A.Mozart, a Serenata atingiu nivel de alta expressão artística, lembrando-se aqui, entre outras, de sua Eine kleine Nachtmusik (K.-V. 525).


Simbolismo organológico: guitarra, violão e ukelele


A imagem acima mencionada do homem que, livre, deixa vibrar as cordas de sua alma, tornando-se um instrumento, fazendo de seu corpo caixa de ressonância, permite que se compreenda o significado de instrumentos de corda dedilhada do tipo guitarra na prática da Serenata, uma vez também que podiam ser executados ao andar.


Das características desses instrumentos derivaram práticas de execução e interpretação de cunho conotativo, por exemplo o uso de pizzicato e acordes quebrados em Serenatas escritas para outros instrumentos.


O vínculo com a música popular, ligeira, de danças e de salão marcou em grande parte o desenvolvimento da prática seresteira no século XIX. Não só a Serenata continuou a incluir peças conhecidas e de cunho leve e recreativo, mas também, reciprocamente, passou a marcar o desenvolvimento da música popular.


Da "cantada" à procura do favor do público


Sob determinados aspectos, o desenvolvimento histórico de expressões relacionadas com a Serenada parece indicar que o cunho laudatório à aristocracia do Barroco tenha passado a ser dirigido ao povo, servindo a seu divertimento. (Owen Jander, op.cit. 1696) Teria havido, segundo essa interpretação, uma transformação cultural da própria Serenata, e o seu cunho de cortesia teria assumido a conotação de conquista da preferência popular. Compreender-se-ia, neste contexto, o fator da competição de atrativos em grupos de pastorinhas do Nordeste do Brasil, onde é deixado ao público, fascinado, escolher entre as representantes do azul e do encarnado.


Entretanto, essa interpretação parece não corresponder à profundidade necessária às análises da linguagem visual das tradições. Bastaria lembrar aqui o papel da escolha que coube a Paris confrontado com a beleza das divindades - Venus/Afrodite, Minerva/Atena, Juno/Hera.


Fruição da atmosfera noturna no antigo Havai


Saraus e encontros lítero-musicais vespertinos em residências de camadas sociais mais elevadas da sociedade havaiana representaram significativas ocasiões na história cultural do Havai a partir de meados do século XIX. Tem-se referências a encontros desse tipo ao redor da personalidade da rainha Emma (1836-1885) (Veja artigo nesta edição), da Princesa Ruth Ke'elikolani (1826-1883) e da rainha Kapiolani (1834-1899). Essas ocasiões ofereceram impulsos à recordação nostálgica de valores culturais do passado e da criação de composições de cunho sentimental, um cultivo de expressões ternas e doces que passou a ser visto como característica da mentalidade e da cultura do Havaí.


Sob Kalakau (Veja artigo nesta edição), reuniões noturnas e apresentações de música e dança ao ar livre desempenharam importante papel na vida social e cultural e, sobretudo, na revitalização de tradições de dança e música. Também a apresentação da Banda de Música Real à noite, nos jardins do Palácio Real ou no seu pavilhão passou a ser elemento significativo nas horas de lazer noturno de Honolulu.


O passear em tardes e noites de sábado e domingo em trajes atraentes pelas ruas é testemunhado pela história de vida de Ioane Ukeke, executante do instrumento de corda havaiano de mesmo nome que daria o seu lugar seresteiro à guitarra e instrumentos similares. (Veja artigo a respeito nesta edição).




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Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A.. "Cordas soltas da alma na serenidade das noites havaianas e brasileiras: Serenatas e serestas em diferentes contextos e suas implicações músico-antropológicas". Revista Brasil-Europa 126/17 (2010:4). www.revista.brasil-europa.eu/126/Serenatas.html



  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.




 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 126/17 (2010:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2624




Cordas soltas da alma na serenidade das noites havaianas e brasileiras
Serenatas e serestas em diferentes contextos e suas implicações músico-antropológicas

Trabalhos no Havaí pelos 25 anos da oficialização alemã do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa
(
Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes - ISMPS e.V.)

 





  1. Waikiki e Maui (duas últimas da coluna)
    Fotos A.A.Bispo e H. Hülskath
    ©

 

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