Schwerte. Revista BRASIL-EUROPA 126. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

A edição anterior desta revista publicou relatos sobre eventos culturais e artísticos em duas cidades alemãs no âmbito da programação da região de Ruhr como uma das Capitais Européias da Cultura 2010. Como então salientado, a singularidade da escolha da região do Ruhr para Capital Européia da Cultura reside no fato de aqui não se tratar de uma única cidade, mas sim um conjunto de cidades que passam a ser consideradas como uma metrópole.


Salientou-se, nesses textos, o processo de transformação em que se encontra toda essa região devido ao fim da fase econômica e social determinada pela mineração e que marcou a sua história.


A tentativa de superação dos problemas através de uma reorientação da região por meio da cultura e da ciência, desenvolvendo uma nova imagem que acentua o potencial de criatividade de um conjunto de cidades atingidas pela crise, surge como de particular interesse para outras regiões do mundo de passado industrial, também no Brasil.


Essa estrategia de refuncionalização e revalorização, válida não apenas para uma cidade, mas para todas aquelas inseridas numa fase histórica regional da extração mineradora contribuiu para que se atentasse ao fato de que toda a região constitui, na realidade, um complexo de situações urbanas que poderia ser considerado como uma metrópole, ainda que sui generis. Esse intento, naturalmente levanta questões sobre a concepção urbanológica de metrópole e de processos metropolizadores.


Um acontecimento importante nessa tentativa de acepção de uma unidade metropolitana na diversidade das cidades da região, cada qual com a sua própria história e suas tradições, foi a nomeação de todo o complexo regional como Capital Européia da Cultura 2010. Cinco cidades maiores foram escolhidas como polos, centros irradiadores e pontos de partida dos diversos areais, compreendendo o todo 53 cidades. Uma dessas cidades é Schwerte, aqui considerada.




Schwerte como complexo urbano de antiga história e simbologia


Independentemente da nova situação que se cria com a inserção de Schwerte no complexo metropolitano regional, a própria comunidade é marcada pela unidade na diversidade de seus componentes. Desde 1975, com uma reforma territorial de comunidades, criu-se um todo constituído pela própria Schwerte, Westhofen e várias outras localidades, assim como partes de Holzen e Lichtendorf. Todas essas comunidades são marcadas por uma história própria que, em alguns casos, remonta à Idade Média. Assim, Schwerte, a antiga Suerte, surge mencionada já em documento de 962 do abade Engelbert de Werden, Essen, o da comunidade Ergste em fonte de 1096, e o de Westhofen em documento de 1248.




A história da artesania metalúrgica de Schwerte não é recente. Já no século XIV foi responsável pelo florescimento econômico da localidade, então parte do conjunto de cidades comerciais da Hansa. Tornou-se, nos séculos XV e XVI um centro de produção de armaduras, espadas e punhais, exportadas para outras cidades alemãs e mesmo outros países. Essa indústria marcou de tal forma a identidade da cidade que as suas próprias armas apresentam duas espadas cruzadas.


A cidade alcançou, nessa época a configuração urbana que apresenta na atualidade, marcada por edifícios históricos, dos quais os principais são o antigo Paço municipal, hoje museu do Vale do Ruhr (Ruhrtalmuseum), onde então moravam os guardas-noturnos característicos de Schwerte, e a igreja de São Vitor.


Trata-se aqui de uma edificação gótica, de três naves, do século XV, cuas origens remontam ao século XI. Nela ainda se conserva uma pintura mural da Crucifixação de 1310 e que representa uma das obras mais antigas do gênero da Vestfália. A igreja foi uma sucursal do convento de São Vitor, em Xanten, ao qual o território de Schwerte havia sido doado, em 1032, por Reinmod, senhora de Cappenberg (Veja artigo a respeito de Cappenberg em número anterior desta revista).


São Vitor, santo guerreiro, membro da antiga Legião Tebana, cuja imagem é caracterizada pelo uso de armadura e armas, vincula-se com concepções hagiográficas do "santo guerreiro" e do simbolismo do trabalho em metal. O retábulo dourado desse santo, criado por pintores e escultures da Lukasgilde de Antuérpia, em 1310, portador de uma relíquia do santo, é a principal obra artística do patrimônio histórico-cultural de Schwerte. Foi ali instalado em 1523, substituindo um altar das Sete Dores, de 1518. Com a Reformação, a igreja tornou-se luterana.


A essa fase de prosperidade seguiram-se séculos de decadência do comércio e da manufatura, resultado de beligerâncias, epidemias e incêndios. Apenas no século XIX, com a revolução industrial e a implantação de ferrovias é que a cidade experimentou um novo surto econômico, ali se estabelecendo novamente oficinas de trabalho em metal. Esse desenvolvimento, com fábricas e  casas para operários, trouxe consequências para a configuração urbana e para a demografia.


Constituindo centro fabril e ferroviário estratégico, desempenhou papel de importância à época nacionalsocialista e foi alvo de severos bombardeamentos na Segunda Guerra. Apenas a partir da década de 60 é que experimentou um novo surto populacional, favorecido pela sua posição favorável no conjunto das cidades da região, então em fase de grande desenvolvimento na extração e na indústria.


Estação de bombas de água como centro cultural




É compreensível, pelo passado da região e pelas suas edificações, que a cultura industrial assuma  papel relevante no âmbito da participação de Schwerte na Capital Européia da Cultura. Também em outras cidades da "metrópole Ruhr",  usinas e construções técnicas e fabrís de todo o tipo passaram a ser utilizadas como museus e centros culturais. Esses novos focos de atividades e reflexões complementam as múltiplas instituições culturais já existentes, criando um complexo altamente diversificado de centros de criação artística e intelectual.



No caso de Schwerte, o principal edifício agora recuperado e valorizado como centro de atividades sociais e culturais é o da Rohrmeisterei, antiga casa de bombas de água, de 1890. Transformada mais tarde (1926) em oficina de canos do Serviço de Obras de Dortmund, cessou as suas atividades em 1976. Tombada como patrimônio histórico em 1990, passou a ser revitalizada como centro cultural a partir de 1999.


Trata-se de um edifício de 1700 metros quadrados, com três naves, e que apresenta arcos, janelas de ferro fundido e telhado com estrutura metálica. Apresenta uma fachada de tijolos vermelhos, com ornamentos, tornando a construção significativa para a arquitetura industrial da segunda metade do século XIX.


O edifício possui também um significado simbólico para os intentos de integração da cidade no complexo regional que agora se transforma em metrópole. Lembra da sua importância no sistema de fornecimento de água para toda a região, ou seja, da sua participação na infraestrutura do todo.


Participação na Capital Européia da Cultura 2010

 

Para uma cidade de médias dimensões como Schwerte, a participação nesse evento sui generis de configuração cultural de uma metrópole representa um desafio e uma oportunidade. Compreende-se, assim, o empenho demonstrado por representantes de várias esferas culturais da cidade na preparação de projetos, dos quais nem todos puderam ser realizados.


A iniciativa deu impulsos à criatividade dos intelectuais e artistas locais, levando à concretização de uma série de idéias e eventos que sob outras condições não teriam sido realizados. A iniciativa levou também ao desenvolvimento de instituições locais e a parcerias.


Schwerte é sede da Academia do Ruhr Schwerte, uma instituição particular para arte, design e mídia, agora impulsionada através de uma cooperação com o serviço de cultura e difusão educativa de Schwerte (KuWeBe).


A Capital Européia da Cultura possibilitou também a intensificação do trabalho entre instituições de várias cidades da região. Do ponto de vista musical, Schwerte, que é conhecida supraregionalmente pelas suas atividades musicais e pelos concertos que se realizam na igreja de São Vitor, de extraordinária acústica, participou sobretudo do grande projeto "Hans-Werner-Henze". Várias associações permitiram uma apresentação da Orquestra de Câmara de Bottrop numa rua de Hoesch e a Sociedade de Concertos de Schwerte apresentou um concerto do Trio Bamberg na série Outono de Unna.


Entre os projetos de parceria intraregional que fomentam o estreitamento de rêdes da futura metrópole, salientam-se o "Day of Song", o "Ventures into History" , assim como um simpósio internacional de escultura dirigido pelo artista local Jan van Nahuijs.


Elos de Schwerte com o Brasil


A existência de vínculos entre Schwerte e o Brasil é conhecida sobretudo na área caritativa e social. Anselm Schröer é um dos idealistas alemães que se empenham há décadas em ajudar pessoas necessitadas no Brasil. As suas atividades podem ser comparadas com aquelas da cantora brasileira Maura Moreira, desenvolvidas em Colonia (Veja artigo em número anterior desta revista).


Também Anselm Schröer dedicou-se inicialmente à coleta de roupas para instituições católicas, no caso o Kolpingwerk. Assim como Maura Moreira, também êle e seus ajudantes passaram a encontrar dificuldades para o pagamento do envio postal de caixas e pacotes, decidindo-se a fundar uma sociedade apta a angariar donativos, a Sozial-und Entwicklungshilfe e.V.


Os paralelos entre o trabalho desenvolvido por Maura Moreira e aqueles de Anselm Schröer acentuam-se ainda mais quando se considera os elos estreitos que ligam os idealistas de Schwerte com Minas Gerais. Desde 1984, a associação de Schröer passou a apoiar o projeto social "Rainha da Paz", em Belo Horizonte. Para conseguir meios, a sociedade, com 100 membros, passou a distribuir tonéis para a coleta de roupas nas ruas de Schwerte. Os meios levantados com a venda dos donativos possibilitaram a construção de um centro de ensino, um de eventos e áreas de esportes em Belo Horizonte. Após o término desse projeto, a associação de Schwerte tomou a si a tarefa de apoiar a construção de uma casa comunitária em Ribeirão das Neves, também em Belo Horizonte, destinada à educação de adultos.


No âmbito desse trabalho, as relações pessoais entre Schwerte e Belo Horizonte tornaram-se estreitas. Schröer esteve várias vezes no Brasil e recebeu várias visitas de brasileiros.


Novas perspectivas


A participação de Schwerte na Capital Européia da Cultura Ruhr 2010 dirige a atenção a novas perspectivas para relações com o Brasil. Apesar da localização antes marginal da cidade no complexo metropolitano do Ruhr, de suas dimensões médias e das possibilidades limitadas de suas instituições, a cidade possui, no seu patrimônio cultural, uma potencialidade que a distingue de todos os demais centros urbanos da região. Trata-se aqui da linguagem simbólica relacionada com São Vitor e que coloca os intituitos de transformação do Ruhr sob nova luz, abrindo caminhos para estudos teóricos mais aprofundados e que superam os limites regionais.

Como sugerido acima, a escolha de São Vitor e o seu culto na igreja de Schwerte não foram arbitrários, mas profundamente relacionados com a vocação da cidade para o trabalho, para a atividade manual, para o artesanato em metal e confecção de armas. Essas atividades adquirem, nas concepções simbólico-antropológicas, desde remotas eras, significado caracterizado do homem no seu direcionamento ao trabalho, à terra, à matéria, com todo os riscos daí resultantes, que podem levar à uma vida obtusa de escravidão e roda viva. O culto a São Vitor na Idade Média de Schwerte indica que essa vita activa, em si necessária à condição humana, deve subordinar-se à vida da contemplação ou "passiva", e apenas nesse relacionamento é que deixa de representar os riscos expressos na linguagem bíblica e na tradição mitológica da Antiguidade.

Essa linguagem de imagens, presente em Schwerte, surge quase que como uma chave para uma interpretação mais profunda do intentado na transformação da região do Ruhr. A mudança que se pretende - e forçada pelas necessidades -, de uma orientação quase que exclusivamente dirigida ao trabalho subterrâneo em minas e indústrias pesadas, com todas as suas consequências negativas para a qualidade de vida dos trabalhadores, a um direcionamento marcado por atividades culturais e artísticas, por museus e instituições científicas pode ser vista como um correspondente secularizado do antigo relacionamento entre os dois tipos de vida, a ativa e a contemplativa.

A linguagem simbólica lembrada por São Vitor de Schwerte é não apenas significativa para a situação de transformação cultural da região. Ela pode ser produtiva para estudos interculturais em relações internacionais, uma vez que pertence ao patrimônio cultural de diferentes países da Europa e foi levada no passado a várias regiões extra-européias no âmbito das relações coloniais. Assim, ela continua presente em expressões culturais brasileiras, já tendo sido alvo de estudos e debates, entre esses no Colóquio Internacional de Antropologia Simbólica da Academia BrasilEuropa/ISMPS, em 1998.


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.
Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. (Ed.). "Da vida metálica à vida cultural. Capital Européia da Cultura Ruhr 2010 3: Schwerte
e seus elos com o Brasil".
Revista Brasil-Europa 126/25 (2010:4). www.revista.brasil-europa.eu/126/Schwerte.html



  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.



 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 126/25 (2010:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2632




Temas diversos


Da vida metálica à vida cultural

Capital Européia da Cultura Ruhr 2010 3: Schwerte
e seus elos com o Brasil

 










Fotos A.A.Bispo e H. Hülskath©

 

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