Música na família real do Havaí. Revista BRASIL-EUROPA 126. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

No âmbito das comemorações dos 25 anos de fundação oficial do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguêsa (ISMPS e.V.) na Alemanha, realizou-se uma sessão no palácio de verão - Hanaiakamalama - da rainha Emma (1836-1885), em Oahu, com a audição de obras de membros da família real havaiana.

O objetivo desse ato foi o de encetar reflexões em ambiente adequado e sugestivo a respeito da vida musical e a criação artístico-musical na Côrte havaiana, comparando-a com a do Brasil à época do Segundo Império.  A diversidade de contextos culturais e a afinidade histórico-política entre os dois países devido à forma de govêrno monárquica, em ambos os casos caracterizada por elos estreitos dos membros da família reinante com a vida musical européia, possibilita diferenciações em estudos de de recepção cultural sob o aspecto dos distintos pressupostos dos recipientes.

A principal atenção foi dedicada à epoca de Kamehameha IV (1834-1863) e da rainha Emma, um período da história havaiana marcado por estreitos elos com a Europa e que vem sendo alvo de estudos da pesquisa especializada (George S. Kanahele, Emma: Hawaii's Remarkable Queen, University of Hawaii Press 1999).

O palácio - antes uma residência de linhas sóbrias e marcada por concepções classicistas, foi deixado à rainha Emma pelo seu tio John Kaleipaihala Young II (Keoni Ana 'Opio, 1810-1857), filho de John Young (ca. 1742-1835), marinheiro inglês que se tornou conselheiro de Kamehameha I, o fundador do Estado nacional havaiano (ca. 1758-1819) e que o tinha adquirido  (Veja artigo a respeito nesta edição).

Emma, cedo víúva, passou ali a maior parte de seus últimos dias, dedicando-se aos jardins que circundam a residência, também conhecida como Rooke House. Foi vendida após a sua morte ao govêrno do Havaí. Desde 1915, é preservada pelas Daughters of Hawai'i.

A residência conserva mobiliário, quadros e objetos históricos da época, oferecendo condições ideais para estudos históricos da mentalidade e do espírito da época de uma rainha que exerceu grande influência na história do Havaí, em particular de Honolulu, deixando a memória de uma personalidade preocupada com os destinos de um povo que se aniquilava e de um país que perdia gradualmente a sua autonomia perante o poder dos norteamericanos que ali viviam.

Piano Emil Ascherberg, de Dresden

O mobiliário do palácio inclui um piano de cauda da firma Emil Ascherberg, fabricante alemão de Dresden, já não mais existente, e que chama a atenção também para um aspecto especial dos estudos da difusão e da recepção musical, o da exportação e importação de instrumentos em contextos internacionais.

Uma visão global da cultura instrumental coloca outras prioridades e exige outras perspectivas do que aquela de um estudo histórico-musical de instrumentos restrito à Europa. Houve fabricantes de instrumentos que se destacaram sobretudo pelo comércio exterior, sendo as respectivas marcas conhecidas mais em países extra-europeus do que na própria Europa.

Entre essas firmas, a de Emil Ascherberg merece uma especial consideração para estudos relacionados com a América do Norte e o Pacífico. Constata-se a existência de vários instrumentos produzidos por essa firma em casas particulares, igrejas e escolas da Austrália, do Canadá e dos Estados Unidos.

Essa casa construtora de pianos, cujo nome é conhecido do contexto da Melbourne Exhibition, de 1880, experimentou uma crise econômica em 1883, vendo-se como a sua sucessora a Apollo Piano Company.

O nome Ascherberg continua a ser conhecido hoje na designação de uma casa editôra norte-americana, a Ascherberg, Hopwood & Crew.

Na Europa, os instrumentos Ascherberg parecem ter sido mais difundidos em regiões do Leste, em particular da Silésia. Problemas de geografia política da Europa Central unem-se aqui a problemas da pouca consideração do Pacífico na história cultural global, criando uma situação marcada por enigmas para o estudo da difusão desses instrumentos.

A falta de informações - uma vez que é marca menos conhecida na Alemanha e os seus arquivos foram destruídos com o bombardeamento de Dresden durante a Segunda Guerra -, leva a dúvidas de seus proprietários quanto a proveniência, características e valor.

Essa situação explica o estado insuficiente de conservação de instrumentos como o do palácio de verão da rainha Emma, sendo que há técnicos que se negam a realizar trabalhos de restauração e afinação desses pianos.

Apenas uma modificação das concepções - através de uma orientação teórico-cultural da visão histórico-musical e da prática relativa a instrumentos antigos - permitirá uma revalorização desses instrumentos, testemunhos de determinadas configurações internacionais e de determinada cultura de sonoridade.

A marca Ascherberg possuia tal renome na área do Pacífico que era preferida com relação a outras em casos de importação de pianos e mesmo de encomendas individuais por parte de personalidades da vida pública, tais como as rainhas do Havaí Emma e Liliuokalani (1838-1917).

Emma encomendou o piano quando de uma estadia na Europa. Parece ter sido motivada para essa marca no Ducado de Baden, quanto visitou, em 1863, a esposa do mestre de uma sociedade musical de amadores local e que havia atuado como instrutor do exército de Kamehameha IV. (G. S. Kanahele, op.cit. 216) Segundo a tradição, a rainha Liliukalani teria composto o famoso  'Aloha-Oe em Grand piano Ascherberg de número 6021.

Cultura euro-havaiana à época de Kamehameha IV e da rainha Emma

Esse período da história havaiana surge na literatura como época marcada por intenso anelo cultural, educativo e humanitário, por seriedade de propósitos, intenções de aprimoramento de costumes e modos de vida segundo modêlos europeus, em particular britânicos, e de institucionalização do Anglicanismo. Representou um período de esforços no sentido de fortalecimento e de estabilização de uma orientação cultural euro-havaiana já de antiga tradição, bastando aqui lembrar a viagem de Kamehameha II (1797-1824) à Europa - com passagem pelo Brasil - em 1824. (Veja artigo nesta edição).

Esse orientação contrastava com a tendência geral norte-americanizadora do Havaí, determinada sobretudo pela presença e pela atuação de missionários e de seus descendentes na economia e na política. Uma ambivalência ou uma situação de tensão interna pode ser aqui constatada, uma vez que aqueles que, como Kamehameha IV e Emma se destacaram por desejos e expressões nobilitadoras, de anelos de aperfeiçoamento de caráter e sentimentos, haviam recebido formação com missionários norte-americanos, e a própria seriedade de propósitos havia sido produto de um ensino sistemático e severo.

Essa educação recebida, porém, inseriu-se em processos de transformação cultural, tanto por parte da sociedade havaiana e dos educandos, como por parte dos agentes educativos. Aqui residiu provavelmente um dos motivos da instabilidade emocional e psíquica, da sensibilidade altamente aguçada e da melancolia que marcaram a vida desses soberanos. A aura de amor e tragédia que envolve a vida de Kamehameha IV e Emma caracteriza uma fase romântica da história do Havaí.

Formação da elite havaiana por missionários norte-americanos e orientação britânica

Alexander Liholiho, o futuro Kamehameha IV, fora adotado por seu tio, Kamehameha III (1814-1854). Tanto êle como o seu irmão mais velho, Lot, mais tarde Kamehameha V (1830-1872) (Veja artigo nesta edição), tiveram a sua educação dirigida por missionários norte-americanos.

Sob Kamehameha III (Veja artigo nesta edição) a elite do país - membros da realeza (ali'i) - deveria vir a ser formada segundo princípios cristãos e costumes ocidentais (ou caucásicos, segundo a terminologia americana). Os chefes locais sentiam a necessidade que os seus filhos compreendessem melhor a mentalidade dos visitantes e negociantes estrangeiros para que não fossem enganados e soubessem melhor conduzir as transformações postas em ação.

Na Kula Keiki Alii, a "Escola de Filhos de Chefes", as crianças e os jovens podiam acostumar-se com os modos de pensar e de agir dos estrangeiros e, ao mesmo tempo, tornar-se aptos ao convívio social e à representação do país perante outras nações e casas reinantes.

Essa educação foi promovida sobretudo pelo missionário e homem de negócios Amos Starr Cooke (1810-1871) e sua mulher Juliette Montague Cooke (1812-1896), enviados ao Havaí em 1836 pelo American Board of Commissioners for Foreign Missions. Ainda que o objetivo era o de formar líderes cristãos para o Havaí, a ação educativa da escola levou sobretudo a da transmissão de novos hábitos culturais. No ambiente da escola, na qual nada lembrava a tradição havaiana, os futuros líderes deveriam aprender a agir como norte-americanos e a falar inglês com a pronúncia norte-americana. A escola foi apoiada, em 1846, pelo Ministro da Instrução Pública, Richard Armstring (1805-1860).

A educação fornecida pelos missionários norte-americanos não foi, assim, exclusivamente religiosa, mas sim de formação cultural e social segundo os mais altos modêlos conhecidos. Isso significava também um desafio para os missionários, também êles provenientes de meios sociais norte-americanos relativamente modestos, de passado colonial e de dissidência confessional, marcados, porém, por uma orientação segundo critérios europeus. Compreende-se, assim, o significado da transmissão aos filhos dos chefes de tendências de orientação cultural subjacentes à cultura norte-americana através da prática musical, da leitura de obras literárias, de modos de comportamento, implantando nos discípulos desejos de aprimoramento que vinham de encontro a necessidades sentidas por êles sentidas devido à sua inserção no processo de transformação cultural.

À luz dessa formação norte-americanizante pode-se avaliar o contraste representado pela orientação pró-européia, sobretudo britânica que Kamehameha IV e Emma. Essa orientação pode ser entendida como uma reação geracional perante aqueles que os formaram e, ao mesmo tempo, como tentativa de mudança do processo norte-americanizador promovido pelos missionários que de perto haviam constatado.


Relações Exteriores dirigidas por norte-americano e viagem à Europa

Um papel importante e ambivalente na orientação dos futuros reis Alexander (Kamehameha IV) e Lot (Kamehameha V) desempenhou o Dr. Gerrit Parmele Judd (1803-1873), vindo ao Havaí em 1827, também enviado pelo American Board of Commissioners for Foreign Missions. Foi um dos fundadores da escola para filhos de missionários (Punahou School), ou seja, era vinculado a uma função educativa distinta daquela da formação de líderes nativos, mantendo ao mesmo tempo a identidade norte-americana e preparando-os para atuação efetiva nos negócios e na economia do Havaí. A partir de 1849, afastando-se de suas tarefas missionárias, Judd passou a assumir importantes cargos políticos sob Kamehameha III, entre êles o de Ministro do Exterior (1843) e o de Ministro Plenipotenciário para a Inglaterra, a França e os USA (1849).

Se os príncipes Alexander e Lot já haviam sentido, durante a sua infância e seus primeiros anos de juventude um afastamento com relação à cultura consuetudinária, caída em crise, crescendo em ambiente missionário norte-americano, passariam por uma nova fase de orientação cultural com a viagem que empreenderam à Europa, em 1849, guiados pelo Dr. Gerrit Judd.

Essa viagem inseriu-se no complexo campo de tensões entre interesses norte-americanos e europeus no Havaí, entre interesses britânicos e franceses na Polinésia em geral, e, sobretudo, entre aqueles de missionários norte-americanos e de católicos.

Assim como no Taiti, também no Havaí os missionários protestantes consideravam o arquipélago como campo particular de ação, não desejando por em risco a influência poderosa que exerciam na política com a chegada de concorrentes católicos na ação missionária. Assim como no Taiti, também no Havaí essa discriminação no tratamento de missionários católicos por parte dos congregacionalistas norte-americanos levou a tensões diplomáticas com a França.

Essas questões correspondiam a outros problemas com relação à França, ou seja o desejo desse país em ver o idioma francês em documentos oficiais, o de isenção de taxas sobre bebidas francesas e, por parte do Havaí, de indenização por danos causados por uma nave francêsa ao forte de Honolulu.

Esses motivos justificaram a ida dos dois príncipes em companhia do Ministro Gerritt P. Judd à Europa. Este, tinha, assim, a legitimidade oferecida pela presença de nobres havaianos, podia, por outro lado, mostrar na Europa os resultados "civilizadores" alcançados pela missão cristã na pessoa de dois nativos com refinada educação aristocrática.

Contato com a vida cultural de cidades européias e impacto transformador

Os diários escritos por Alexander Liholiho são considerados como de significado relevante não apenas para a história do Havaí.  Oferecem dados sobre o impacto causado pela vivência de meios sociais e culturais europeus nos príncipes havaianos formados por missionários norteamericanos e a influência neles exercida pela visita de países de grande tradição cultural e religiosa, com seus monumentos e catedrais.

Conheceram a França em época de profundas modificações políticas e culturais, ou seja, os anos imediatamente posteriores à Revolução de 1848, da eleiçao de Charles-Louis Bonaparte (1808-1873) a Presidente, e que prepararam o seu golpe de 2 de dezembro de 1851 e, a partir de 1852, o Segundo Império.

Os havaianos tomaram contato assim com as tensões existentes na França, de um lado dos derrotados adeptos do parlamentarismo de cunho liberal, de outro dos napoleônicos intentos de um regime forte, de grandeza nacional e de consolidação social. Tiveram a oportunidade de encontrar o o futuro Imperador dos Franceses em recepção dada pelo Visconde Jean-Ernest Ducos de La Hitte (1789-1878), Ministro das Relações Exteriores da França (1849 a 1851). Esse militar, posteriormente senador do Segundo Império, que atuara em empreendimentos bélicos, entre outros, na Espanha e na África do Norte, era bonapartista convicto, homem preocupado pela autoridade, ordem e segurança.

Na Grã-Bretanha, os contatos deram-se sobretudo através de Henry John Temple, terceiro Visconde de Palmerston (1784-1865), Primeiro-Ministro (1855-1858, 1859-1865) e influente personalidade em questões de política internacional. Ainda que defensor acérrimo de interesses britânicos, Lord Palmerson tomou partido favorável - sem o beneplácito da Rainha - ao golpe de Estado francês de Charles-Louis Bonaparte, de 1851.

Talvez a impressão mais duradoura foi aquela deixada pelo encontro com o Príncipe Consorte Albert de Saxo-Coburgo e Gotha (1819-1861), fundamentando um elo com a Inglaterra vitoriana que marcaria profundamente a monarquia havaiana. O Príncipe, diferentemente dos representantes da alta política encontradas na França e também do Lord Palmerston, era personalidade de pensamento liberal, empenhado na reforma da educação e do ensino superior, na campanha internacional de abolição da escravatura e no progresso das ciências, em particular das aplicadas e da técnica. Era presidente da Society of Arts, que promovia exposições anuais, e tornar-se-ia presidente da Comissão Real da Grande Exposição de 1851.

Na Grã-Bretanha, Alexander Liholiho teve a oportunidade de tomar conhecimento da situação eclesiástica local, do significado da Igreja Anglicana, comparando-a com aquela da tradição missionária norte-americana a que se filiavam. Essas impressões favoreceram uma tendência pró-britânica que nele se desenvolveria e que levaria posteriormente ao pedido para o estabelecimento da missão anglicana nas ilhas. (Veja artigo a respeito)

Reservas com relação aos EUA dos Kamehameha

Ao contrário das experiências na Europa, onde os havaianos foram recebidos de forma digna, a estadia nos Estados Unidos foi marcada por um acontecimento humilhante. Na viagem a Washington, tomado como negro, o príncipe foi intimado a abandonar o seu compartimento no vagão. Pôde, assim, constatar, no escravagismo que reinava nos EUA, o contraste com o anti-escravagismo que conhecera na Grã-Bretanha sob a égide do Príncipe Albert.

Essa experiência pessoal da realidade norte-americana influenciou negativamente o príncipe relativamente ao sistema e ao modo de vida americanos. Sentia, também, que na Europa a religião era menos estreita e delimitadora do que aquela na qual fora formado pelos congregacionalistas norte-americanos.

Alexander Liholiho tornou-se, assim, um dos primeiros príncipes havaianos a considerar criticamente a ação dos missionários americanos e a influência que exerciam na ilha, fundamentando uma desconfiança de que a ação missionária levaria, mais cedo ou mais tarde, à tomada de poder dos americanos, ao fim do reino e à anexação, o que, de fato, mais tarde aconteceu.

Subida ao trono, casamento e vida sócio-cultural vitoriana na Côrte do Havaí

Os elos de simpatia para com a Grã-Bretanha de Alexander Liholiho, - desde 1855 Kamehameha IV - , tornaram-se mais estreitos com o seu casamento com Emma, filha de um dos grandes chefes nativos, uma vez que esta possuia um avô inglês, o navegante John Young (ca. 1742-1835), conselheiro militar de Kamehameha I. Por suas tendências britânicas, o enlace não foi bem recebido pelos norte-americanos atuantes no Havaí.

Do ponto de vista religioso, os consortes procuraram seguir um caminho por assim dizer intermediário entre o Protestantismo da tradição missionária e o Catolicismo sobretudo fomentado pelos franceses, passando a defender a tradição da sucessão apostólica ainda conservada no Anglicanismo. Assim, casaram-se segundo solenidade da Igreja Episcopal, apoiando o culto episcopalista e manifestando, em carta dirigida à Rainha Vitória, através do Cônsul Geral do Havaí em Londres, o desejo de que a Igreja Anglicana fosse estabelecida em Honolulu. Kamehameha IV traduziu êle próprio o livro de orações inglês para o idioma nativo. (Veja artigo a respeito do Episcopalismo nesta edição)

Significativamente, para Ministro das Relações Exteriores, Kamehameha IV nomeou um súdito britânico, o médico e homem de negócios escocês Robert Chrichton Wyllie (1798-1865), chegado ao Havaí em 1840.

A vida de Côrte sob Kamehameha IV passou a ser marcada por estilos cerimoniais e de sociabilidade europeus, por elegância discreta no trato, nas expressões e no convívio. Os soberanos passara a dar particular atenção ao fomento de uma sociedade marcada por distinção e reserva, modéstia e dignidade.

Kamehameha incentivou, com a sua própria participação, a prática de esportes, em particular do hipismo à moda britânica. Emma empenhou-se sobretudo no cultivo das artes, em particular da música, promovendo saraus musicais em sua residência. Em apresentações de "óperas", fomentou a difusão de um repertório lírico, chegando ela própria e Kamehameha IV a desempenhar papéis. Emma, que dedicou-se também à criação musical, deixando canções marcadas por melancolia, tornou-se o prototipo de uma mulher vitoriana, cuja linguagem, religião, modo de trajar - sobretudo após o luto -foram reconhecidos como britânicos pela própria rainha Vitória. Cultivou o hábito do chá à tarde e patrocinava jantares e encontros para fins beneficientes. Apesar desses costumes vitorianos, permaneceu profundamente vinculada à consciência da autonomia e da dignidade havaiana, temente dos riscos representados pela norte-americanização missionária.


A canção em círculos euro-havaianos -  paralelos com o Brasil Imperial

É nesse contexto que parte do repertório havaiano da época deve ser considerado. As composições para canto, com acompanhamento de piano, denotam uma arte lírica refinada, discreta, caracterizada por melodias simples, de ordenação clara e regular, intimamente vinculadas ao texto, sem profusão de ornamentos e vocalizações, harmonizadas também de forma simples e reservada, porém correta, perpassadas por tendências à expressão de sentimentos suaves, derivados dos textos.

A terna sensibilidade da cultura havaiana, cujo força de encantamento é salientada em formas de expressão tradicionais e da música popular da atualidade, encontra nesse repertório outra manifestação, vertida que é na forma da canção da tradição clássico-européia.

Como fenômeno da vida cultural de uma época e como sinal de uma aristocracia de espírito esse repertório pode ser comparado com aquele do Brasil da época. Não apresenta, porém, a poderosa influência italiana que se manifesta em parte do patrimônio musical do Brasil.

Embora sentimentos de melancolia, nostalgia e saudades sejam comuns a ambos os repertórios, poder-se-ia detectar diferenças quanto à expressão de afetos e emoções, talvez mais intimistas e discretos no Havaí, o que, porém, exigiria procedimentos adequados de análise.

Pode-se perceber, quanto à condução melódica, assim como no Brasil, uma tendência ao paralelismo em terças e sextas. Essa característica sugere uma proximidade com tradições populares de canto e explica o cunho sentimental e popular das canções.

Pode-se supor, aqui, um resultado da formação obtida na escola missionária, talvez um eco de prática musical tradicional transmitida oralmente pelos educadores. O acompanhamento das melodias, nas suas harmonizações simples, denota também a influência de um repertório de poucas ambições artísticas e dificuldades técnicas, possivelmente transmitida por peças em albuns para o ensino do piano. Digno de menção é a ocorrência de "contracantos" no baixo em cadências e têrminos de frase, criando efeitos conhecidos do repertório brasileiro. Entretanto, observa-se uma predominância maior do compasso ternário do que o constatado no Brasil. Elas surgem, assim, antes como predecessoras de valsas cantadas e que se tornariam características do Havaí.

Melancolia e tristeza

As transformações da sociedade havaiana foram acompanhadas não apenas pela melancolia em ver a cultura tradicional desaparecer sob a influência dos missionários norte-americanos e dos círculos americanizados do reino, mas sim, também, pelo desespêro e perda de forças causados pela diminuição da população nativa devido às doenças.

Essa tendência à tristeza foi marcada por uma tragédia pessoal que obscureceu a vida de Kamehameha IV e Emma, levando ao fim de uma curta época de brilho social e cultural de cunho aristocrático, iniciando outra marcada sobretudo pela religião e por atividades beneficientes: a morte prematura do filho único de Kamehameha, em 1863, e que tinha o nome do Príncipe Consorte inglês: Albert. Caindo em profundo abatimento, o próprio Kamehameha faleceu poucos meses mais tarde.

Uma das grandes preocupações de Kamehameha IV havia sido o da ereção de um hospital. Não recebendo o apoio esperado do Legislativo, criou, êle próprio, com a rainha Emma, através de subscrições, meios para a sua construção, iniciada em 1859. O The Queens Hospital tornar-se-ia uma das principais instituições do país, perpetuando através de décadas o nome de Emma.

Kamehameha foi sucedido pelo seu irmão mais velho, Kamehameha V°, que havia até então servido ao reino como Comandante e Ministro do Interior. Apesar de não possuir talentos pessoais comparáveis ao irmão, manteve em linhas gerais a sua orientação quanto à política internacional, também êle reconhecendo o risco da anexação do país pelos norte-americanos através da ação dos missionários.

A tradição de Kamehameha IV e do seu tempo foi conservada sobretudo pela rainha Emma. Esta seria candidata ao trono, em 1874. Conhecida pela sua cultura britânica e pelo seu receio da apropriação do Havaí pelos americanos, foi vencida por David Kalakaua (1836-1891), mais apoiado por aqueles círculos (Veja artigo a respeito). A derrota daquela que defendia a linha dos Kamehameha levou a uma situação tensa, fazendo com que a antiga rainha se mantivesse afastada de muitas das reuniões sociais e culturais, voltando-se sobretudo à sua obra de estabelecimento do Anglicanismo e da construção da Catedral de Saint Andrews (Veja artigo nesta edição).

Sinais de crise no processo de transformação cultural

A personalidade de Kamehameha IV° tem sido caracterizada como complexa e ambivalente, marcada pelos seus múltiplos talentos, por uma educação refinada, elegância de porte e de procedimentos, ao mesmo tempo, porém, por ímpetos de cólera e ciúmes, depressões e tendência ao alcoolismo. Já essa menção ao excesso de consumo alcoólico, que representou um grave problema para outros membros da família real e da população havaiana em geral desperta a atenção para a similaridade desse fenômeno com aquele conhecido em situações de mudança cultural de outras partes do globo.

Assim como o alcoolismo que dezimou tantos grupos indígenas do continente americano, também o alcoolismo no Havaí - e em outras ilhas da Polinésia - foi um resultado do contato com os europeus. A ação sóbria de protestantes norte-americanos nada pôde aqui fazer. Tratou-se de um problema que deveria ser visto antes como resultado de uma situação de crise cultural, da insegurança causada pela destruição do edifício tradicional de concepções do mundo e do homem, de anelos desesperados de auto-afirmação e reconhecimento pela sociedade que passou a predominar.

Kamehameha IV° foi criança adotada, cresceu em escola para filhos de chefes nativos com o intuito de ser formado à moda "caucásica" e, como rei, esteve mais do que outros sob a pressão de mostrar-se à altura de representantes de casas reinantes européias. Reconhecendo a estreiteza da formação que recebera dos missionários norte-americanos, procurou criar no Havaí uma sociedade regida segundo os mais altos critérios e modêlos que conhecera na Europa. Apresenta, assim, uma história de vida que o torna objeto privilegiado para estudos voltados à transformação cultural de povos polinésios no século XIX.

Nesse contexto, as composições que os membros da realeza havaiana deixaram surgem sob diferente luz. Já não são apenas curiosidades. Representam, por um lado, a continuidade da tradição da prática musical nas famílias dos chefes havaianos, versada porém na linguagem musical aprendida nas escolas missionárias. A tradição havaiana manifesta-se antes nos textos poéticos, a forma e a harmonização seguem modêlos do repertório europeu-norteamericano. Um cunho britânico poderia ser visto na contenção aristocrática, na reserva  distinta da expressão dos sentimentos, na simplicidade nobre do acompanhamento, numa tendência ao understatement. O fator mais importante, porém, e o que representa um desafio para a análise, reside no espírito do texto, no maná que perpassa o canto segundo concepções havaianas. (Veja artigo a respeito nesta edição)

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Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. "A música na sociedade euro-havaiana de tendências vitorianas à época de Kamehameha IV (1834-1863) e da rainha Emma (1836-1885). Paralelos com o Brasil do Segundo Império". Revista Brasil-Europa 126/11 (2010:4). www.revista.brasil-europa.eu/126/Musica-na-monarquia-havaiana.html



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  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.



 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 126/11 (2010:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2618




A música na sociedade euro-havaiana de tendências vitorianas
à época de Kamehameha IV (1834-1863) e da rainha Emma (1836-1885)

Paralelos com o Brasil do Segundo Império



Audição de obras de compositores da família real do Havaí na residência de verão de Kamehameha IV e da Rainha Emma
Pelos 25 anos da oficialização do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa na Alemanha
(Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes (ISMPS e.V.)

 












  1. Palácio de verão da rainha Emma
    Fotos A.A.Bispo e H. Hülskath©

 

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