Mauna Kea: Astronomia e cultura: Revista BRASIL-EUROPA 126. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais
 
 

Os estudos culturais não podem deixar de considerar as relações entre a Astronomia e a história cultural. Desde as mais remotas eras, a observação dos céus forneceu fundamentos para a ereção de edifícios de concepções que, de natureza integral, relacionavam entre si todas as esferas da vida, a visão do mundo e do homem.

Reciprocamente, em complexos jogos de influências mútuas, concepções derivadas das observações físicas, sobretudo relacionadas com os elementos da matéria, dos ciclos das estações do ano e dos dias, assim como tentativas de determinação de tipos humanos levaram à projeção de imagens e concepções no céu estrelado, determinando por séculos a denominação de constelações segundo divindades, heróis e atributos emblemáticos de relações mitológicas.


As navegações marítimas e, com ela, as viagens que levaram ao descobrimento de terras e a do contato entre os povos foram também desde as mais remotas eras possibilitadas pela orientação segundo constelações, em particular por aquelas próximas ao polo norte da esfera celeste. Esse foi o caso dos antigos fenícios, mas também, muitos séculos mais tarde, dos navegadores da era dos grandes Descobrimentos.

Essa orientação dos navegantes pelos céus teve, através dos séculos, não apenas uma dimensão pragmática, mas sim, devido à integralidade do edifício de visão do mundo e do homem, relações com todas as esferas da existência, sendo acompanhada de associações as mais diversas, porém entre si harmonizadas, expressões provenientes de diferentes culturas, restos de antigos mitos e figurações, ainda que metamorfoseados segundo a interpretação cristã dos céus, do homem e do mundo.

Esse sistema integral de visão do universo e do homem, interligando ciência natural, artes navegatórias, teologia e patrimônio clássico de saber foi levado aos mais diferentes povos alcançados pelos homens do Hemisfério Norte nos seus descobrimentos e contatos, nele assimilando, segundo mecanismos que lhe são próprios, imagens e concepções de outros contextos culturais, inclusive daqueles do Hemisfério Sul.

Esse sistema integral de conhecimentos e imagens, que vincula estreitamente concepções astronômicas e Conhecimento, permanece subjacente à linguagem visual de expressões culturais provenientes do passado e ainda vigentes no presente em várias regiões então colonizadas, inclusive no Brasil. (A.A.Bispo, Typus und Anti-Typus: Analyse symbolischer Konfigurationen und Mechanismen zur Erschliessung neuer komparatistischer Grundlagen für den interreligiösen Dialog und den Dialog der Kulturen, Colonia: I.S.M.P.S., 2003; Cristliche Musikanthropologie: Eine Einführung, Musices Aptatio 1992/93, Roma/Colonia, 1999)

Trata-se de um sistema de concepções de natureza músico-antropológica, como tratado em publicações e discutidas em congressos e simpósios do ISMPS e.V. e da Academia Brasil-Europa.

Novas descobertas astronômicas ou mudanças de referencial, como do geocêntrico ao heliocêntrico, não poderiam deixar de ser acompanhadas por modificações e desintegrações do edifício de concepções e imagens. Desenvolvimentos paralelos, paradoxos ou mesmo contraditórios, resíduos do antigo edifício em determinadas áreas do saber e da cultura, sobretudo na linguagem simbólica de expressões culturais tradicionais, divisões entre disciplinas científicas e culturais, distanciamento entre ciências naturais, teologia e filosofia foram algumas das consequências que exigem tratamento cuidadoso e diferenciado e que representam um problema fundamental no relacionamento entre Ciência e Cultura da atualidade.

Por motivo da passagem dos 25 anos de oficialização alemã do ISMPS e.V., decidiu-se retomar esses estudos que tanto marcaram os trabalhos da instituição com uma visita a um dos mais importantes centros astronômicos da atualidade, o do Monte Mauna Kea, em Big Island, Havaí, e que representa um dos grandes projetos internacionais nos quais também o Brasil se encontra envolvido.

O objetivo da visita foi o de suscitar reflexões sobre o significado da Astronomia na história cultural do Pacífico e motivar estudos referentes ao papel de concepções musicais relacionadas com os céus no edifício religioso tradicional polinésio e suas transformações com o contato com concepções européias.



Astronomia no descobrimento e na história cultural do Pacífico

As descobertas, os contatos e a colonização das ilhas do Pacífico foram estreitamente relacionadas com a história das observações astronômicas. Um papel relevante desempenhou o intuito de observar o trânsito dos planetas Venus e Mercúrio. Vistos da terra, o trânsito ocorre quando esses planetas interiores encontram-se entre ela e o sol.

Quanto a Mercúrio, o astrônomo francês Pierre Gassendi (1592-1655) observou pela primeira vez o seu trânsito em 1631. Esses trânsitos, treze por século, ocorrem a 8 de maio e a 10 de novembro.  Como a órbita de Mercúrio é inclinada de 7 graus com relação à terra, intersepta a eclípta em dois nós.

O trânsito de Venus pode ser observado no início de dezembro e em junho. Em 1639, Jerimiah Horrocks (1618-1641) e William Crabtree (1618-1641) realizaram observações científicas do trânsito desse planeta. Essas observações marcaram época e abriram caminhos para o desenvolvimento futuro.

Em 1716, Edmond Halley (1656-1742) relatou como os trânsitos podem ser usados para medir a distância entre a terra e o sol. Observando-se o trânsido de várias posições da terra, distantes entre si, poder-se-ia chegar a medir a parallax do sol, e assim, com precisão até então não alcançada, a distância entre o sol e a terra. O trânsito, ocorrido a 6 de junho de 1761, foi observado de vários pontos da terra. O próximo, calculado para 3 ou 4 de junho de 1769, levou a que a Royal Society enviasse astrônomos a diferentes partes do globo.  Assim, William Wales (1734-1798) foi enviado ao Canadá, devendo realizar as suas observações na Hudson Bay.

Juntamente com a Royal Navy, a Royal Society organizou uma expedição á região central do Pacífico Sul, uma vez que via nessa região possibilidades particularmente adequadas para as observações. A partir dos dados de Wallis, que retornava do Pacífico, escolheu-se a ilha do Taiti, objeto da expedição do Endeavor, sob James Cook (1728-1779) e com a participação de Charles Green (1735-1771). Alcançando o Taiti em abril de 1769, estabeleceram o seu ponto de observação no Point Venus, na baía de Matavai. Caso essa localidade estivesse encoberta, as observações poderiam ser feitas de dois outros locais, o Motu Taaupiri e o Motu Irioa, em Moorea. Em novembro de 1769, Cook observou o trânsito de Mercúrio na Bay of Plenty, na Nova Zelândia, nas proximidades da bôca do rio Purangi. (veja texto sobre a baía de Matavai no número anterior desta revista)

Também a França empenhou-se nas observações astronômicas da época. Jérôme Lalande (1732-1807), em 1771, combinando os dados dos trânsitos de 1761 e 1769, calculou a distância entre a terra e o sol, chegando a 153 milhões de quilômetros, ou seja, relativamente próxima àquela medida na atualidade (149.6 milhões de quilômetros). (John Robson, The Captain Cook Encyclopedia, Glenfield, Auckland: Random House 2004, 227-228)

No Havaí, a primeira expedição com fins astronômicos foi a de G. L. Tupman, capitão do HBM Scout, que em 8 de dezembro de 1874 observou o trânsito de Venus a partir do bairro de Punchbowl, em Honolulu. Esse trânsito foi observado também em Waimea, Kauai e Kailua-Kona, em Big Island.

O rei Kalakaua, interessado (18361891) não só em artes, mas também em ciência e tecnologia, manifestou o desejo de que o Havaí tivesse um Observatório. Durante a sua visita a San Francisco, visitou o Lick Observatory, em San Jose. Em 1883, adquiriu-se um telescópio inglês para a Escola Punahou, e em 1884 instalou-se um telescópio permanente em edifício para isso construído.

Após o golpe de Estado que derrubou a monarquia, cresceu o interesse norte-americano de medição geofísica do arquipélago. Em 1892, desenvolveram-se os primeiros estudos astronômicos e geofísicos no Mauna Kea, a serviço da da U.S. Coast and Geodetc Survey. A previsão do surgimento do Cometa Halley, em 1910, levou a uma subscrição pública para a construção de um observatório em Kaimuki, nas proximidades de Diamond Head, Honolulu.


Observatório do Mauna Kea

O Mauna Kea, um dos sete vulcões da ilha do Hawai, é a mais alta montanha do mundo, se medida a partir de sua base no fundo do mar (9.753 metros). Pela sua altitude, e pelo ar rarificado e sêco que ali domina, representa um local ideal para observações astronômicas, possibilitando a visão da maior parte das estrêlas observáveis a partir da terra.

O Observatório Mauna Kea, ali instalado, representa hoje um dos principais centros da pesquisa astrônomica do globo. Os telescópios encontram-se sob a direção de várias instituições de pesquisa e universidades de diferentes países. Dentre êles, destacam-se os telescópios especularas para esferas espectrais infra-vermelhas, sobretudo os telescópios Subaru e Gemini North, assim como os telescópios do Observatório W.M. Keck, até 2007 os maiores telescópios ópticos do mundo. No Observatório existem também aparelhos para microondas (entre outras o Submillimeter Array), e um Radio-telescópio.


Concepções astronômicas na cultura havaiana

Para além das pesquisas científico-naturais segundo a tecnologia mais avançada da atualidade, os estudiosos havaianos não descuidam de considerar o desenvolvimento da astronomia sob o aspecto histórico-cultural. Uma particular atenção vem merecendo a assim-chamada Astronomia Tradicional Havaiana desenvolvida pela "Polynesian Voyaging Society".

Os estudos das antigas concepções astrônomicas dos polinésios relacionam-se estreitamente com os estudos da navegação (Veja artigo a respeito na edição anterior desta revista). Os antigos polinésios, como grandes navegadores, tinham necessariamente que se orientar pelos céus nas suas viagens pelo Grande Oceano.

Considera-se, aqui as relações entre a antiga mitologia polinésia com o céu estrelado, de deuses, semi-deuses e heróis com planetas e estrêlas, assim como noções de corpos celestiais. Como exemplo, lembra-se que o semi-deus Maui, com os seus poderes de influenciar a movimentação do sol. As ilhas havaianas teriam sido pescadas do fundo do mar pela cauda de um grande peixe mágico, identificado pelos pesquisadores com a constelação do Escorpião.

Conhecimentos de aparelhos de navegação e de orientação, assim como com a cartografia, os polinésios obtiveram com a chegada dos europeus. Técnicas e concepções da navegação européia foram assimiladas, perdendo-se muito dos conhecimentos tradicionais. Também aqui os missionários protestantes são considerados como agentes da perda de saber. Nas suas traduções do havaiano, os muitos nomes de estrêles e de concepções astronômicas da antiga cultura deixaram de ser identificadas e registradas.

Desde a década de 1970, procura-se reconstruir o edifício das concepções tradicionais. Os esforços nesse sentido foram impulsionados sobretudo por Nainoa Thompson, que realizou estudos no Planetário do Bishop Museum, em Honolulu. No âmbito da navegação, foi um dos responsáveis pela construção da canoa dupla de longas viagens dos polinésios. Viagens experimentais nessas embarcações, sem a ajuda de instrumentos, podem contribuir para o intento de reconstrução do edifício de concepções.



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Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. (Ed.). "Mauna Kea: Observando os céus. Astronomia na história cultural das relações internacionais na Polinésia". Revista Brasil-Europa 126/24 (2010:4). www.revista.brasil-europa.eu/126/Mauna-Kea.html



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  1. Fotos A.A.Bispo e H. Hülskath©

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 126/24 (2010:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2631


©

Mauna Kea: Observando os céus
Astronomia na história cultural das relações internacionais no Grande Oceano


Pelos 25 anos da oficialização alemã do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa
(
Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes - ISMPS e.V.)

 

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