Mana e relações interconfessionais. Revista BRASIL-EUROPA 126. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

Por ocasião da passagem dos 25 anos da oficialização alemã do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS eV.), procurou-se, entre outros aspectos, retomar estudos relativos ao Havaí desenvolvidos no departamento de Etnomusicologia do Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicologicos da organização pontifícia de Música Sacra, dirigido de 1977 a 2003 pelo editor desta revista.


Nessa instituição, a atenção foi dirigida ao estudo das concepções espirituais da cultura havaiana como fundamento para o seu estudo adequado e para a compreensão dos pressupostos culturais próprios que favoreceram a cristianização, a adaptação e a transformação dessas concepções tradicionais no contato com as diferentes correntes missionárias, cristãs ou não, assim como as formas recentes de movimentos espiritualistas de cunho esotérico que a elas se referem (Huna).


As relações disciplinares entre a Etnomusicologia e a Hinologia se mostram como necessárias sobretudo no caso do Havaí - e da Polinésia em geral - devido à predominância de uma formação missionária que acentuou o significado de hinos na prática religiosa.


A retomada das reflexões in loco, decorreu agora à luz do escopo do ISMPS, com a focalização das atenções à imigração portuguesa e a questões de lusologia no contexto não lusófono do Havaí, assim como ao relacionamento do Pacífico com processos transatlânticos e interamericanos, sob especial consideração do Brasil. (Veja "Tema em Debate", nesta edição)


Um dos principais aspectos dos estudos disse respeito ao papel desempenhado pela cultura religiosa dos imigrantes do mundo insular atlântico no seu relacionamento com o complexo contexto cultural e religioso local. Constatou-se, aqui, a extraordinária relevância do culto ao Espírito Santo, sobretudo nas suas formas tradicionais de expressão derivadas dos Açores para a manutenção de elos com a cultura de origem ou ascendência. (Veja artigo a respeito nesta edição)


É, porém, insuficiente considerar tais expressões apenas como resíduos culturais de um passado findo, mantidas por tradicionalismo como elementos de folclore alienígeno e caracterizador de um determino grupo populacional. Como expressões festivas do culto ao Espírito Santo, exigem que sejam consideradas no seu sentido mais profundo, teológico e filosófico, e tarefa dos estudos culturais é de analisar significados, conteúdos inerentes à linguagem de imagens transmitida do Atlântico ao Pacífico. Tais estudos de expressões culturais relativas ao Espírito Santo como uma das pessoas da Santíssima Trindade levam necessariamente a concepções que dizem respeito aos fundamentos do edifício teológico, assim como das visões do mundo e do homem.


Esses estudos, porém, não se resumem, no caso do Havaí, ao entendimento mais profundo das tradições açorianas em si, mas sim devem ser conduzidos no sentido de procurar analisar as suas relações com a complexa sociedade com que os imigrantes foram confrontados e nas quais se integraram. Muitos descendentes de portugueses, além do mais, tornam-se evangélicos.





O mana havaiano e influências culturais nas diferentes comunidades


Não basta, neste contexto, que se considere diferenças de concepções teológicas católicas com a de outras confissões cristãs de diferentes designações. A cultura religiosa dos nativos havaianos, ainda que de formação missionária, era marcada por concepções de passado remoto que, sobretudo em épocas de reconscientização de valores tradicionais, eram inerentes a expressões culturais. Ainda que não explicitamente vistas como religiosas, relacionaram-se agora necessariamente com concepções cristãs, e o estudo diferenciado dessas interações representa uma tarefa para a pesquisa.


As mais diversas confissões religiosas, as congregações das mais diversas proveniências se mostram marcadas no Havaí por determinadas características comuns, por um espírito de abertura, de particular cordialidade, de expressão terna de amor, de sensibilidade e que procuram justificar com um espírito local, como uma manifestação da adaptação e integração à cultura haviana.


Metodistas, batistas, presbiterianos, adventistas, episcopalistas  -  as mais diversas denominações abrem os seus braços e exclamam Aloha. Imagens católicas trazem colares de flores. Entretanto, esquece-se que esse próprio spiritus loci não é provindo do nada, não é expressão apenas da natureza e do modo de vida, mas sim decorrente de concepções que, no passado, inseriam-se estreitamente no edifício de concepções religiosas e de concepção do mundo e do homem dos polinésios.




O mana havaiano e a pneumatologia dos açorianos


Sobretudo a pneumatologia inerente ao culto ao Espírito Santo necessitaria ser considerada nas suas relações, afinidades e diferenças com concepções do mana da tradição polinésia.


Esse conceito, ainda apto a ser melhor elucidado, diz respeito a um complexo de significados que teem sido entendidos como energia ou força que transpassa toda a natureza, como poder, aproximando-o de concepções do pneuma. Um dos mal-entendidos que colocam obstáculos à análises mais profundas resulta de constatações de que a concepção de mana não diz respeito apenas a uma esfera espiritual, mas sim a toda a natureza; os polinésios não separariam o espiritual do material como os cristãos.


Essa argumentação, porém, não considera suficientemente as bases da pneumatologia nas suas relações com a Criação na tradição bíblica, onde o Espírito "que pairou sobre as águas", e que tudo transpassa, as vivificou e movimentou.


As dificuldades para a compreensão do conceito de mana são não apenas aquelas inerentes à pesquisa de concepções polinésias em geral, etnológicas, mas sim também relativas ao conhecimento e ao entendimento adequado de concepções da própria cultura do observador europeu ou americano.


Essa problemática deve ser necessariamente levada em consideração na pesquisa da cultura musical, ou melhor, músico antropológica nas suas relações inter- e transculturais. Tanto o Espírito da tradição cristã é de fundamental significado para concepções musicais como a de mana para aquelas do polinésio.


A questão que se coloca diz respeito à dimensão metafísica e à base ontológica do corpo de idéias de ambas as culturas. A concepção de uma força que pode ser reconhecida - ainda que em vestígios na natureza no seu todo - e aquela que é principio da natureza vivente e base do homem como criador leva, em grau mais elevado, à noção o de um princípio de natureza imaterial.


Mana e concepções músico-culturais havaianas


Uma imagem desse princípio seria o homem que canta, ou seja, que cria através da palavra atuante. Esse princípio estaria representado no kahuna. O canto, incantações, ou melhor a palavra com potência e modulada desempenhavam necessáriamente importante papel na prática espiritual, mágica, criadora, recriadora e recuperadora.


O conceito de mana relaciona-se, assim, com uma concepção do mundo e do homem e que empresta significado fundamental à palavra, à sua enunciação e à sua conformação, ou melhor, a seu espírito. Significativamente, é o espirito do texto, o espírito do conteúdo poético que sobretudo conta na cultura havaiana tradicional, sendo a conformação melódica antes secundária, decorrente. Não se trataria de colocar um texto a uma música pré-existente, mas sim da modelação musical do primordial, ou seja, da palavra, ou melhor, do seu espirito. Alguns estudiosos viram aqui a base de uma visão essencialmente poética do mundo. O cantor do mele é, assim, poeta-compositor (haku mele).


Essa fundamentação representa, sob esse aspecto, o ponto de partida para a consideração do canto e da dança do antigo Havaí polinésio. A partir dessa concepção justifica-se a necessidade de uma pesquisa de sentido na compreensão das expressões culturais. Sem a consideração do conteúdo invisível, subjacente ou intrínseco às representações exteriores, perceptíveis pelo sentido, os estudos da cultura antiga do Havaí permanecem superficiais.


Os mele - embora não todos - possuem assim dois sentidos, um literal e um oculto, este denominado de kaona. Para o pesquisador, a consideração hermenêutica deve valer para o todo da cultura, ou seja, tanto para os cantos, ou melhor, a palavra cantada ou poema cantado (mele), como para a dança, - interpretação géstica e corporal da palavra cantada (hula) -, como para os instrumentos musicais que acompanham os complexos canto/dança (mele-hula).


O mana é intrínseco aos cantos sagrados e, para resguardá-lo, muitas vezes os nomes de deidades foram substituidos por vocalizações. O canto assim repleto de mana, transmitido como presente a determinada pessoa, torna-se dela propriedade.


A palavra cantada, a música vocal por excelência, sem danças, encontra-se tradicionalmente sobretudo em dois gêneros, no oli e no kepakepa. Ambos são entoados por cantores solistas, especializados. Dominam a técnica de flutuação da vogal no início e no fim de frases e do i-'i, espécie de trêmolo/vibrato utilizado sobretudo em certas vogais e no h aspirado, sobretudo também nos finais de frase.


As possibilidades de conformação musical da palavra manifestam-se nos diferentes estilos do oli. O oli propriamente dito constitui um canto com frases prolongadas, cantadas sem interrupção para a tomada de ar. Percebe-se, aqui, um elo entre a concepção ideal da conformação melódica e a respiração, sugerindo relações entre o mana e o ar, ou o odem, necessário à vida.


Poder-se-ia supor a existência de uma concepção similar à de alguns povos indígenas do Brasil, onde a melodia ideal, seria aquela sem interrupção causada pela necessidade biológica de tomada de ar.


Tal conexão entre a conformação melódica e a respiração indica um elo biológico com a respiração dos viventes, justificando características musicais encontradas em diferentes culturas, tais como initium de elevação, conectado com a aspiração, manutenção da altura numa espécie de tenor e queda gradativa acompanhando a perda da tensão e a soltura do ar. Haveria, aqui, assim, um princípio primordialmente de tendência descendente da antiga cultura.


Uma particularidade do oli representa o estilo ho'aeae, onde se prolongam as vogais. Aqui, em temas líricos, com pouco texto, constata-se o uso prolongado dos 'i'i.


Outro sub-estilo é o ho'ouweuwe, que inclui movimentações soluçadas, sendo utilizado no canto de lamentos.


Ao lado do oli, deve-se mencionar um gênero de recitação vocal destinado à enarração rápida de trechos mais longos, onde a rítmica desempenha papel importante, assim como a pronunciação clara das palavras. Trata-se, aqui do chamado estilo kepakepa.


Também o canto acompanhado por dança (mele hula) não deveria ser considerado sem a sua inserção no edifício de concepções e imagens marcado pelo conceito de mana. Assim, os gestos podem ter natureza imitativa, descrevendo animais e pássaros. Particularmente significante é a géstica dos movimentos, uma vez que ilustra ou interpreta conceitos do texto cantado. Também há acompanhamento instrumental e percussões no corpo, havendo determinado padrões rítmicos para os diversos tipos de hula. Em geral, as mele hula são diferenciadas em danças sentadas (hula noho i lalo ) e danças em pé (hula ku i luna).  (Veja texto sobre a hula nesta edição)




Concepções consuetudinárias e metamorfose cultural


As características do universo das concepções do antigo Havaí, a diferenciação entre o sentido literal das palavras e dos sinais e o seu sentido oculto, espiritual, a noção de criação e da palavra no processo criador explicam a relativa rapidez com que se processou a cristianização das ilhas.


Entretanto, pelo fato de terem sido apenas alcançadas em época tardia dos Descobrimentos - em fins do século XVIII -, não houve a transmissão de folguedos simbólicos de fundamentação religiosa da Idade Média européia, tal como aconteceu nos países americanos. Assim, o populário europeu de representação simbólica da cultura em danças, cortejos e outras expressões festivas não desempenhou papel similar na transformação cultural das ilhas.


Com isso, porém, também não houve a integração de sinais do Homem Velho - da antiga cultura do Havaí não-cristão - no repertório de imagens do Grotesco cristão-ocidental. O fato de ter sido a cristianização realizada sobretudo por protestantes de missões norte-americanas  explica também as características diferenciadoras do processo de transformação cultural do Havaí em comparação àquele ativado no continente americano dois séculos antes.


A contraposição Velho/Novo, tão relevante para a visão da história e do mundo transmitida pelo Catolicismo, não foi tão salientada, transmitindo-se antes uma visão de linearidade histórica. Assim, procedeu-se a uma mudança de referenciação histórica, integrando-se genealogias locais na história bíblica. Ao invés da visão orientada segundo o sentido oculto dos textos e da história sagrada, fomentou-se uma visão literal de textos, salientando-se ao mesmo tempo a importância da palavra e enfraquecendo a sua dimensão de significados. Sob esta perspectiva, a cristianização do Havaí teve como conseqüência paradoxalmente um enfraquecimento de concepções metafísicas e de leitura do mundo como sinais.


A cristianização procedeu-se, assim, não tanto por sinais, tais como no Catolicismo do passado latinoamericano, mas sobretudo pela palavra cantada, ou seja, pelos hinos, em particular os salmos.  Missionários procedentes da New England, vindos em 1820, utilizaram-se da música como meio de cristianização. Já em 1823 publicaram um livro com textos de hinos, Na himeni Havaí, sendo as melodias transmitidas oralmente. Em 1824, fundaram a primeira escola de canto local.


O hinário protestante, porém, sobretudo nessa época da história hinológica, incluia cantos de contorno melódico acentuado, aos quais poderiam ser adequadas diferentes textos e traduções. Implantou-se, assim, um princípio contrário à tradição do antigo Havaí. Antes tinham sido o espírito dos textos, da palavra, o primordial, podendo-se a ele conformar diferentes configurações melódicas; agora, o primordial passou a ser a melodia, a ela podendo ser adaptados textos distintos.


Ao princípio do manifestar musicalmente textos introduziu-se paralelamente o princípio do colocar textos em música, apesar de toda a retórica em contrário dos missionários a respeito da supremacia da palavra.


Esse dualidade de princípios, em parte conflitantes, passou a determinar o desenvolvimento musical do Havaí, podendo ser vista como fonte de tensões, apesar de todas as interações. O novo princípio levou a uma acentuada receptividade dos havaíanos por melodias e contornos melódicos vindos do Exterior, favorecendo uma tendência ao melodismo de fácil apreensão e à assimilação de músicas alienígenas para nelas adaptarem textos. 


Noção de mana e questões organológicas


Como em eventos do ISMPS e da Academia Brasil-Europa vem sendo discutido de forma particularmente intensa há décadas, uma orientação teórico-cultural da musicologia exige a reconsideração de critérios da pesquisa organológica. Assim, o Congresso Internacional "Música e Visões" de abertura do triênio de eventos pelos 500 anos do Brasil abriu-se em 1999 com a apresentação de um projeto de mídia relativo a instrumentos musicais indígenas que visiou sensibilizar os pesquisadores sobre a inadequação de classificações de instrumentos musicais segundo critérios exclusivamente sistemáticos de uso na Etnomusicologia (p.e. Sachs-Hornbostel).


A categorização de instrumentos basicamente segundo critérios de modos de produção de som, . p.e. membranofones, idiofones, cordofones - não só não corresponde a concepções intrínsecas a diferentes culturas como também não favorece a compreensão e a análise de sentidos, de imagens e símbolos, assim como de mecanismos de transformação cultural que possam explicar substituições de instrumentos.


Essa problemática, estudada sobretudo com relação aos instrumentos indígenas e de expressões culturais tradicionais do Brasil, diz respeito também à pesquisa músico-cultural do Havaí. Também aqui os instrumentos musicais teem sido considerados quase que exclusivamente segundo modêlos classificatórios externos e artificiais. Já o fato de que grande parte dos instrumentos, divididos em 18 categorias, relaciona-se com a dança, indica que o seu sentido e função na própria cultura deveria estar no foco das atenções, uma vez que a dança tradicional possui um amplo espectro de significados, apenas analisáveis no complexo das concepções e das visões do mundo e do homem.




Uma certa similaridade com o discutido relativamente às culturas indígenas do Brasil constata-se relativamente ao instrumento denominado 'uli-uli. Assim como se tem procurado caminhos para a compreensão do significado extraordinário da maraca nas culturas indígenas e, a partir daqui, as transformações por que passou no decorrer da história do contato e da missão, levando inclusive a substituições de difícil compreensão numa primeira aproximação, similar procedimento apresenta-se como necessário para uma análise mais profunda da função e do simbolismo do 'uli-uli havaiano.


Também esse instrumento era inserido no edifício global de concepções, sendo utilizado na hula, como testemunhado pelo fato de ter James Cook observado, em 1778/79, em Kealekekua, uma dança do chocalho ovular (hula 'uli-uli) executada pelos dançarinos 'Olapa. Os instrumentos eram envolvidos por fibras e colocados dentro de uma ara ou cone circular enfeitado com penas. Constataram também que os dançarinos masculinos ('Olapa) usavam o kupe'e niho ilio, feitos de dentes caninos.


A cabaça foi substituida posteriormento por outros receptáculos, trazidos da América, ou por côcos, e o aro ou disco que envolve o glóbulo do instrumento passou a ser feito com penas. É tocado hoje geralmente em pares, e os executantes se acompanham a si próprios com o instrumento em danças sentadas ou de pé.


Assim como as maracas dos indígenas americanos apresentam diversas formas, há também diversas formas do similar instrumento do Havaí. Assim, o 'ulili é formado de três cabaças. Unidas por um cordão, as duas externas soam quando o cordão é tocado através de um orifício no glóbulo central.


Outros instrumentos havaianos apresentam similaridades com aqueles encontrados entre os indígenas no Brasil, o estudo de sentidos e funções, porém, encontra-se aqui em ambos os casos em estágio pouco desenvolvido. Os executantes também podem executar um idiofone tubular feito de bambu para acompanharem-se a si próprios (pu'ili). O instrumento é feito de uma parte de bambu local e contém fendas estreitas longitudinais. É seguro por uma das pontas com um nó. O executante executa-o batendo o bambú na palma da mão ou no chão. Tubos de bambú duro que se batem no chão (Ka'eke'ele), são abertos ao alto e fechados com um nó natural na parte inferior. Também são usados aos pares, sendo os bambús de diferentes comprimentos. os paus de entrechoque (Kala'au) executados por dançarinos e o papa hehi, uma prancha de madeira calcada com os pés.


Um fenômeno que chama a atenção ao pesquisador de instrumentos indígenas ao confrontar-se com instrumentos havaianos é a existência da flauta de nasal, conhecida na pesquisa indígena brasileir sobretudo dos Nhambiquara.  Essa flauta de bambú nasal ('ohe hano ihu) apresenta o orifício nasal abaixo do nó que fecha o instrumento num dos lados e dois ou três orifícios no tubo. Também aqui denota-se a existência de concepções explicáveis pelas concepções do mundo que justificam esse tipo de execução: o elo com a respiração,o odem da vida, e a não necessidade de interrupções para a tomada de ar.


Conhecimentos de ambos os contextos culturais podem, assim, contribuir para o aprofundamento dos estudos de ambos os lados, evitando-se, naturalmente, conclusões injustificadas em casos que, apesar da similaridade externa, pouco se sabe a respeito de seus usos ou das concepções com eles relacionadas. Isso vale para a flauta globular ou  apito de fruto (ipu hokiokio). O mesmo vale para o "trompete" feito de folhas enroladas (pu la'i) e o zumbidor (oeoe).


Também o instrumento de sôpro para sinais feito de grande concha (pu kani) necessitaria ser melhor estudado antes que se fizesse interpretações, apesar da probabilidade das hipóteses elucidativas a serem colocadas através do conhecimento de outros edifícios mitológicos. Em alguns casos, deve-se considerar sobretudo a possibilidade de se tratar de assimilações de instrumentos, como, talvez, as castanholas de lava vulcânica de diferentes tipos (Ili'ili).


A necessidade de estudos da linguagem visual e de sentidos de instrumentos musicais na sua inserção do complexo de concepções do mundo e do homem e nos seus elos com desenvolvimentos históricos revela-se na consideração dos membranofones. Aqui, o pesquisador brasileiro confronta-se com questões que conhece não tanto da pesquisa indígena, mas sim daquela de outros contextos, sobretudo do tambor europeu introduzido no âmbito de diversas expressões lúdicas e simbólico-religiosas e seus elos com formas de instrumentos trazidas por africanos.




O significado das concepções músico-antropológicas associadas a membranofes na Polinésia pode ser intuída de antigas referências de navegadores e visitantes. Esse sentido evidencia-se sobretudo no tambor de dança (pahu hula) é executado pelo ho'popa'a (cantor-tamboreiro) para acompanhar o dançarino 'olapa na dança do tambor (hula pahu). Pode ser feito ou de cabaça, com aberturas ao alto e embaixo (ipu hula), ou de madeira com couro e encordoamento (pahu hula), acompanhado por um tambor de joelhos, feito de côco (puniu). Segundo a tradição, o pahu seria proveniente do Taiti, tendo sido de lá trazido há seis séculos por um viajante, La'a-mai-Kahiki. Os sacerdotes o adotaram para as danças sagradas executadas nos templos, considerando-o sagrado (pahu heiau).


Para os estudos da imigração portuguesa, suas contribuições para a cultura havaiana e suas consequências no decorrer do processo transformatório o principal instrumento a ser considerado é o ukeke, instrumento com três cordas de fibras, na qual a boca do instrumentista é usada como caixa de ressonância. Esse instrumento, o único de cordas do instrumentário tradicional, estaria à base das substituições com instrumentos de corda dedilhadas introduzidos pelos europeus e outros imigrantes, entre êles, sobretudo, o cavaquinho e outros instrumentos da família da guitarra, ou seja, o o ukelele. (Veja artigo a respeito nesta edição)


O pesquisador brasileiro é aqui confrontado com questões de relevância imediata para os estudos músico-culturais e músico-antropológicos referentes ao Brasil. Processos estudados e debatidos em eventos do ISMPS e da Academia Brasil-Europa referentes aos mecanismos transculturais de substituição da maraca e instrumentos afins pela viola e outros de corda dedilhada, com base em concepções simbólico-antropológicas de fundamentação teológica, correspondem aos processos constatados no Havaí.


Entretanto, como se trata no caso havaiano de substituição de instrumento de corda dedilhada por outro, pode-se partir da suposição de ter-se aqui uma substituição de segundo grau, ou seja, uma substituição possibilitada por uma substituição anterior, esta sim fundamental no processo de transformação tipológica.


Ainda que se tratando de mera hipótese baseada na lógica analisada de mecanismos transculturais estudados em outros contextos, essa suposição pode abrir perspectivas para estudos mais aprofundados do papel do ukeke na hula, instrumento de tão pouco volume, ainda não bem explicado.


Teria o ukeke substituído o uli-uli ou instrumento similar no decorrer do processo cristianizador, sendo a cabaça antes conservada como atributo, manifestando a sua carga simbólica nas dimensões do instrumento ao lado das dançarinas? Esse mecanismo explicaria também o fato de que as possibilidades de substituição não estariam esgotadas, podendo nela ocorrer os mais diversificados instrumentos de cordas dedilhadas.

(...)


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.
Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. "Pluralidade religiosa e relações interconfessionais no Havaí sob a ação do spiritus loci: mana e concepções musicais e organológicas na cultura havaiana". Revista Brasil-Europa 126/18 (2010:4). www.revista.brasil-europa.eu/126/Mana.html


  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


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  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.


 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 126/18 (2010:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2625




Pluralidade religiosa e relações interconfessionais no Havaí sob a ação do spiritus loci
mana e concepções musicais e organológicas na cultura havaiana


Trabalhos no Havaí pelos 25 anos da oficialização alemã do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa
(
Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes - ISMPS e.V.)

 
     




         





  1. Igreja dos Santos Inocentes, Lahaina (Título, duas superiores da coluna e texto)
    Igreja Católica de de Waikiki (texto)
    Igreja Batista de Lahaina (coluna)
    Igreja Metodista de Lahaina (texto e coluna)
    Igreja Adventista de Lahaina (texto e coluna)
    Igreja Central Cristã de Hilo

Imagens de instrumentos: Centro Cultural da Polinésia/Oahu (coluna)

Placas informativas em Waikiki (texto)
Fotos A.A.Bispo e H. Hülskath©

 

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