Aloha 'Oe: Liliuokalani e a cultura poético-musical. Revista BRASIL-EUROPA 126. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 


Entre as personalidades femininas da história cultural de países não-europeus do século XIX que chegaram a dirigir nações, dois nomes se destacam: a Princesa Isabel do Brasil (1846-1921) e a Rainha Liliuokalani do Havaí  (1838-1917).

Guardadas as diferenças de origem, formação, posição e das circunstâncias em que viveram, essas dois vultos, contemporâneos, aproximam-se entre si por terem deixado marcas indeléveis e de alta carga simbólica e emocional na história de seus países. Ambas foram vítimas de golpes de Estado que derrubaram govêrnos democráticos constitucionalmente legitimados.

A consideração paralela dessas duas personalidades surge sob muitos aspectos como de significado para uma história cultural em contextos globais. Ela possibilita um necessário reconhecimento de vultos femininos de extraordinários méritos e capacidade, indevidamente afastados de posições influentes quanto ao desígnio de seus povos. É uma tarefa da justiça histórica e da reconstrução de uma silenciada história.

A consideração paralela dessas duas personalidades possibilita, sobretudo, o reconhecimento de processos globais que levaram à queda de uma forma de govêrno parlamentar e civil, com todas as suas consequências culturais. Para o observador brasileiro, que sabe que a instauração da República (1889) foi acompanhada por uma designação do país como "Estados Unidos" e por símbolos de evidente proximidade aos norteamericanos - por exemplo quanto à bandeira e ao hino propostos para substituir os antigos - o estudo dos acontecimentos havaianos surgem como particularmente instrutivos, pois levaram não apenas à mudança da forma de govêrno, mas ao fim de sua existência como país autônomo, ou seja, à sua anexação pelos Estados Unidos.

Liliuokalani: o risco do "partido missionário" com conhecimento de causa

Liliuokalani (Lydia Kamehameha) obteve a sua formação escolar na escola para filhos de chefes nativos dirigida por pastores norte-americanos. Cresceu, assim, em ambiente marcado pelo congregacionalismo, adquirindo profundo conhecimento dos modos de vida, das concepções e dos procedimentos dos missionários americanos. A formação que recebeu encontrava-se, pela suas raízes históricas, remontantes aos dissidentes e independentes inglêses, em situação de tensão com aquela de orientação episcopalista e pró-britânica de Kamehameha IV (1834-1863) e da rainha Emma (1836-1885) (Veja artigo a respeito nesta edição). A desconfiança de congregacionalistas norte-americanos com relação ao episcopalismo e anglicanismo parece poder explicar até mesmo, sob certos aspectos, a distância crítica de Liliuokalani relativamente à rainha Emma.

Pela sua formação e orientação, Liliuokalani possuia profundo conhecimento da cultura norte-americana e não cultivava fundamentalmente sentimentos de antipatia para com os Estados Unidos. Entretanto, a sua própria experiência a levou a constatar o risco que representava para a autonomia havaiana o crescente poder, a auto-consciência e a influência política dos norte-americanos residentes no país, em grande parte descendentes de missionários.

Os missionários protestantes, dominantes no Havaí, haviam constituído grandes famílias, cujos membros adquiraram grandes propriedades, alcançaram riquezas pessoais e posições de influência na economia e na política. O conhecimento profundo de Liliuokalani da mentalidade norte-americana derivava do fato de ser ela própria casada com um americano: John Owen Dominis (1832-1891).

John Owen Dominis era filho do navegador Capitão John Dominis (1796-1846), imigrado para os EUA durante o período napoleônico através de Trieste. Era chamado, por isso, de "italiano", embora tivesse ascendência croata. A serviço de Josiah Marshall (1771-1848), de Boston, empreendedor de comércio com o Exterior de grandes iniciativas no Oriente e na costa do noroeste americano, o pai de John Owen Dominis passou a navegar pelo Pacífico, tendo feito frequentes visitas ao Havaí. Em 1837, mudou-se de Nova Iorque para Honolulu. A procura de ascensão social no reino levou-o a construir uma residência representativa, para cujos custos tornaram-se necessárias outras viagens comerciais. Esteve na China, em 1846, quando então faleceu. Na sua casa em Honolulu estabeleceu-se a legação americana. Foi denominada por Kamehameha III de Washington Place. Tornou-se, posteriormente, residência de Liliuokalani.

O casamento de Liliuokalani, realizado em 1862, foi prejudicado por preconceitos raciais. Apesar de sua antiga estirpe real, sofreu sob a discriminação por parte da mãe de seu marido, também consciente de maior poder econômico e da supremacia da raça "caucásica" (na terminologia norte-americana). Já Kamehameha IV fizera a degradante experiência, nos Estados Unidos, de ser expulso de seu lugar numa viagem de trem devido à cor de sua pele. (Veja artigo nesta edição)

A seu marido foram confiados cargos de importância na política e na administração do país. Assim, em 1863, tornou-se membro do Conselho pessoal do rei e, a partir de 1868, governador real de Oahu. Serviu nas áreas da saúde, da educação e da imigração. De 1878 a 1886, foi governador de Maui. Em 1883, Liliuokalani adotou uma filha que tivera de outra ligação.

Música na residência de Liliuokalani: recepção do Duque de Edinburgh (1869)

A formação musical de Liliuokalani, a sua produção musical e o papel que desempenhou na história musical do Havaí merecem particular atenção de uma pesquisa de processos musicais em contextos globais. A principal fonte para o seu estudo é o livro com memórias da própria Liliuokalani, uma obra em que a música ocupa papel relevante (Hawaii's Story by Hawaii's Queen Liliuokalani (Honolulu: Mutal Publishing,  1990).

Nas recordações ali expostas, Liliuokalani registra o significado da música na na sua residência e nas relações entre o Havaí e as demais nações.

Um dos principais eventos da história cultural havaiana sob o aspecto das relações internacionais foi o da visita de Alfred Ernest Albert (1844-1900), Duque de Saxe-Coburg e Gotha e Duque de Edinburgh, segundo filho da Rainha Vitória (1819-1901).

As viagens realizadas por esse príncipe ao redor do mundo adquirem significado relevante na história intercultural de várias nações, nos quais o Brasil também se inclui. Já em 1860 representou o seu país na Colonia do Cabo. Em 1867, com a sua nave H.M.S. Galatea, realizou uma viagem ao redor do globo, tornando-se o primeiro príncipe a visitar a Austrália, sendo ali recebido com grandes festividades. O atentado de que foi vítima em Sydney alcançou repercussão internacional. Na sua viagem seguinte, em 1869, o objetivo foi a Índia, passando por Hong Kong. Também aqui foi êle o primeiro príncipe britânico a visitar as colonias, sendo recebido com recepções e festas.

Em Honolulu, papel importante das festividades de recepção do príncipe foi desempenhado por Liliuokalani, que ofereceu um sarau na sua residência. De seus registros, pode-se constatar o significado da música nos contatos entre a princesa havaiana e o príncipe inglês, inclusive com trocas de composições de própria autoria. Duas dessas obras do Duque de Edinburgh - cuja produção musical não tem sido considerada pela pesquisa - foram conservadas por Liliuokalani. Posteriormente, quando da visita de Liliuokalani em Londres, em 1887, por ocasião do jubileu da rainha Vitoria, esses momentos de afinidade de interesses foram relembrados, marcando de forma favorável a presença da princesa havaiana na Inglaterra.

No ano de 1869, o Duque de Edinburgo, Príncipe da Inglaterra, chegou ao porto de Honolulu como comandante do navio de guerra de S.M., Galatea. Assim que o rei tomou notícia da presença do duque, fêz preparativos especiais para recebê-lo; e para a sua melhor acomodação determinou para o seu uso a residência do antigo Kekuanaoa, que morrera em novembro do ano precedente. A minha própria mãe havia morrido ca. de três meses antes da chegada do Galatea; não estava tomando parte de nenhuma festividade, estando em retiro da sociedade. Mas essa foi considerada uma ocasião especial, e o rei manifestou o seu desejo de que eu não deveria faltar a honrá-lo. Assim, segundo o seu pedido específico, dei um grande luau na minha residência em Waikiki, para o qual foram convidadas todos aqueles conectados com o govêrno, todas as primeiras famílias da cidade, fossem nativas ou de nascimento estrangeiro. (..) Foi considerada uma das maiores ocasiões na história daqueles dias (...)  Os convidados foram recebidos com todo o tipo de cortesia por meu marido e por mim própria, assim como por S. M. Kamehameha V, que foi um dos primeiros a chegar. Quando o príncipe entrou, foi recebido por duas muito bonitas senhoras hawaianas, que, a êle chegando, de acordo com o costume do nosso país, o decorou com leis, ou correntes longas de flores suspensas ao pescoço. (...) bailes, pic-nics e festas seguiram-se a esse dia de alegria; e o príncipe deu, de retorno, uma recepção na sua própria casa, à qual estivemos meu marido e eu própria, assim como as mais distintas pessoas da cidade. (...) Na ocasião de sua partida, presenteou-me com um bracelete emblemático da sua profissão (...). Deu-me também cópias de duas de suas próprias composições musicais; e desde este dia guardo e cuido esses três souvenirs do filho da boa rainha da Inglaterra. Nós nos encontramos ainda uma vez desde aqueles dias, no Jubileu da Rainha, durante a minha visita a Londres, em 1887. Nosso antigo conhecimento foi recordado cordialmente pelo príncipe, que foi o meu acompanhante em ocasião oficial, meu vizinho mais próximo, que tive, à outra mão, o atual imperador da Alemanha. (op. cit., pág. 34)

Liliuokalani e a cultura poético-musical do Havaí

No seu livro, Liliuokalani salienta o significado extraordinário da cultura poético-musical no Havaí. Lembra que esse significado tinha origem secular, na cultura anterior à chegada dos europeus. Esse significado, porém, expresso na aptidão de improvisação de cantos narrativos, líricos e religiosos, podia vir a ser esquecido, uma vez que muito pouco havia sido registrado.

"O povo do Hawai sempre foi, desde tempos imemorais, amantes da poesia e da música, e apto na improvisação de poemas históricos, canções de amor e cantos de culto, de modo que o laudar a vida ou o lamentar a morte foram sempre expressões naturais de seus sentimentos. Meus ancestrais foram particularmente bem dotados nesse sentido, e é singular que haja - se houver - apenas poucas composições escritas da música do Havai, excetuando-as aquelas por mim publicadas." (pág. 30)

Segundo o seu depoimento, o reinado do seu irmão Kalakaua (1836-1891), a partir de 1874, surge com um período de particular brilho na história da cultura poético-musical havaiana (Veja artigo a respeito). Os dados aqui fornecidos por Liliuokalani são de inestimável significado para a documentação da vida musical nos círculos da realeza do Havaí e para estudos de processos de transformação cultural.

William Pitt Leleiohoku (1854-1877) e os círculos musicais da Côrte havaiana

Liliuokalini salienta, nessas suas memórias, o talento musical do seu irmão William Pitt Leleiohoku. Logo de sua subida ao trono, Kalakaua indicou-o a seu sucessor, medida possibilitada pela Constituição de 1864. Esse príncipe exerceu a Regência durante a primeira ausência de Kalakaua do país. Liliuokalani lembra ter sido êle um jovem que gozava de grande popularidade e que apreciava a vida cultural e social. Tinha um gosto especial para recreações sociais e apreciava o lado alegre e festivo da vida. Com a sua morte prematura, porém, não chegou a desenvolver plenamente as suas potencialidades.

Êle possuía, segundo o depoimento de Liliuokalani, o mesmo amor pela música e similar paixão pela poesia e pela canção como ela própria e o rei Kalakaua. Êle teria até mesmo um maior talento para a composição do que as outras duas princesas, ela e Miriam Kapili Kekauluohi Likelike (1851-1887).  

Os seus admiradores constituiam um dos três grupos que configuravam a prática musical da Côrte, ao lado daquele dos apreciadores do círculo de Liliuokalani e da princesa Likelike . Esta última, que chegou a ser governadora de Big Island (1879-1880), era conhecida por seu interesse por questões culturais - e de moda segundo as mais recentes tendências francesas -, assim como pelas suas composições.

Esses círculos musicais, tais como clubes ou associações, rivalizavam-se entre si quanto à excelência da música e da poesia que cultivavam. Os poemas e as composições musicais dos príncipes eram transmitidas oralmente pelos seus membros, cantadas e difundidas. Cada grupo procurava exaltar os méritos da respectiva personalidade que os guiava.

Entretanto, Liliuokalani faz questão de salientar que o príncipe William Pitt Leleiohoku superava a todos nas suas criações. Uma das razões de sua supremacia residia na qualidade vocal e de interpretação do grupo que havia fundado, o Kawaihao Singing Club, formado por cantores masculinos com as vozes mais puras e suaves do Havaí. Muitas das canções interpretadas por esse conjunto alcançaram grande divulgação e se popularizaram. Entretanto, somente Liliuokalani passou-as para o papel. Isso poderia ser, como salienta, estranho para observadores de outras nações que admiram a beleza e a harmonia da música havaiana em geral, mas era um resultado das próprias características da cultura musical local, baseada fundamentalmente na transmissão oral.

Entre as canções de William Pitt Leleiohoku mencionam-se Adios Ke AlohaMoani Ke Ala e Kaua I Ka Huahuia'i.

Papel da transmissão oral e processo (re-)criador

Liliuokalani oferece, no seu texto, dados que permitem reconhecer o papel desempenhado pela oralidade na transmissão de canções e seu significado para a formação de repertórios. Como menciona, assim que uma canção era criada, ela era passada pelo seu criador a um de seus amigos mais íntimos; este, por sua vez, a cantava a outro, e assim prosseguia a sua circulação, garantindo a permanência dos cantos através das gerações.

O processo assemelhava-se àquele da popularização de árias favoritas introduzidas por companhias de ópera. Se a música, em outras nações, era perpetuada sobretudo pela escrita, isso não acontecia no Havaí. O país prosseguia aqui com o procedimento do passado, quando os bardos havaianos transmitiam a história do país em poemas e cantos. Essa característica cultural era vista por Liliuokalani como justificativa do grande significado da música para os havaianos e como prova de sua particular aptidão. (pág. 53)

Esse significado da transmissão oral de canções salientado por Liliuokalani pode ser visto como testemunho da grande receptividade musical dos havaianos e que explica o fato de assimilarem facilmente melodias ouvidas. Justifica, também, que canções criadas por personalidades com autoridade refletiam experiências próprias de assimilação, de melodias ouvidas, guardadas na memória e recriadas com modificações.

Compreende-se, assim, que haja menções sobre a similaridade de canções criadas por personalidades da história havaiana com outras melodias, com cantos de visitantes estrangeiros, de marinheiros, comerciantes ou daqueles transmitidos por missionários que ali se estabeleceram. Com isso, o repertório de canções apresenta vínculos com aquele tradicional de europeus e norte-americanos, consistuindo uma tarefa da pesquisa musical detectar caminhos de transmissão, de assimilação, de transformação e de fixação de características diferenciadoras. Esse processo não se encerrou no passado, mas tem continuidade, e mesmo melodias difundidas sob o nome de um de seus prominentes recriadores foram adaptadas a outros textos, como a canção de Leleiohoku Kaua I Ka Huahua'i ao mais recente "Canto de Guerra Havaiano".

Essas características do processo difusivo dirige a atenção às múltiplas questões que podem ser consideradas por uma pesquisa musicológica de orientação teórico-cultural. Uma delas diz respeito à questão de propriedade autoral e de direitos do criador.

Liliuokalani e o domínio da escrita musical

Liliuokalani adquire especial significado em estudos de processos de transformação músico-cultural pelo fato de ter dominado a escrita musical em contexto fundamentalmente determinado pela transmissão oral. Ela própria menciona o fato de ter sido a única do círculo real de criadores musicais capaz de passar as invenções musicais para o papel, fixando-as e contribuindo, assim, para a sua perpetuação sob as condições introduzidas pelos estrangeiros, que privilegiavam a transmissão escrita.

Essa sua capacidade tinha, segundo ela, raízes em aptidões naturais, na sua facilidade em aprender a ler música. Apesar de ser a leitura musical um resultado do ensino missionário, Liliuokalani fora um dos poucos alunos que chegaram a dominá-la de forma a poder cantar à primeira vista novos cantos apresentados por seus mestres. Essa sua aptidão não suprimia o processo de transmissão oral, pelo contrário, representava uma nova fonte para a assimilação de melodias que passavam então a ser assimiladas de ouvido e difundidas.

"Nos anos de escola, a minha facilidade em ler música à primeira vista sempre foi reconhecida pelos meus mestres. Na escola que frequentei, (...) havia apenas um menino a meu lado que sabia ler as melodias de novos cantos que os professores queriam ensinar aos alunos. O seu nome, eu me recordo, era Willie Andrews. A música era-nos posta nas mãos, e a cantávamos lendo as notas, sendo seguidos, de ouvido, pelo restante dos alunos até que toda a classe se familiarizasse com a nova música. Depois de ter deixado a escola, a minha educação musical teve continuidade de tempos em tempos, de acordo com as possibilidades que se ofereciam, mas pouco me recordo de dias em que não me foi possível escrever nem palavras nem música para alguma ocasião que necessitasse poesia ou canção. Compor foi tão natural para mim como respirar; e esse dom da natureza, nunca tendo sofrido por cair em desuso, permanece uma fonte da maior consolação para hoje. Nunca numerei as minhas composições, mas estou certa que devem ser bem mais do que centena. Dessas, não mais do que um quarto foi impresso, mas as mais populares foram tão procuradas que esgotaram-se várias edições. (...) e mesmo quando não dispunha da ajuda de qualquer instrumento, pude transcrever ao papel os tons da minha voz.

Se a receptividade dos havaianos, fundamento do processo de transmissão oral, favoreceu uma fácil assimilação de melodias ouvidas e a sua "recriação" a partir da memória, o domínio da leitura abriu novas possibilidades e significou até mesmo uma nova dimensão no processo de aprendizado, de apropriação e transformação musical. Liliuokalani pôde orientar-se segundo técnicas das composições européias e norte-americanas que podia ler e estudar, ampliando assim a sua receptividade a novos impulsos melódicos e harmônicos. Paralelamente, reconhecendo o significado da música impressa, empenhou-se em publicar as suas próprias composições.

Como a primeira de suas composições considera-se Nani Na Pua ("Flores de Ko'olau"), sob o pseudônimo L. K. Paki. A sua mais famosa composição foi Aloha 'Oe.

Compositora do Aloha'Oe, "hino nacional" e emblema

O nome de Liliuokalani como criadora musical perpetuou-se sobretudo pelo seu Aloha'Oe. Esse canto surge como de particular interesse para estudos históricos-musicais que dirigem a sua atenção a situações culturais em transformações de países extra-europeus no século XIX e a processos de difusão e popularização. A canção nasceu durante um passeio a cavalo que fêz em 1877. Após ter visitado o rancho Boyd, em Maunawili, observou um abraço de despedida entre o Coronel James Boyd e uma das jovens senhoras do rancho. Uma melodia ocorreu-lhe durante a viagem de volta e compôs o texto na sua residência. Tem-se observado que a melodia do coro tem similaridade com uma canção de George Frederick Root (1820-1895), de 1854, de nome "Há música no ar".

Liliuokalani oferece pormenores sobre o hino nacional havaiano por ela composto, oferecendo pormenores sobre as circunstâncias de sua criação à época de Kamehameha V (1830-1872) e a sua substituição pelo hino de Kalakau e música de Henri Berger (1844-1929) (Veja artigo nesta edição).

Nos primeiros anos do reinado de Kamehameha V°, êle comunicou-me o fato de que o povo hawaiano não possuía um hino nacional. Toda a nação, disse, com exceção da nossa, tem a sua expressão de patriotismo e amor ao país na sua própria música; mas nós usamos para esse fim em ocasiões oficiais o hino britânico,  honroso pelos seus anos, "God save the Queen". Este êle desejava que suplantasse com uma composição de minha autoria. No prazo de uma semana, fiz que fosse notificado ao rei que havia completado a minha tarefa. A Princesa Vitória tinha sido a regente do coro da igreja Kawaiahao, mas, após a sua morte, a 29 de maio de 1866, assumí a direção. Foi nesse edifício e pelo coro que apresentei primeiramente o "Hino Nacional Hawaiano". O rei estava presente para julgar a minha nova composição, tanto de palavras como de música, e foi liberal nos seus louvores ao meu sucesso. Admirou não apenas a beleza da música, mas falou entusiasticamente sobre as palavras apropriadas, tão bem adaptadas à melodia e para o objetivo para o qual haviam sido escritas.

Esse canto permaneceu em uso como nosso hino nacional durante vinte anos ou mais, quando então o meu irmão compôs o texto para o Hawaii Ponoi.  Era, na época, o rei reinante, e deu ordens ao regente da banda para por esse texto em música. Este, sendo um alemão, encontrou alguma composição de seu próprio país que lhe pareceu apropriada; e esta foi considerada durante anos o nosso hino nacional.

Nas transformações dos últimos anos, as palavras escritas por Sua Majestade Kalakaua não foram vistas mais como adequadas a ocasiões públicas; enquanto a música soa, sentimentos tais como "Olhe para o povo" foram substituídos pela velha injunção "Olhe para o rei". "(pág. 32)

Liliuokalani como regente e o poder dos descendentes de missionários

Com a morte de Kalakaua, em 1891, Liliuokalani subiu ao trono. Uma de suas preocupações foi a da posição da mulher na sociedade havaiana. Sob a sua égide, construiram-se escolas com o objetivo de promover a formação e a ascensão da mulher de ascendência nativa. Esse empenho pelos direitos femininos correspondia à tradição cultural havaiana, marcada por personalidades de mulheres. Com base na sua própria experiência pessoal e na daquela de sua irmã Likelike, constatara que os norte-americanos possuiam outra concepção do papel a ser desempenhado por mulheres na vida cultural e política.

Durante o seu curto reinado, atividades musicais foram fomentadas, promovendo-se concertos no Palácio Iolani. Ela própria continuou a apresentar-se como cantora e a orientar grupos de canto.

A época de seu reinado foi marcada por crescentes dificuldades econômicas, sobretudo relacionadas com a exportação de açúcar aos EUA. Com a supressão de privilégios que até então favorecera o produto havaiano, em 1890, - e que haviam sido os americanos que plantavam cana de açúcar no Hawai sentiram-se prejudicados. Passaram a exigir de forma cada vez mais intensa a anexação do Havai aos EUA.

Sentindo o poder dos americanos no país e na própria administração, Liliuokalani procurou recuperar o poder perdido da monarquia, o que, porém, contrariava os interesses americanos. Os americanos, proprietários de terras e de plantações, criaram um Comitê de Segurança Nacional, sob a liderança de Sanford Dole (1844-1926). Dole, de família de missionários norte-americanos, - o seu primo era o grande plantador, o magnata James Dole (1877-1958), o "rei dos abacaxís", representava os interesses da parcela populacional de imigrantes que alcançaram poder no país. Através de sua ação, US-Marines entraram no país e colocaram a rainha sob prisão domiciliar. Em 1894, proclamou-se a República, tornando-se Sanford Dole presidente.

Após uma fracassada tentativa de recuperação da autonomia do Hawai, em 1895, Liliuokalani foi presa sob arresto no Palácio Iolani. Para possibilitar a libertação daqueles que procuraram recuperar a independência do país, renunciou ao trono, dirigindo-se a Washington, D.C., onde procurou caminhos para que o Hawai voltasse a ser reino independente. Entretanto, em 1898, o Havaí foi anectado pelos USA.

Liliuokalni distinguiu-se pela coragem que demonstrou em procurar todos os meios para recuperar a autonomia e a dignidade do seu país. A ex-rainha encerra o seu livro com um capítulo sobre a autonomia do Havaí, um apelo e uma crítica aos descendentes dos missionários. Ela respondia a argumentos de pessoas sobretudo da New England, que afirmavam que a monarquia havaiana tornara-se intolerável para a parte mais esclarecida da comunidade. Tratando do ponto de vista nativo, salientava que a receptividade que os havaianos haviam tido para com novos conhecimentos e para a educação não significava que não tivessem qualidades mentais e físicas próprias e que deveriam ser respeitadas. Hábitos e modos de viver de estrangeiros não significavam automaticamente serem melhores do que os havainos, o mesmo valendo para a forma de govêrno.

Oh, americanos honestos, ouçam-me como cristãos pelo meu rebaixado povo! A sua forma de govêrno é tão querida a eles como a vossa é preciosa a vós. Tanto como amais o seu país êles amam o seu. Com todas as vossas possessões, cobrindo um território tão imenso que grande parte permanece explorada, possuindo ilhas à mão que, próximas, servem como campo neutro em tempo de guerra, não cobicem a pequena vinha de Naboth's, tão longe de suas costas (...). Aqueles a que os seus pais contaram do Deus de amor e os ensinaram a chamar "Pai" e a quem hoje os filhos procuram despojar e destruir, choram e clamam a Ele nos seus sofrimentos; e Ele quer guardar a Sua promessa, e ouvir as vozes dos Seus filhos havaianos lamentando pelas suas casas.
É para êles que daria a última gota de meu sangue; (...) Será isso em vão?
(op.cit., pág. 373-374)

Victoria Ka'iulani (1875-1899) e a luta pelo Havaí autônomo

Uma consideração da personalidade e da obra de Liliuokalani não deve deixar de mencionar aquela que deveria tê-la seguido ao trono, a princesa Victoria Ka'iulani, filha da irmã de Liliuokalani. Apesar de sua juventude, foi uma das mais personalidades que mais se empenharam pela restauração dos direitos de Liliuokalani e que procuraram evitar a anexação pelos Estados Unidos. Para esses fins, realizou discursos no Congresso norte-americano e tentou intervir junto a presidentes.

Victoria Ka'iulani adquire sob diversos aspectos particular interesse para os estudos culturais. Um deles diz respeito ao fato de ter-se tornado quase que um mito na cultura do Havaí, admirada pela sua capacidade intelectual e fibra, inspirando obras literárias e artísticas, estando hoje presente em monumento e na denominação de um dos principais hotéis internacionais de Waikiki.

De ascendência em parte britânica - o seu pai foi o homem de finanças escocês Archibald S. Cleghorn (1835-1910), último governador real de Oahu, o vínculo com o Reino Unido, que se manifestava no seu nome Victoria, foi aprofundado com a educação que recebeu.

Em 1881, o rei Kalakau tentou criar uma aliança do Havaí com o Japão através de um casamento de Ka'iulani com um príncipe japonês, o que não se realizou.

Do ponto de vista artístico, Victoria Ka'iulani teve a sua formação marcada pela música e pela pintura. Dentre os artistas, salienta-se o paisagista Joseph Dwight Strong e Isabel Strong (Veja David W. Forbes, Encounters with Paradise: Views of Hawaii and its People, 1778-1941, Honolulu: Academy of Arts, 1992, 174-212).

Procurou-se conscientemente que Victoria recebesse uma sólida formação na Inglaterra para que estivesse bem preparada para uma futura posição de soberana. Assim, foi enviada, em 1889, a um colégio particular em Northamptonshire, o Great Harrowden Hall. Sobressaiu-se em latim, literatura, matemática e história e destacou-se como esportista. Em 1892, transferiu-se para Brighton, dedicando-se sobretudo ao estudo de francês, alemão e inglês.

Deveria ter sido apresentada à Rainha Vitória quando tomou conhecimento da derrubada da monarquia havaiana. Dirigiu-se à Nova Iorque, onde procurou lutar pelo restabelecimento do trono.

Victoria Ka'iulani lamentou, como Liliuokalani, o papel desempenhado pelos missionários e seus descendentes na norteamericanização e na perda de autonomia do Havaí.


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.
Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. (Ed.). "Aloha 'Oe: Liliuokalani (1838-1917) - companheira de destino da Princesa Isabel (1846-1921) -Victoria Ka'iulani (1875-1899) e a relevância da cultura poético-musical na monarquia havaiana". Revista Brasil-Europa 126/21 (2010:4). www.revista.brasil-europa.eu/126/Liliuokalani.html



  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.



 




  1. Título e última imagem do texto: estátua de Victoria Kaiulani, Waikiki
    Coluna: Liliuokalani, Palacio Iolani, Honolulu

  2. Fotos A.A.Bispo © on Fisher was dedicated in the triangle park at Kanekapolei and Kuhio Avenues in

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 126/21 (2010:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
- Academia Brasil-Europa -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2628


©

Aloha 'Oe: Liliuokalani (1838-1917)
- companheira de destino da Princesa Isabel (1846-1921) -
Victoria Ka'iulani (1875-1899)
e a relevância da cultura poético-musical na monarquia havaiana

Pelos 25 anos da oficialização alemã do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa
(
Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes - ISMPS e.V.)

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________