Comitiva real do Havaí no Rio de Janeiro. Revista BRASIL-EUROPA 126. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

Na literatura referente ao Havaí, a primeira referência ao Brasil diz respeito à passagem do rei Liholiho ou Kamehameha II em 1824 pelo Rio de Janeiro, em direção a Londres, e à sua recepção por Pedro I° (1798-1834).

A primeira visita de havaianos no Brasil, - nada menos do que a família real e comitiva - explica-se pelo fato de que as viagens entre o arquipélago e a Europa se faziam pelo Estreito de Magalhães, contornando a América do Sul. Essa rota representava o trajeto usual para ligações entre o arquipélago do Havai e a Europa ou a New England, nos Estados Unidos, uma vez que a alternativa seria aquela contornando a África, pelo Cabo da Boa Esperança, tendo, porém, os navios que atravessar o Oceano Índico e grande parte do Pacífico.

Apenas com a expansão norte-americana a Oeste, interligando a costa ocidental com a do Leste dos EUA, em meados do século XIX, é que as viagens entre o Havaí e a Europa passariam a ser feitas por São Francisco, atravessando por terra os Estados Unidos e, de Nova Iorque, novamente por navio a Londres.


A estadia no Brasil em livros de divulgação sobre o Havaí

Em publicações de difusão ampla de conhecimentos sobre o Havai, o leitor interessado na história havaiana tem a sua atenção dirigida ao Brasil, visitado no âmbito dessa viagem de singular significado para a história de encontros culturais e da cultura nas relações internacionais.

Pela primeira vez vinha à Europa soberanos provenientes do Pacífico, vencendo pelos mares extraordinária distância, em viagem transoceânica de seis meses, repleta de riscos. O leitor passa a imaginar o que teria significado essa viagem para o próprio Havaí, onde, com a viagem do casal real, que partiu  a 23 de novembro de 1823, tornara-se necessário instituir uma regência e tomar as providências necessárias para eventualidades através da confirmação do herdeiro, além dos custos que o empreendimento causou.

O leitor apreende que grande parte da soma levada pelos viajantes, provinda de taxas portuárias, teria sido gasta durante a viagem em diversões de um rei e acompanhantes de reconhecida tendência ao consumo de bebidas alcoólicas.

Com surprêsa, toma conhecimento então de uma recepção brilhante da comitiva real havaiana por D. Pedro I° no Rio de Janeiro, antes que a viagem a Londres tivesse prosseguimento. É informado que também aqui os soberanos foram recebidos com especiais atenções, assistindo a espetáculos teatrais e até mesmo a um serviço religioso na Abadia de Westminster, cujo esplendor arquitetônico e sacro-musical através da música para órgão teria impressionado e causado especial impacto nos visitantes.

O leitor adquire, assim, a imagem de uma viagem de particular interesse histórico-cultural e marcada por atividades sociais e culturais, tanto no Rio de Janeiro como em Londres, também aqui numa época de intensas transformações sociais e culturais, marcada por um rei aberto aos prazeres e conhecido pela sua frivolidade: Georg IV (1762-1830).

Tomando conhecimento, porém, que essa viagem terminou tragicamente com o adoecimento e a morte do casal real havaiano em Londres, não chegando a concretizar-se uma audiência com o soberano inglês, o leitor percebe o significado do encontro com Pedro I°: os reis havaianos não foram apenas os primeiros soberanos estrangeiros que estiveram no Brasil independente, mas também Pedro I° foi o único soberando que os recebeu oficialmente.

"No dia 27 de novembro de 1823, o rei, com grande comitiva, partiu para uma viagem à Inglaterra, colocando antes o seu irmão mais novo como herdeiro e reconfirmando a rainha Kaahumanu como regente. Uma arca com 25000 dólares em moedas de ouro foi ao bordo do baleeiro L'Aigle - dinheiro proveniente de taxas portuárias, cuja metade teria sido esbanjada durante a viagem. Após uma recepção brilhante no Rio de Janeiro por D. Pedro, Imperador do Brasil, o navio alcançou Londres, após seis meses. O govêrno britânico, surpreendido com a visita, mostrou-se hospitaleiro, arranjou recepções, convidou-os a visitas a teatros e a um serviço religioso na Abadia de Westminster, onde o rei não conseguia desvir os olhos do teto ricamente ornamentado e a rainha levantou-se assustada ao ouvir o trovejar dos primeiros acordes do órgão."

"Am 27. November 1823 begab sich der König mit großem Gefolge auf eine Englandreise, setzte vorher noch seinen jüngeren Bruder als Erben ein und bestätigte Königin Kaahumanu weiterhin als Regentin. Eine Truhe mit 25000 Dollar in Goldmünzen ging an Bord des Walfangschiffes 'L'Aigle' - Geld aus Hafengebühren, von dem die Hälfte unterwegs verspielt worden sein soll. Nach einem glänzenden Empfang in Rio de Janeiro durch Dom Pedro, den Kaiser von Brasilien, erreichte das Schiff nach sechs Monaten London. Die britische Regierung, von dem Besuch überrascht, zeigte sich gastlich, arrangierte Empfänge, lud zu Theaterbesuchen und einem Gottesdienst in Westminster Abbey, wo sich des Königs Augen bis zum Ende nicht von der reichgeschmückten Decke über sich trennen konnten, während die Königin beim Donner der ersten Orgelakkorde erschreckt von ihrem Sitz auffuhr." (Conrad Anders, Hawaii, Munique: Prestel, 1975, 107-108)


Pesquisa histórica e os estudos etnológicos

Também nos estudos especializados tem-se considerado a estadia da comitiva real havaiana de Kamehameha II° no Rio de Janeiro. A questão das relações entre a historiografia e a etnologia surge aqui como merecedora de particular atenção.

Adrienne L. Kaeppler, antropóloga do Bernice Pauahi Bishop Museum de Honolulu, salientou a importância da pesquisa histórica acurada para a interpretação de materiais etnográficos, lembrando que detalhes históricos relevantes podem ser passados despercebidos na etnologia. Com esse intento, estudou os objetos transportados nos navios L'Aigle e HMS Blonde no contexto da viagem de Kamehameha II. (A. L. Kaeppler, 'L'Aigle' and HMS 'Blonde': The Use of History in the Study of Ethnography", Hawaiian Journal of History/Hawaii Historical Society 12, 28–44)

A preocupação de A.L. Kaeppler tem-se dirigido aqui, já há décadas, à localização de materais de "uso", ou seja, oferecidos ou presenteados no passado, de importância para o estudo da mudança cultural no Havaí e do vir-a-ser do que chama de estilo "evolved tradicional" havaiano.

Salienta que esse estudo histórico acurado e a localização de objetos são de relevância para o conhecimento da auto-percepção dos havaianos, da percepção do Havaí no Exterior e das relações recíprocas dessas percepções no desenvolvimento das várias percepções dos havaianos da atualidade.

Segundo esses objetivos, A. L. Kaeppler conseguiur trazer, em 1969,  a Kintore cloak da Escócia; em 1973, organizou uma exposição dos materiais da coleção do Bernice Pauahi Bishop Museum  no Palácio Hulihee.

Três temas surgem como particularmente importantes nesse trabalho: 1) a localização dos materiais de "uso", ou seja "dados"; 2) a já mencionada necessidade de pesquisa histórica acurada e a auto-percepção dos havaianos, e 3) a percepção dos europeus dos havaianos no século XIX e como essas duas percepções se influenciaram reciprocamente para levar às várias percepções de havaianos de hoje.


Manto de penas da rainha Kamamalu no Museu Nacional

Nesse estudo de objetos de relevância etnográfica, uma particular importância assume o antiga manto de penas de pássaros dos antigos chefes do Havai, um dos mais altos símbolos da cultura tradicional havaiana.

Nesse contexto, A. L. Kaeppler chama a atenção ao manto de penas presenteado por Kamehameha II a Pedro I° e que hoje se encontra no Museu Nacional. Esse presente foi feito em retribuição a uma espada a êle oferecida pelo imperador brasileiro. Essa manta é feita dos materiais mais preciosos do Havaí, por fora com multicoloridas penas de pássaros raros, hoje em parte extintos. Segundo as informações obtidas no Museu, tratar-se-ia do manto da rainha Kamamalu.

"The first major landfall of L'Aigle was Rio de Janeiro where the royal party was presented to the Emperor of Brazil. In the National Museum of Brazil there is today a beautiful Hawaiian feather cloak, with the information that it was the mantle of Queen Kamamalu and presented by Kamehameha II to the Emperor of Brazil, Don Pedro I, in 1824." (op.cit. 28)

O valor do presente feito ao imperador brasileiro e a preciosidade do objeto conservado no Museu Nacional podem ser avaliados pelo fato de que ter merecido uma notícia no London Times, a 25 de maio de 1824:

"On their way to this country, they touched at Rio de Janeiro, and during their stay their Majesties were presented to the Emperor of Brazil... when the Emperor was pleased to present the King with a most elegant sword; and in return the King presented the Emperor with a most curious cloack or mantle, made of the richest materials of his islands, the outside of which is of feathers of rare birds, of the most beautiful colors." (cit. A. L. Kaeppler, op.cit. 29)

A. L. Kaeppler salienta o valor dessa peça chamando a atenção à sua antiguidade. Segundo a sua suposição, o rei havaiano e a rainha Kamamalu a teriam oferecido ao imperador brasileiro por não mais dela fazerem uso, uma vez que já estavam acostumados aos trajes europeus.

"Unlike the Starbuck and British Museum capes which were possibly recently made, the Brazil cloak appears to have been an old one - perhaps undesired by Liholiho because of its style. Liholiho, having grown up with European clothes, must have found that its straight neckline was both uncomfortable and awkward. If any of his cloaks were expendable surely it was this. Indeed, it is probable that Liholiho didn't like wearing cloaks at all for at an entertainment for 'Their Sandwich Majesties' on May 31st the Quenn was dressed in a combination of European and native attire. His Majesty was dressed after the European fashion, while the Treasurer alone was dressed in the full costume of his country, with a large staff, etc.'" (loc.cit.)


Sob a perspectiva de processos de mudança cultural

A suposição de que o rei havaiano teria presenteado o imperador brasileiro com um precioso objeto antigo por já não mais agradá-lo ou ser incômodo, necessitaria, porém, ser relativada. Esse ato, que foi de homenagem a um imperador e que servia à representação de uma nação, não poderia ter sido apenas o da entrega de um objeto velho, não mais apreciado no seu valor.

O interesse de Kamehameha II e Kamamalu pela moda ocidental e pela elegância segundo normas internacionais necessitaria antes ser considerado sob a perspectiva do processo de transformações culturais e de identidade por que passava o Havaí - e o Brasil - na época.

A orientação segundo os mais atuais preceitos da moda correspondia ao intuito dos viajantes em mostrar no Exterior o grau de civilização e cultivo já alcançado pelo novo Havaí, ou seja, vinha de encontro a uma necessidade de representação e aceitação do país e servia ao desejo de estabelecimento de contatos sociais com círculos dirigentes de outras nações. Esse intuito não poderia ter sido alcançado se os havaianos se mostrassem com roupas do quotidiano ou de forma que pudesse ser associada com aquela de povos não civilizados.

A entrega do manto a Pedro I° deve ser, assim, vista como ato consciente de se fazer um presente à altura da dignidade imperial através de uma antiguidade de alto significado simbólico.

A orientação segundo os ditames de correntes internacionais da moda também era de importância no contexto brasileiro, também inserido em processo de profundas transformações de um novo país emancipado.

Apesar das dificuldades econômicas dos anos que se seguiram à Independência, o Rio de Janeiro vivenciava um período aberto a novas ou dominantes tendências provenientes da Europa. Uma das suas expressões foi interesse pelas óperas de G. Rossini (1792-1868), então já festejado nas capitais européias. (Ayres de Andrade, Francisco Manuel da Silva e seu tempo 1808-1865, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 1967, I, 122-123) A estadia da comitiva havaiana no Rio de Janeiro deu-se pouco tempo antes do incêndio do Teatro de São João, ocorrido em março de 1824, assim como do juramento da Constituição do Império.

A questão do perfil de Liholiho

A menção de Kamehameha II junto ao nome de Pedro I° chama a atenção do pesquisador para uma singular similaridade na imagem de ambos os soberanos, apesar de todas as fundamentais diferenças quanto a situações e contextos.

Tem-se salientado que a personalidade de Liholiho era muito diferente daquela do seu pai, Kamehameha I, o Grande. (Veja artigo a respeito). A imagem de Liholiho é marcada por referências à sua sensualidade, a traços frívolos de seu modo de vida, à sua intemperância e impulsividade, ou seja, de características de instabilidade emocional e de falta de equilíbrio. Sempre em movimento, de grande labilidade, realizou não apenas constantes viagens dentro do arquipélago, mas sim o empreendimento então inaudito de levantar meios para concretizar a sua viagem à Grã-Bretanha. A sua instabilidade correspondia, assim, a um desejo de demonstração, de encenação exagerada, de comprovação de estar à altura dos líderes das nações civilizadas. Compreende-se, assim, o fato de ter adquirido um luxuoso iate, Cleopatra's Barge, e que ficou marcado como uma extravagância na história cultural do Havai.

Se o seu pai havia sido uma personalidade que agira segundo preceitos de poder, que se concentrara na questão da união de povos com similar língua e cultura, no fomento do comércio e na criação de laços fortes com a Inglaterra, ao mesmo tempo, porém, mantendo de forma conservadora as tradições culturais do passado, o seu filho foi representante de uma época de cisão com esse passado. Iniciou uma era nova, a de um Havaí que destruia os símbolos dos tempos idos, que cortava as suas raízes, que procurava uma posição equiparável às nações européias.

O observador brasileiro sente-se, assim tentado a tecer paralelos entre os reis havaianos e D. João VI° e Pedro I°. Se D. João VI° foi o soberano do Reino Unido, Pedro ° foi o do Brasil independente; se D. João foi representante de um passado findo, Pedro I° o de um país que fazia um corte definitivo, selando um processo já anteriormente desencadeado, sobretudo pela abertura dos portos e pelo desenvolvimento do comércio. Também Pedro I° teve a sua imagem marcada por umpulsividade, labilidade, sensualidade, mobilidade; também êle realizou grandes viagens pelos seus domínios e deles saiu em direção à Europa, para os quais não mais voltou.

Tais paralelos, porém, apenas se justificam como incentivos a análises mais profundas, nas suas inserções em contextos globais, das respectivas situações de profundas mudanças em regiões tão distantes entre si. Apenas a partir dessas análises pode-se chegar à percepção de mecanismos possivelmente vigentes em constelações internacionais e nos quais os diferentes países estiveram envolvidos.

Trata-se, em ambos os casos, de uma questão de transformação de identidades, do momento crítico de decisão no decorrer de um processo transformatório em andamento. No caso do Brasil, o da retirada dos laços e símbolos portugueses, no caso do Havaí, o da destruição das imagens de divindades e de outros sinais do culto consuetudinário.

A questão do perfil de Liholiho - e talvez também daquele de Pedro I° -, ambos marcados por labilidade e extraversões - poderia, assim, ser tratada sob uma perspectiva teórico-cultural.


Lahaina: janela para o mundo. Comércio entre o Ocidente e o Oriente

Liholino tornou-se rei - como Kamehameha II - em Kailua, em maio de 1819. Subiu ao poder segundo os preceitos e os símbolos da cultura de seus antepassados, com as insígnas tradicionais, de penas, cercado pelos chefes com os seus respectivos atributos de poder. Esse cerimonial, com os seus apelos simbólicos à lealdade aos costumes e aos ancestrais já não correspondia, porém, à realidade que se transformara com as medidas de fomento ao comércio e às finanças encetadas pelo seu pai.

A delapidação das florestas para a venda de madeira de sândalo e os meios obtidos criavam ou aprofundavam desigualdades e fomentavam a inveja e a discórdia entre chefes. (Veja artigo a respeito nesta edição)

O ano de sua subida ao poder foi marcado pelo início de um lamentável desenvolvimento que traria graves consequências em todos os sentidos para o Havai: o da vinda de baleeiros. Em empreendimentos sobretudo norte-americanos, marinheiros- arpoadores de mais questionáveis princípios éticos passaram a visitar as ilhas, em parte ali se estabelecendo. Tensões entre esses americanos e inglêses agravaram-se com os problemas causados pelo abuso do álcool, pela prostituição, por roubos e outros crimes. Iniciara-se a fase negra do Havaí, a da pesca predatória da baleia.

Foi numa baleeira fretada do empresário norteamericano Valentine Starbuck - um dos principais promotores dessas atividades - que a comitiva real realizou a sua viagem ao Velho Mundo.

Essa situação de insegurança, de deterioração e de mudanças foi acompanhada também por desejos de exibição de riqueza. Assim, a rainha víúva Kaahumanu (1768-1832), que havia sido uma das mulheres preferidas de Kahamehameha I, utilizava-se de uma carruagem, a primeira introduzida no Havaí, sendo acompanhada por serviçais e trazendo extravagantes atributos. Kamamalu, mulher de Kamehameha II, participou do cortejo de intronização em veículo em forma de nave, com 70 homens, coberto de tecidos importados e tecelagens de tapa coloridas, trajando manto e coroa de penas, sentada no meio do barco sob um grande chapéu-de-sol de damasco vermelho da China.


O rei que sentou-se à mesa com mulheres

Há outros fatores, porém, que necessitam ser considerados nesse processo de mudança da sociedade havaiana. Também aqui o observador brasileiro sente-se tentado a tecer paralelos. Se o Brasil teve a sua Dna. Carlota Joaquina (1775-1830), à época de D. João VI (1767-1826), se Pedro I° teve problemas com a forte personalidade de Dna. Leopoldina (1797-1826), mantendo relações extra-conjugais, também no Havaí mulheres desempenharam papel relevante na vida pessoal e mesmo no govêrno do arquipélago.

Uma delas foi a já citada viúva Kaahumanu, que ficou na memória pelo seu temperamento e fibra, e que exigiu, desde o início, co-participação na condução dos negócios do reino, tornando-se kuhina-nui e, assim, uma espécie de vice-rei, deixando ao rei antes funções cerimoniais. Kamehameha II tinha, assim o seu poder dividido, de um lado pelas decididas mulheres de sua Côrte, a sua mãe Keopuolani e a viúva de seu pai, de outro pelos chefes, agora enriquecidos com o comércio da madeira.

No corte de laços com o passado, no ato que marcou definitivamente o fim do antigo Havaí e o início de outro, o papel das mulheres na sua família pode ser visto como decisivo. A sua mãe e a viúva Kaahumanu, levaram-no a quebrar o tabu que proibia que homens e mulheres tomassem a sua refeição juntos. Assim, o ato de Kamehameha II consistiu em sentar-se junto às mulheres durante uma festa em Kailua, quebrando o tabu. Êle próprio, assim, como rei, cortou os laços com a antiga cultura, destruindo com a sua autoridade o antigo sistema.

O seu ato foi visto como um sinal que levou ao descrédito das antigas divindades, à destruição dos antigos ídolos e do edifício de concepções e usos consuetudinários. Ainda que houvesse rebeliões, que foram sufocadas, a situação anterior, destabuizada, já não podia ser mais restaurada. Kekuaokalani, primo de Kamehameha I e que assumira o culto do seu deus de guerra, exigiu que os editos contra os sacerdotes tradicionais fossem revogados e os templos reconstruidos, contra a influência de Ka'ahumanu. Com a recusa de Kamehameha II, deflagrou-se uma guerra, sendo esta vencida pelas forças reais, melhor armadas, dirigidas por Kalanimoku, um dos cabeças da transformação cultural.

Após a quebra do sistema do kapu, interromperam-se as celebrações de Makahiki e dos rituais heiau. O Havaí tornou-se um país sem religião, fato que veio de encontro à ação dos missionários que chegavam. Introduziram-se escolas e a escrita. Deu-se início à imprensa, passando a língua havaiana a ser impressa.

Com a destruição das bases em que se assentava o antigo edifício de concepções, práticas e da própria estrutura da sociedade, também a autoridade real foi abalada. Sem poder contar com o fundamento das tradições e do sistema determinado por tabus, sem poder contar com o apoio de representantes da religião abolida e de chefes que procuravam manter a situação existente sob Kamehameha I - progresso material e conservação da cultura consuetudinária - a única solução para Kamehameha II foi a de procurar o reconhecimento externo, alcançando uma autoridade agora como chefe de Estado.

Esses pressupostos políticos internos do Havai explicariam, assim, o objetivo de sua viagem ao Exterior e do papel nela desempenhado por expressões de cultivo e cultura.

Um presente do rei inglês representou, neste contexto, o impulso decisivo para a ida de Kamehameha II à Inglaterra. Através do missionário William Ellis (1794-1872), chegado a 16 de abril de 1822 com a nave Prince Regent, o rei recebeu seis canhões para os seus navios.

Kamehameha escreveu ao rei inglês, sugerindo também elos diplomáticos mais estreitos. Esse intuito não podia ser bem visto pelos missionários norte-americanos, e assim se explica talvez a oposição ao plano feita pelas mulheres que influenciavam a vida política havaiana, entre elas Ka'ahumanu e Keopualani. Com a morte desta último, a 16 de setembro de 1823, o rei sentiu-se mais livre para realizar o plano.

Jean Baptiste Rives [John Reeves] (ca. 1793-1833)

Havia, também, um outro fator político interno que deveria ser levado em consideração no estudo dos pressupostos da viagem ao Exterior de Kamehameha II. O rei havaiano, dominado pelas mulheres que haviam levado à derrubada da estrutura social tradicional e à erosão do sistema de concepções consuetudinárias, sentia que perdia indiretamente o seu poder aos missionários congregacionalistas, que nelas encontravam o principal veículo para a evangelização. Tudo indica, assim, que a sua intenção era a de aproximar-se a uma igreja com hierarquia estabelecida e com características de Estado, em particular do Anglicanismo. Isso explicaria, assim, o serviço religioso na Westminster Abbey, para o qual foram convidados.

Nesse contexto religioso-cultural merece ser considerada a influência exercida por um cidadão francês, Jean Baptiste Rives (ca. 1793-1833), cuja imagem, marcada por ambivalências e dúvidas, bem se insere no ambiente crítico, instável e ao mesmo tempo extravagante do Havaí do início da década de 20 do século XIX. Chegara muito jovem ao Havaí, onde aprendera o idioma local com o preceptor dos príncipes. Com essa capacidade, tornou-se influente mediador entre as lideranças locais e os europeus, servindo também de tradutor aos visitantes estrangeiros.

Rives tornou-se conhecido pelos seus modos de vida e comportamento extravagantes. Usava roupas de sêda chinesa e tinha gestos afeminados, sendo conhecido pelo nome feminino de Luahine. Pertenceu ao círculo mais íntimo de Kamehameha II, foi seu amigo íntimo (aikane), companheiro de festas e bebida.

De suas atividades como mediador cumpre salientar aquela exercida quando da visita de Louis de Freycinet (1779-1842), que visitou o Havaí em 1819, a bordo da nave Uranie. Nesse ano, poucos meses após a subida ao trono de Kamehameha II, o seu ministro Kalanimoku (ca.1768-1827) e o governador Boki receberam o batismo pelo capelão católico daquela nave. Haviam sido provavelmente incentivados por Rives, uma vez que este procurou convencer a outros a aproveitarem a presença do sacerdote católico para o recebimento do batismo.

Foi apontado como capitão do iate real Cleopatra's Barge, em 1821, e abriu um dos primeiros hotéis em Honolulu. Teve vários filhos de mulher havaiana de estirpe nobre, sendo as filhas adotadas pela rainha Ka'ahumanu, tornando-se princesas.

Rives, que acompanhou o rei do Havaí na sua viagem à Europa, desempenhou papel importante na sua realização. No navio deveria retornar o missionário inglês William Ellis, e que poderia servir de intérprete. Preferiu-se, porém, a presença de Rives. Tudo indica ter sido êle um dos mediadores principais durante a estadia da comitiva real no Brasil. Também parece, pelas suas ações futuras, que tinha como objetivo procurar apoio junto a círculos católicos da Europa para que o Havaí não ficasse entregue a protestantes.

Estadia na Inglaterra e morte do casal real havaiano

Chegaram a Portsmouth a 17 de maio de 1824. Em Londres, onde se hospedaram no Caledonian Hotel, à espera de audiência com o soberano inglês, os membros da comitiva tiveram a possibilidade de participar da vida cultural, assistindo a ópera e a espetáculo de ballet no Royal Opera House Covent Garden, a 31 de maio, e no Theatre Royal em Drury Lane, em 4 de junho, sendo convidados a assistir aos espetáculos do camarote real. Para acompanhá-los, George Canning (1770-1827), Secretário do Foreign Office, designou Frederick Gerald Byng (1784-1871), conhecido por suas maneiras afáveis e delicadas, amigo do "Dandy" Beau Brummell (1778-1840).


Ainda que os inglêses tivessem tido já há décadas contatos com taitianos (Veja número anterior desta revista), era a primeira vez que uma comitiva real da Polinésia ali se encontrava. O interesse despertado pode ser avaliado no fato de que damas inglêsas passaram a imitar o turbante usado por Liliha (ca.1802-1839). Em desenho da comitiva no camarote real, vê-se os seus membros usando trajes de moda da época, trazendo a rainha flores no cabelo à moda havaiana. Essa ilustração publicada em jornal de 1824, mostra o rei Kamehameha II, a rainha Kammalu, Liliha e, de pé, da direita para a esquerda, o acompanhante inglês da comitiva, Frederick Gerald Byng, Boki e dois outros havaianos não identificados ("British Press Greets the King of the Sandwich Islands: Kamehameha II in London, 1824", Hawaiian Journal of History 42, 2008, pág. 86).

Em homenagem, organizou-se uma grande recepção no dia 28 de maio. Diferentemente do texto acima citado (Conrad Anders, Hawaii, Munique: Prestel, 1975, 107-108), tem-se mencionado que Kamehameha II teria recusado a entrar na Westminster Abbey com o receio de desacralizar o local, por ali estarem sepultados reis inglêses, com êle não relacionados sanguineamente. Mantinha-se, assim, fiel às concepções de sua cultura tradicional. A Westminster Abbey como igreja de coroação e sepultura de reis seria de grande significado para a história religioso-cultural do Havaí (Veja artigo a respeito nesta edição).

Entretanto, provavelmente após uma visita ao Royal Military Asylum, a 4 de junho, a rainha contraiu doença infantil para a qual não estava imunizada, falecendo a 8 de julho de 1823. Foi seguida, seis dias mais tarde, por Kamehameha.

Jean Baptiste Rives cuidou das cerimônias fúnebres na igreja de St. Martin in the Fields, do aviso oficial às autoridades no Havaí e do envio dos corpos a bordo da HMS Blonde a 8 de setembro de 1824, sob o comando de George Anson Byron (1789-1868), primo de George Gordon Byron (1788-1824).

A audiência de George IV foi dada ao grupo restante, agora liderado por Boki. Como tradutor atuou Kanehoa James Young (1797-1851), filho de John Young (ca. 1742-1835).

O navio HMS Blonde evou, na sua viagem, vários naturalistas para fazer observações nas ilhas. Recolheu objetos gravados de chefes do antigo Havai e das ruinas do templo Pu'uhonua O Honaunau. Para isso, precisou obter consentimento dos missionários locais. Os despojos reais, em solenidade dirigida ao mesmo tempo por um capelão anglicano e, em havaiano, por um missionário americano, foram primeiramente enterrados em Honolulu, sendo transferidos posteriormente ao mausoléu real no vale Nu'uanu de Oahu. Rives não retornou ao Havaí, dirigindo-se à França.

Consequências da viagem - missão católica no Havaí

Os representantes havaianos na Europa procuraram levantar financiamentos na Inglaterra e na França para investimentos no Havai. Em lugar de Rives, a França enviou uma expedição sob o comando de Auguste Bernard Duhaut-Cilly (1790-1849) à testa da nave Le Héros. Partida do Havre em 1826, o navio dirigiu-se porém à Califórnia, chegando em Santa Barbara em março de 1827, sob o comando de José de la Guerra y Noriega (1779-1858). Em Monterey, encontraram a nave francesa La Comète, que partira de Paris em novembro de 1826, passara por Valparaíso, Arequipa e Lima, chegando em Honolulu a 9 de julho de 1827. A nave trazia missionários católicos para o Havaí.

O grupo era liderado por Alexis John Augustine Bachelot SS.CC., da Congregação dos Santíssimos Corações de Jesus e Maria (1796-1837), encarregada da missão católica de grande parte da Polinésia (Veja artigo no número anterior desta revista). Bachelot, que havia realizado os seus estudos teológicos no Colégio irlandês de Paris, foi ordenado presbítero em 1820. Em 1825, o Papa Leão XII o nomeu Prefeito Apostólico para o Havaí (então Ilhas Sandwich). Essa Prefeitura Apostólica passaria posteriormento ao Vicariado Apostólico da Oceania Oriental. Na sua missão, foi acompanhado pelos irmãos Patrick Short e Abraham Armand, além de seis irmãos leigos. (Veja artigo neste número)

Os missionários chegaram em julho de 1827, mas não foram bem recebidos. A imagem de Rives, falecido no México, ficou prejudicada por empreendimentos fracassados e por condutas pessoais.


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Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. (Ed.). "Liholiho ou Kamehameha II (1797-1824) e a rainha Kamamalu (1802-1824)
no Brasil e na Grã-Bretanha. Significado histórico-cultural da viagem transoceânica da comitiva real havaiana em situações de mudança em diferentes nações". Revista Brasil-Europa 126/6 (2010:4). www.revista.brasil-europa.eu/126/Liholiho.html



  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.



 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 126/6 (2010:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2613




Liholiho ou Kamehameha II (1797-1824) e a rainha Kamamalu (1802-1824)
no Brasil e na Grã-Bretanha
Significado histórico-cultural da viagem transoceânica da comitiva real havaiana
em situações de mudança em diferentes nações


Pelos 25 anos da oficialização alemã do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa
(
Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes (ISMPS e.V.)

 

















  1. Maui
    Fotos A.A.Bispo e H. Hülskath©

 

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